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Quarta-feira,
20/4/2016
Blog de Anchieta Rocha
Anchieta Rocha
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Mãos
Eu gostava quando chegava de noite na aula, a professora vinha na carteira, pegava na minha mão e me punha pra escrever. Já fazia três meses que eu frequentava o curso de alfabetização.
Muita gente de idade, eu era o mais novo. Nem sabia segurar no lápis. Da primeira vez fiz um a redondo. Os colegas caçoavam vendo eu morder a língua. Com o tempo fui pulando pras outras letras, juntando todas. Não demorou, já formava palavra, tudo seguido, igual no caderno do meu filho.
É da leitura que eu mais gosto. Escrever é difícil porque tem que pôr sentido nas letras e prestar atenção no rumo do lápis.
É bom aprender as coisas pra não passar vergonha, igual acontecia comigo. Se a pessoa não sabe assinar o nome e vai tirar um dinheiro no banco, todo mundo fica olhando pro dedão na almofada. Mais triste é depois em casa. Entro no banheiro, sento no vaso, fico vendo a tinta preta, pensando, escondido do menino.
De uns tempos pra cá eu ando muito feliz. Comecei a ler as placas na rua e pegar ônibus sem ter que perguntar pra ninguém. No supermercado então é o que eu mais gosto. Leio as letras miúdas das embalagens sem medo de errar, igual duma vez que levei pra casa um negócio que só as mulheres usam.
Duas vidas - a de antes e a da agora, um cego descobrindo o mundo. Mesmo assim ainda tenho muito que aprender. Se depender de mim, até estrangeiro eu vou falar. Perto de onde trabalho tem uns tudo branquelo. Eles embolam a língua, eu acho chique, todo mundo presta atenção mesmo sem entender nada.
Quando não estou com meu caderno, pego os do menino, fico apreciando, as matérias tudo separado, uma anotação pra cada coisa. Gosto dos livros também. Igual um que tem. Todo colorido, tudo explicado, tudo bonito. Capital, país, estado, antes eu achava complicado, não entendia nada.
No dia que a minha mulher chegou da rua falando que ia ter um curso pra adulto no salão da igreja, eu não gostei, ainda mais que ela tem uma caligrafia bonita e leitura boa. Fiquei nervoso na hora, mas conseguiu me dobrar: ia ser bom pra mim, as coisas podiam melhorar na fábrica.
A aula começava no dia seguinte. Cheguei do serviço, encontrei lápis, borracha e um caderno encapado em cima da mesa. Guardei pro menino não ver.
Deu um frio na barriga, quase voltei da porta da sala de aula. Criei coragem e fui sentar no fundo. A professora chegou, perguntou meu nome e anotou na caderneta. Os meus colegas também sentavam pela primeira vez num banco de escola.
Então aconteceu dela chegar e pegar na minha mão pra me ensinar a escrever. Debruçava e encostava. Eu via ela na carteira dos outros, ajudando todo mundo na maior inocência.
Eu ficava tentando mudar o pensamento pra outras coisas, cuidando pra não sentir nada, não tinha jeito.
Chegava em casa, entrava no banheiro pra tirar o perfume da mão dela e ficava comparando: lisura e beleza, as mãos de uma, casquenta de lavar roupa, as da outra. Deus no céu, minha mulher na terra e a professora. De noite, os pesadelos. O dedo na almofada, garrancho saindo do lápis, mão o tempo todo: mão preta, mão com luva, mãos das duas.
Resolvi não voltar na aula — não tardava fazia uma besteira. Arrumei uma desculpa, inventei pra mulher que queria estudar numa escola mais apertada.
De noite, parei na porta da sala de aula igual no primeiro dia, quis voltar. Criei coragem e fui até a mesa.
Desta vez segurei a mão dela. Macia, toda dentro da minha. Olhei pra ela e disse que estava com um problema na vista, que não conseguia enxergar direito, que não ia frequentar mais a aula.
