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Segunda-feira,
2/12/2019
Blog de Anchieta Rocha
Anchieta Rocha
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Escritor
Um dia, entrando na rua Erê, de volta da escola, lembrei que minha irmã tinha falado que o Cyro dos Anjos morava ali e que sempre passava em frente de nossa casa.
Já era famoso, fiquei curioso, com vontade de conhecer, conhecer não, conversar com ele. Conversar sobre o quê? Não teria assunto. Morria de vergonha de tudo.Mas eu não estava cansado de saber que um escritor, um artista não eram igual a todo mundo? Não estava acostumado a ver os jogadores de futebol, famosos como o Pampolini, que eu via de perto, no Campo do Cruzeiro, toda hora dando entrevista, aparecendo nos jornais? Os artistas que via na Rádio Inconfidência, quando Lurdinha, nossa vizinha, doida pra ser cantora, levava a gente aos ensaios, e com isso eu acabava ficando perto dos artistas, tudo de fora, o Alcides Gerardi, o Anísio Silva e até o Gregório Barrios de uma vez que veio cantar em Belo Horizonte? Não tinha o Guignard, famoso no Brasil inteiro que dava aula pro pessoal debaixo das árvores no Parque Municipal? E o boêmio do Rômulo Paes, popular na cidade, todo ano com uma música pro carnaval , sempre no Café Palhares tomando umas?
O escritor é outra história.
Você vê um cara cantando, uma bailarina, um ator de frente pro público. Faz sentido um escritor puxar uma folha de papel e começar a escrever na sua frente?
Um outro artista — o regente de orquestra. De costas para a plateia sabe que lá em baixo pode ter alguém que naquela hora está pensando na pessoa que ama, ou outro que está com o coração apertado, que não aguenta mais porque nunca amou.
Nunca vou querer ser escritor. Escrevo alguma coisa de vez em quando, uns poemas pra passar o tempo, tranco na gaveta pra ninguém ver. Ficar horas e horas na frente de um papel, numa solidão danada?
Eu nem sei por que escrevi isso. Tudo por causa do Cyro dos Anjos, sempre solitário. Taí, O Solitário da Rua Erê, pensei, até dá título de romance. Não sei nada da vida dele, nunca li uma linha do que escreveu. Passa sempre na nossa rua, com um livro debaixo do braço — talvez até minhas irmãs suspirem.
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Postado por Anchieta Rocha
2/12/2019 às 10h53
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Mãe
Início do meu romance Até Breve Mamãe (Páginas Editoras) a ser lançado amanhã.
Mãe,
A aula mal começou, a universidade já está em greve. E pior, o restaurante dos estudantes está fechado, e a comida na cidade é cara. Eu não queria falar nisso, a senhora já tem muito problema. Não esquenta, eu me viro. Lembra do fogareiro que pôs na mala na hora em que eu estava saindo? Está ajudando muito. Quando o negócio aperta, eu quento uns ovos, faço um macarrão e vou levando. As aulas podem não voltar logo, mas as pessoas da cidade ajudam a gente. Ontem mesmo comi na casa de uma mulher que falou que se a greve demorar a acabar, eles vão dar cesta básica pros alunos carentes que não podem ir pra casa. A viagem pra cá durou dois dias e meio. Não sei quando vou ver a senhora de novo. Deixa melhorar, eu junto um dinheiro e vou te visitar. E o pai deu notícia? E a Selminha, o menino vai nascer quando? O cara vai assumir ou não? Essa minha irmã desde pequena eu achava que ia dar trabalho.
Estou começando a ganhar dinheiro trabalhando com entrega de lanche. É de moto, mas a senhora não precisa ficar preocupada. Aprendi a “muntar”, como dizem os mineiros. Vai estranhar também um universitário num emprego desses. Aqui é comum encontrar pessoas formadas ocupando os mais variados tipos de serviço que nada têm a ver com o que estudaram. Outro dia mesmo conheci um taxista agrônomo. Todo mundo estuda. As duas filhas da faxineira da minha lanchonete fazem doutorado.
Não tenho carteira ainda, por isso rodo mais de madrugada por causa da polícia. Ganho pouco por corrida — “depois que você se habilitar eu te pago mais” — fala o patrão. Parece que ele gosta de mim. De vez em quando ganho uma gorjeta. Outro dia mesmo ganhei uma boa de um estudante, vou muito na casa dele, mas ele cheira a noite toda e põe o som na maior altura. Uma vez perguntou se eu queria ganhar uns trocados pra trazer umas encomendas. Desconversei logo que vi que era fria.