Não menti. Eu não estava conseguindo ver nada no trabalho, nem minha mulher nem meu filho. Abrindo os meus olhos, ela não me deixou enxergar mais nada.
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Postado por Anchieta Rocha
20/4/2016 às 22h01
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Como num filme
Sempre que ele chega, me atira na cama, não dá uma palavra, enfia com raiva, veste a roupa e vai embora. Tem vez que nem espera chegar no quarto e ainda no corredor me agarra. Um dia até rasgou minha roupa.
Mulher sou eu, de rabo quente, põe ele maluco, coisa que a outra não faz, fresca que é. Aposto que abre a porta do carro pra ela, puxa cadeira no restaurante e uma porção de coisa. Já pegou o meu jeito, vou aceitando sem reclamar, o peito cada dia mais apertado. Alguns homens chegam, homens que muita mulher queria ter, em cima de mim, não adianta, é só ele. Queria ser outra. Igual uma, li numa revista feminina. Vai pra cama cada dia com um. Nada de amor, de dengo. A boba aqui é só ele bater o olho. Carinho e agrado nunca. Me dá muito pouco.
Desde o início me encantoou de tal jeito, que cada dia mais fico sem saber o que fazer da vida.
Vai ver os dois estão agora na cama por obrigação, enfastiados. Ela pode até gemer debaixo dele, se é que geme de verdade.
Sempre fui uma morena bonita. Quando os homens falavam que eu parecia com a Sônia Braga, mais balançava a bunda.
Se soubesse que a coisa ia ficar desse jeito, no primeiro dia tinha voltado da porta com a mala. Enquanto a mulher me mostrava o serviço, ele corria o olho no meu corpo.
Não passou uma semana, numa noite foi entrando, tapando minha boca, me agarrando. Sentei na cama e decidi que no outro dia eu ia embora tão logo ela chegasse do plantão.
Cedo eu estava na pia da cozinha. Veio por trás, me pegou e falou qualquer coisa no meu ouvido. A água arrepiou meu braço mais ainda.
Quando ia pra lavanderia, eu não gostava de ver a roupa dos dois saindo grudadas da máquina. As dela, atirava num canto. As dele, na hora de passar, ficava alisando os peitos das camisas e as calças.
Foi assim durante muito tempo. Nem uma delicadeza nem nada. Chegava e pulava em cima como se eu fosse uma égua. Se não vinha, rolava na cama, ardendo de vontade e de raiva, o ouvido no quarto deles, uma cega no cinema.
Num fim de semana, um tempão sem me procurar, me desesperei. Antes de dormir, peguei uma camisa dele no cesto de roupa suja e enrolei no travesseiro.
Uma noite não aguentei e esmurrei a porta. Abriram assustados. Prendi a respiração. Pedi um comprimido e fui deitar. Resolvi que cedo ia embora.
Chorando, disse que ele mal falava comigo, que eu queria ter uma vida como todo mundo, um lar. Prometeu que ia encontrar um jeito, que eu tinha que ter mais paciência, que as coisas não podiam mudar de uma hora pra outra.
No dia seguinte ele veio e demorou. Depois cruzou comigo de cabeça baixa muitas vezes.
Dei um basta apontando pra mim em frente do espelho. Quando me viu fazendo a mala, a voz entalou:
— Se você for embora eu não sei o que vai ser de mim.
— Você tem ela.
— Não tenho, você nunca vai entender.
Sentou na cama, abaixou a cabeça escondendo o rosto nas mãos.
De lá pra cá nada mudou. No mais chega, me trata como um pano de chão. Quando não vem, fico passando o filme dos dois na cabeça e peço a Deus pra ficar velha depressa que eu não aguento mais esta fogueira ardendo dentro de mim.
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Postado por Anchieta Rocha
1/4/2016 às 22h32
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Hemingway: arte e vida
“No caminho, fui pensando no Ernest Hemingway que um dia encheu um barco de amigos e saiu para caçar um submarino alemão que rondava o Caribe, coisa de porra-louca, só ele mesmo. Li muito sobre a vida do romancista. Das histórias, da que mais gostei foi a da Ava Gardner, tesão de mulher que foi passar uma temporada na casa em que ele vivia em Havana. Numa noite, que não podia deixar de ser quente e azul, nua, mergulhou na piscina, com seus também olhos azuis. Passados uns dias foi embora. Esqueceu ou propositadamente deixou uma calcinha no quarto de hóspedes. Ele recolheu a peça que abrigara a coisa mais, mais – procurou palavras, tarefa fácil, em vão - apertou-a no peito e daquele dia em diante nunca deixou de dormir com o revólver debaixo do travesseiro envolto por ela. Bagunceiro, brigão, mulherengo, adorava rinha de galo, soltar foguete, luta de boxe, arrumava confusão com os vizinhos. Amigo do Fidel, talvez o único americano que o barbudo tolerasse. Li alguns livros dele. Gostava mais de sua vida. Tinha mais arte.”
- Deste blogueiro, do romance Dias de Vinho e de Chumbo, Editora Jaguatirica.
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Postado por Anchieta Rocha
9/3/2016 às 21h04
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Conto e romance
“No combate entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute.”(Julio Cortázar)
“O contista deve saber como começar, o romancista como terminar.”(Massaud Moisés)
Pegando carona com o escritor e o professor de literatura, um trecho sobre os dois gêneros em Dias de Vinho e de Chumbo, romance deste blogueiro:
"Escrever conto é um sofrimento. É uma tensão que só acaba quando o autor se liberta de seu personagem. À medida que a história vai se desenrolando, ele também se aprisiona, as paredes vão apertando, o ar começa a faltar. O conto é um lago de águas turvas, pesadas. O romance, ao contrário, flui livre, rio que se lança com avidez, numa aflição boa. Conto, esquina traiçoeira. Romance, avenida, avenida não, boulevard que rompe majestoso. (...)"
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Postado por Anchieta Rocha
11/2/2016 às 09h56
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A insustentável leveza do corpo
"Muitas vezes desejava sentir-se livre, despreocupada, à vontade em seu próprio corpo, como sabia que era a maioria das mulheres com quem convivia. Até mesmo inventara, para seu uso próprio, um método original de autopersuasão: repetia para si mesma que todo ser humano recebe ao nascer um corpo entre milhões de outros corpos prontos para o uso, como se lhe fosse atribuída morada semelhante a milhões de outras num imenso prédio; que o corpo é, portanto, uma coisa fortuita e impessoal, nada mais que um artigo de empréstimo e de confecção. Eis o que repetia para si mesma com todas as variações possíveis, tentando inutilmente inculcar em si essa maneira de sentir. Esse dualismo da alma e do corpo lhe era estranho. Ela se confundia muito com seu corpo para não senti-lo com angústia."
- Trecho do conto de Milan Kundera 'O jogo da carona', da coletânea Risíveis amores.
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Postado por Anchieta Rocha
2/1/2016 às 21h36
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Paris era uma festa
Há quase uma hora sentado na varanda do hotel, tento em vão escrever alguma coisa, enquanto Zelda mais uma vez é levada para o sanatório por causa das crises e das bebedeiras.
Faz pouco me lembrei de Ernest Hemingway, quando da nossa ida a Lyon para trazer meu Renault, tudo por causa de mais uma das loucuras da minha mulher que havia danificado a capota dele.
Ela adorava os conversíveis. Certa vez, num fim de tarde de outono, não posso negar, foi bonito. Me obrigou a parar no Central Park e comprar, como disse, um buquê de balões. Sentada no para-lamas, rodamos vários quarteirões. Nunca vai apagar da minha memória o deslumbramento das pessoas com nossa loucura.