O alojamento eu não acho ruim, mas aqui em Viçosa faz um frio de rachar. Em algumas manhãs quando vou pra aula e que vejo as árvores e as montanhas, é até bonito. Parece que é noutro país, daqueles que aparecem nas gravuras das folhinhas, tudo branquinho por causa da neblina. Na universidade tem gente de tudo quanto é lugar. O alojamento das meninas é longe pra não ter galinhagem. O ruim do nosso é que às vezes é uma bagunça, principalmente nos dias de jogo. Os caras vestem as camisas dos times e ficam tocando corneta. Zorra mesmo é quando acaba a luz. É até gozado. Eles mexem com as pessoas do outro lado da represa. As meninas eles chamam de piranha e os homens de veado. É só pra passar o tempo, porque aqui todo mundo é do bem. Mas tem hora que é triste, mãe, muito triste. Dá vontade de chorar. Tem hora que dá medo. Medo de tudo. Às vezes acontece cada uma, igual semana passada que encontraram o corpo de um estudante boiando na lagoa, na frente do alojamento. Eles falam que foi suicídio. Aí a coisa aperta. No Natal foi pior. Quando chegou de noite, as luzes de enfeite dos prédios tudo piscando, a gente imaginando as pessoas lá dentro conversando na maior alegria, música vindo de tudo quanto é canto, e eu lembrando, criança ainda, o pai vivendo em casa, tudo bom, tudo feliz naquele tempo, e a turma aqui, um silêncio de endoidecer no alojamento, uma chuva miúda caindo, e nós enchendo a cara (não precisa esquentar — foi só no Natal) porque tem hora que o estômago dói, mãe, não é de fome, é de saudade. De saudade e de solidão também. Eu sei que não devia dizer essas coisas, desculpa, eu não tenho mais ninguém pra contar o que pega fundo. A senhora tem minha irmã aí. Mesmo desmiolada serve de companhia, uma vai encostando na outra. Já escolheram o nome do netinho? Ela quer menino ou menina?
Pra terminar e não falar só de coisa ruim, tem uma menina aqui, Lúcia, eu estou a fim dela. É da Nutrição, do tipo que qualquer sogra ia gostar: meiga, simples. Mora no alojamento também. Em algumas noites — e as daqui são bonitas, dá pra ver o céu de um lado ao outro da cidade —, a gente vai pro campus e conversa muito tempo sentado na grama. Outro dia, o friozinho chegando, joguei minha jaqueta nas costas dela e ficamos. De repente, uma estrela arranhou o céu e caiu lá pros lados dos eucaliptos. Lembra, eu pequeno, a senhora falando que quem via estrela cadente dava verruga nos dedos? A bênção, mãe.
Lançamento: dia 10/11, sábado, a partir de 11 horas, Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, BH.
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Postado por Anchieta Rocha
9/11/2018 às 14h22
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Cabeças Cortadas
Ele queria melhorar o seu padrão de vida. Palavreado este que não usava quando conversava com os que, como ele, viviam do lixo que catavam e vendiam. Alguns de seus colegas trabalhavam no outro lado da cidade, na Savassi, na Serra, no Santo Antônio, bairros de moradores de alto poder aquisitivo. Não queria ficar marcando passo na periferia a vida inteira. Tinha conversa boa e algum estudo.
Nas reuniões da associação dos catadores muito se conversava sobre como chegar no topo, ou seja, o acesso a lixo farto e rentável. O ano terminando, a coleta aumentando, seria uma boa ocasião pra fazer mais dinheiro. Ninguém, entretanto, sem mais nem menos, invadia a área de um colega. Cada um possuía o seu território.
Foi então que conheceu Chico, mais velho, mais experiente: “você precisa ver, ainda mais agora no fim do ano quando as pessoas começam a trocar as coisas e botar fora as velhas. O negócio é ir entrando no bairro grã-fino com jeito, devagarinho, te explico.” E foi falando. Contou várias histórias. Contou que no último Natal ele chegou no lixo dum prédio de apartamentos na Serra, deu um sai-pra-lá num cachorro que mastigava qualquer coisa e pegou uma sacola com arroz de forno, pedaços de peru com farofa, meia garrafa de vinho, papel brilhante e bolas de enfeite. Correu pra casa, acordou a mulher e os meninos, enfeitaram a mesa. “Acha cada coisa lá no alto, você precisa ver”, completou.
Depois da conversa com Chico, começou a preparar pra se mudar. Deu uma pintura no carrinho, trocou as tiras de pneu das rodas, passou graxa nos eixos pra parar com a chieira.
Na última cata, na véspera de mudar, ao virar uma caixa de papel no chão espalhando o lixo, perdeu o fôlego ao ver o retrato de um casal sem as cabeças. Ele e a esposa. Ela sim. Por mais que andasse variando por causa da bebida não tinha dúvida. O vestido também, estampado, tudo longe na memória. Namorados ainda, no clube do bairro. Assentado no meio-fio, aos poucos foi rememorando o passado. Buscou dias, datas, momentos, coisas adormecidas.
Todo sábado levantava tarde, tomavam café, vestia uma bermuda, entrava no bar e bebia com os amigos do bairro. Naquele sábado foi diferente. Não voltou pra casa pro almoço. Não voltou pra casa pro jantar nem pra dormir. Não voltou pra casa nunca mais.
Naquele sábado bebeu muito. Bebeu além do que costumava beber. Entrou no bar, arredio, os amigos estranharam, diferente de quando sentava com eles e iam: purrinha valendo bebida, conversa sobre o que acontecia no bairro, sobre política e futebol. Naquele dia foi prum canto. Os amigos insistiram, não deu conversa. Bebeu uma atrás da outra.