A primeira vez que estive com o Ernest foi no Dingo, nosso bar preferido. Fomos bebendo, a conversa rendeu. Falamos de tudo, principalmente de literatura. Ele era um jornalista estreante e vinha publicando contos em alguns jornais da Europa. Ficou lisonjeado com meu convite pra ir a Lyon. Num dado momento prometi que ia lhe passar o último exemplar do Great Gatsby que Miss Stein estava lendo.
Não sei se o convidei pela boa companhia, ou por aparentar determinação. Despachado, entendia de tudo, de armas a mulheres, cara pra qualquer parada. Dois anos mais velho, eu era tímido, inseguro, querendo morrer a toda hora, mesmo levando uma vida intensa.
Cheguei a Lyon depois dele. Rodei a cidade e acabei encontrando-o num hotel com cara de bangalô. Eu havia tomado umas doses no trem para quebrar a angústia por ter deixado Zelda em Paris. O aviador francês com quem ela tivera um caso não me saía da cabeça. A contrariedade tolhia minha inspiração. Nada de varar a noite como antes, febrilmente escrevendo páginas e páginas.
Lyon foi bom para desanuviar. Depois de duas garrafas de Mâcon branco, a nossa conversa ficou agradável. Eu o invejava pela serenidade com que falava de seus planos e de Hadly, sua esposa. Durão o cara. Engolia as doses com ferocidade, agitava-se, enquanto eu me encolhia como uma criança amedrontada.
Observando o céu pesado, o dono da oficina disse que não conseguiríamos chegar a Paris porque o Renault sem a capota podia virar uma canoa.
Enfiei o pé no acelerador.
Não andamos meia hora e tivemos que parar num hotel de beira de estrada. Aí começou tudo. Então pude perceber o quanto desamparado e fraco eu era - imbecil também.
As nuvens pesadas que via através da janela do quarto me asfixiavam. Cismei que estava com pneumonia. Três babás não teriam feito o que o Ernest fez por mim. Eu falava do medo de morrer e deixar Zelda e a menina. Mas o que me atormentava era imaginá-la ao lado do piloto francês dando rasantes sobre Paris.
Ridículo, isso mesmo, me senti ridículo depois de todo o aparato para me aliviarem da incurável doença.
O camareiro apareceu e sugeriu um médico. Um açougueiro do interior? Ninguém botava a mão em mim.
Decidi que logo que acabássemos de beber, eu ia descer e telefonar para minha mulher.
Tentei, a ligação ia demorar, talvez o tempo, disse a telefonista.
Mais tarde voltei, fiz outra ligação e ouvi minha filha dizer que a mamãe tinha saído.
Pus o telefone no gancho e pedi um interurbano para o meu editor em Londres. Não falei coisa com coisa. Para justificar, disse que a ligação estava ruim, que depois voltava a chamar.
O meu rosto pegava fogo. Realmente achei que estava com febre. Fui pra rua e fiquei debaixo do toldo, respirando fundo, esperando ar frio aplacar o que ia dentro de mim.
Subi e conversamos enquanto nossas roupas secavam.
Em Paris encontrei o Ernest outras vezes. Os bares variavam, mas ainda tínhamos preferência pelo Dingo. Nos víamos também na livraria da Sylvia Beach, aonde chegavam livros do mundo inteiro.
Os anos foram passando e ele começou a aparecer com mais frequência nas colunas literárias. Irrequieto como era, gostava de viver as mais variadas aventuras. Tinha notícias dele através de amigos e da imprensa. Passava uma temporada na África, voltava pra América. Viajava pra Europa, fazia cobertura da guerra civil espanhola e em seguida aparecia em outro lugar.
Companheirão o bastardo. Pena que não esteja aqui ao meu lado no hotel, me acompanhando no vinho, de novo um Mâcon branco. De vez em quando vem a angústia, a velha angústia que me persegue a vida toda. As pessoas acham que eu não tenho nada, que sou um cara alegre e espirituoso. Sinto que estou chegando ao fim. As mãos tremem, e os pensamentos se sobrepõem uns aos outros, buscando o passado que vai fugindo. Queria ser corajoso e decidido como o Ernest pra acabar com tudo de uma vez.
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Postado por Anchieta Rocha
2/12/2015 às 10h30
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Peias
Sofri bastante na vida e as marcas ficaram nas minhas pernas. Muitos homens ainda me desejam. Sou uma mulher atraente. Disso eu sei.
Eram lisas e torneadas. O que passei, nem gosto de pensar. Com o tempo, as marcas foram aparecendo, veias estourando em todo lugar. Não tem gente que lê a mão das pessoas e falam de suas vidas? Cada parte das minhas pernas é um pouco do que vivi. Do lado de dentro, perto do joelho direito, veias roxas. Mais abaixo, na parte de dentro também, acima do calcanhar, manchas que surgiram por causa do trabalho pesado, logo depois da morte do marido. Quase na sola dos pés, vasos que nem mais sei por que estufaram. As minhas pernas são minha vida e minha história. Marcas surgidas por causa de nascimento de filhos, com elas não importo. As que doem por dentro, essas sim, doem muito.
Vivi um bom tempo casada, feliz, mas gostaria de começar uma vida nova. Mamãe sempre fala pra arranjar um namorado. Mas quando penso no meu corpo, ou melhor, nas minhas pernas, me entristeço. Se saio para um passeio, para uma festa, vou de calça comprida ou de longo. Gostaria de usar uma minissaia, um short, tenho um corpo bonito. Chego a ter sonhos que estou na praia usando biquíni - pesadelos também, como um, numa cadeira de rodas.
Outro dia achei que minha vida podia mudar.
Toda tarde, depois do serviço, via um rapaz no ponto do ônibus. No início não me chamou atenção. Mas seu jeito tímido me encantou. Passei a desconfiar que me observava. Quando eu virava o rosto pro seu lado, desviava o olhar. Muitas vezes assim, até que um dia criou coragem e veio até mim.
No início foi uma conversa cheia de pausa e de falta de assunto. Na hora em que entrei no ônibus, tenho certeza, ficou admirando o meu corpo enquanto eu subia a escada.
Vários dias passaram até que numa tarde as coisas mudaram.
Antes de deixar o serviço, fui no banheiro, coloquei uma saia e me aprontei.
Falamos de muitas coisas. Deixei o primeiro ônibus passar, a conversa foi ficando interessante. Com a chegada do outro ônibus, tive que ir embora, escurecia, disse pra ele. Senti as pernas pesadas enquanto subia os degraus e já me arrependia de ter quebrado o encanto.
Na tarde seguinte não apareceu. Veio o primeiro ônibus, o segundo. Peguei o seguinte.
Fui pra casa angustiada.
Não consegui me concentrar no trabalho no dia seguinte. Só esperava o fim do expediente pra ir pro ponto.
Passado um pouco ele chegou. Conversamos, não foi a mesma coisa. Resolvi ir embora logo. Preparei pra sentar, olhei pra fora, ainda me observava.
Abaixei o rosto. Foi a viagem mais longa. Ao chegar em casa, a primeira coisa que eu ia fazer era observar as minhas pernas. Tinha certeza que não seriam as mesmas de antes.
Naquela noite sonhei com ele. Sonhei que pegou minha mão ao descer do ônibus e me levou até o portão de casa. Disse da frescura do jardim e da beleza da noite. Segurou o meu rosto entre as mãos, beijou minha boca e me chamou de sereia.
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Postado por Anchieta Rocha
1/11/2015 às 22h14
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O estripador
"Jack conheceu Norma, prostituta. Apunhalou-lhe o coração. Apossou-se de suas entranhas com furor e gozo. Extirpou as nódoas de sua alma. Montou casa e amou-a visceralmente."
(Deste blogueiro, do romance Dias de vinho e de chumbo, Editora Jaguatirica)
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Postado por Anchieta Rocha
1/10/2015 às 10h58
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Do lado de fora
Todo dia é a mesma coisa: chega um dá um feijão, outros não dão nada, muitos resmungam. Mas o que eu mais queria é entrar no supermercado e andar com um carrinho daqueles que levam menino em baixo. Queria também ver minha mãe, meus irmãos, meu... - nem sei se é meu filho, gosto dele de todo jeito, meus amigos dizem que não é, minha mulher jura que é, eles falam que agora tem um exame que mostra quem é o pai.
Não sou letrado, burro também não sou. Sei ler um jornal, meio arrastado, mas leio. Tem hora que agarro se esbarro numa palavra que eu não conheço.
Já tive carteira assinada e fiz tiro de guerra. Mas de uns tempos pra cá dei de desandar com as coisas. Deve ser a bebida. Miolo mole não é.
Fico pondo atenção nos fregueses do supermercado e nos carros deles. Conforme, eu nem peço pra tomar conta. Uns, se bobear passam por cima. Tem um ricaço, me dá as coisas, nem que seja um troco. A mulher dele torce o nariz e larga dele conversando comigo. Quando ela não vem, o homem fala mais e fica rindo das coisas que eu conto. Tem vez que me goza também. Um dia, com a cara mais boa do mundo chegou e perguntou por que eu gostava de ficar sentado com a bunda nos saco - fez uma pausa, disse de lixo e riu. Eu não sei nada da vida dele, mas leva jeito que foi pobre também. Um cachorro cheira o outro.
Muita gente sai com umas sacolinhas de nada ou com a mão abanando. Tem vez que até dou um pouco do meu.
As meninas do caixa não tem nenhuma ruim. Até mandam umas coisas de comer quando dão de me ver triste. Se o gerente não está por perto, elas fazem sinal, eu corro pro bebedouro e encho a garrafa. Os empacotadores são gente boa. Tem uns sacanas também. Quando o movimento está fraco, eles procuram um pra tentar, igual o Dibanda - apelidaram ele por causa do andar torto - que num dia escondeu um rato morto no meio das minhas coisas e que eu só fui perceber mais tarde em casa.
Uma menina não sai da minha cabeça: a do guarda-volume. De tão parecida com minha mulher, parece que é até gêmea com ela.
Mas o pior de tudo é de noite no barraco quando não tem ninguém pra conversar.
Desde pequeno vivi numa casa cheia, gente entrando e saindo, tudo feliz, uma farra só. Nos sábados, muita coisa pra fazer, uma laje pra bater na casa dum parente, dum amigo, um samba. Do meio-dia pra tarde as mulheres e os meninos iam chegando, a gente acendia o fogo e assava carne. Uma casa de telhado é chique, mas o melhor lugar do mundo é na laje. Se a vida não está boa, você sobe, senta num canto, espera passar.
Depois que o menino nasceu, tudo mudou. Daí comecei a embaralhar com as coisas. Tinha dia que eu olhava no espelho e não sabia quem estava do outro lado.
Saí de casa com a roupa do corpo. Bati perna, dormi no tempo, acabei no meio de caixa de papelão e de saco de lixo.
Gente boa, gente ruim. Gente entrando, gente saindo. Uns te dão água, outros te dão rato morto.
Tenho medo, muito medo. Medo de pesadelo de noite. Medo de pesadelo, não. Pesadelo todo mundo tem. Medo de não ter ninguém pra bater no braço e me acordar.
Eu só queria entrar no supermercado. Não ia importar com nada. Só queria entrar, fazer ziguezague com o carrinho nos corredores, cantar as rodas nas curvas das prateleiras, mexer com o cara da balança, torcer uma uva e enfiar na boca sem ninguém ver, passar na menina do guarda-volume e chamar ela pra dançar quando a gente era noivo.
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Postado por Anchieta Rocha
15/9/2015 às 15h47
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Macarrão de Santa Casa
Me chamou de Macarrão de Santa Casa e voei nele. Um fio de sangue desceu pra blusa do uniforme. Veio pra cima de mim e chutei pra longe a faquinha de arco de barril.
Cheguei em casa todo sujo, a bunda rasgada. Mamãe perguntou o que eu tinha aprontado daquela vez. Antes de abrir a boca me enfiou a chinela e apontou pro quarto.
Mais tarde mandou meu irmão levar o prato de comida.
O cara mexia comigo toda vez que me via. Além de branquelo, eu era ruivo. Canário Chapinha, Cabeça de Fogo, tinha muitos apelidos. O mecânico mal me via, assobiava imitando passarinho. As amigas das minhas irmãs invejavam o meu cabelo. Eu morria de raiva.
No dia seguinte na escola, a conversa foi uma só: eu tinha tirado sangue no cara e tomado a faca dele. Os meninos chegavam e perguntavam — me fizeram contar a história muitas vezes. Aproveitava e floreava mais ainda. Sua irmã, a menina mais bonita da sala, nunca mais olhou pra mim e ainda espalhou que eu ia ter com o irmão mais velho. Eu estava ferrado. Em casa, mamãe de cara fechada o tempo todo. Na escola a menina me dava gelo.
Fiquei muito tempo tentando me aproximar dela. No início, se estava no murinho do pátio, eu tentava sentar perto. Me via, levantava e corria pra junto das colegas, procurando refúgio. Na festa junina da escola no changer des dames segurava minha mão e nada de ficar suada como antes. No torneio de futebol, me arrebentando pra chamar sua atenção, torcia contra mim, gritando o nome do goleiro adversário.
O pior estava pra acontecer - e aconteceu. Foi numa tarde chuvosa e barrenta no fim da aula. O professor Licínio contava as façanhas de Alexandre, o Grande. Perto da janela, Coalhada fez um movimento com a cabeça indicando a rua. O irmão do cara estava a fim de me pegar, completou Lelé.
O sinal tocou. Do fundo da pasta tirei minha arma.
Alisando a ponta do compasso que sempre mantinha afiado, caminhei pro portão, o rosto pegando fogo, a veia do pescoço pulsando.
Foi do irmão mais velho o soco que me atirou no chão. O outro me encheu de pontapé. A pancadaria só parou quando ela chegou, começou a gritar e abaixando me protegeu.
Naquele dia mamãe não me bateu. Chorou comigo, pondo compressa no olho inchado.
Fiquei humilhado. Na hora do recreio procurava um canto ou ia pra biblioteca.
Tinha poucas chances, mesmo assim não queria que acabasse daquele jeito. Uma vingança - ela ia ver.
Uma semana antes das férias, me aproximei de sua amiga.
- Minha mãe vai me mandar pro seminário. Acha que assim é melhor pro meu futuro, pra minha formação - ouvido de não sei de quem e que achava que impressionava.
Enquanto falava, me passava pela cabeça um filme italiano preto e branco que tinha assistido no Cine Brasil, o pai e a mãe ficando pra trás na plataforma, na janela do trem o menino dando adeus, a chuva miúda, uma musiquinha triste.
Deu pra ver o estrago na cara da amiga.
Os dias passavam, os professores não paravam de falar, e eu aguardava o sinal do recreio e o fim da aula pra percorrer com o olhar inquieto todos os cantos do colégio. De noite só dormia depois de projetar durante muito tempo na tela branca do teto do meu quarto as imagens que enchiam a minha cabeça. Uma hora ela afastava a mecha do cabelo, e em seguida uma lágrima descia no rosto pela minha partida. E eu mais bobo ainda, acreditando que o que eu inventava era verdade, segurava o choro até não aguentar.
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Postado por Anchieta Rocha
1/9/2015 às 10h06
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Julio Daio Borges
Editor
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