Caminhou muito antes de entrar no bar. Percorria as ruas do bairro buscando na memória os momentos felizes que tinham vivido. Namoraram, ficaram noivos, casaram, a festa no clube do retrato. Com o tempo, a paixão perdeu força.
O desleixo no cabelo, cada vez mais seca, nunca mais a de antes, tinha dito na véspera que ia embora da cidade, que precisava dar um tempo.
Depois que viu o retrato cortado ao meio, ele começou a fazer um negócio que pelo menos alivia: quando percebe que vai fraquejar, corre pro latão no quintal e enfia a cabeça na água fria e fica. Volta pro quarto, senta na cama, espera passar e começa a pensar. Se num dia sentir que não vai dar, ele mergulha a cabeça e fica esperando as borbulhas, esperando ver até aonde vai, até não ver mais nada, até acabar tudo.
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Postado por Anchieta Rocha
2/11/2018 às 23h32
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Um dia de maio
O próximo ônibus só iria sair dentro de duas horas. Acabei de abrir o jornal, um homem com uniforme da rodoviária pediu licença e sentou perto de mim.
— Será que um desses ônibus que vêm de Curvelo, de Montes Claros, não entra aqui em Pedro Leopoldo pra pegar passageiro pra Belo Horizonte? — perguntei pra ele.
— Não senhor. Eles passam direto.
— Então o jeito é esperar.
Espichei as pernas e abri os braços espreguiçando. Ele puxou um maço de cigarros do bolso e me ofereceu.
— O senhor trabalha aqui tem muito tempo?
— Faz tempo.
— Gosta do serviço?
— O serviço é bom, acontece muita coisa, ajuda a passar as horas.
— Que tipo de coisa acontece?
—Aqui dá de tudo. Confusão, briga, até tiro já teve. Choro é o que mais tem. Alegria também tem muita.
Não parava de falar.
— Tem gente, cada hora dum jeito: uns que não querem ir, outros doidos pra partir e os mais tristes de todos — os que esperam os que nunca vão chegar.
— E o senhor faz o que aqui?
— Eu cuido da faxina. No dia das mães e no Natal trabalho dobrado. Gosto do serviço porque estou sempre ocupado com alguma coisa. Se não tem nada pra fazer, eu converso com um, com outro, que assim ajuda a matar o tempo. Já tive emprego que pagava bem, mas ficava parado, o tempo agarrado, igual o de vigia, pensando na vida até não poder mais. Não aguentei e larguei. É por isso que gosto daqui. Na hora que vê, o dia já acabou. Até na minha folga eu venho pra cá. Não tenho amigo, não bebo, não vou a lugar nenhum. Uma vez ou outra, se aparece uma mulherzinha no jeito... Rabicho nunca mais. Levo pra casa, faço o serviço e pronto.
— Quer dizer que acontece muita coisa aqui.
— Se acontece! A Juracy, uma mulher da vida, durante muito tempo apareceu aqui com agrado pra despachar pro filho. Estudou o menino pra médico com o dinheiro que tirava debaixo dos homens.
Eu guardei o jornal na pasta, ele continuou.
— Tem coisa que eu não esqueço. Num dia de muito movimento como hoje, aconteceu uma coisa que vira e mexe eu fico pensando.
Pela pausa que fez pressenti que vinha uma longa história.
— Eu tinha acabado de largar o serviço, não queria ir embora. Desde cedo, sem mais nem menos, sem saber por que, vinha uma ardência do fundo do peito, fui adiando a hora de ir pra casa.
Sentei num banco no fundo e fiquei vendo o movimento. Era um fim de tarde frio e nublado. Eu olhava pra uma pessoa, depois pra outra, imaginando o que podia ir na cabeça de cada um, mania que tenho.
Fiquei nessa distração até que sentou perto uma mulher com um menino de colo. Até estava preparando pra ir embora. Não fui porque eu não queria que ela achasse que eu estava saindo por causa da chegada dela. Eu não gosto que os outros cismam comigo.
Depois que viu meu uniforme pediu informação sobre o ônibus que ia pegar. Eu disse que com a chuva forte que tinha caído, quase todos os horários estavam com atraso, e que a estrada que ela ia pegar devia estar bem fustigada.
A conversa foi espichando. A mulher era uma morena bonita duns olhos vivos. O menino rosado e gordo.
— Ela vinha de longe?— perguntei.
— Vinha, viagem de um dia. Tinha acabado de desembarcar. Ia pegar outro ônibus e descer na roça onde tinha morado até um tempo atrás. Na cidade grande tinha ficado grávida dum rapaz que namorou. Estava levando o menino pros pais conhecer e não aguentava mais esperar a hora de chegar com a criança.
De vez eu quando eu contava pra ela alguma coisa da minha vida, mas não entrava no pormenor. O ônibus dela custava a chegar, a conversa espichava.
Uma hora, levantou e perguntou se eu não ligava de segurar o menino enquanto dava uma chegada no banheiro.
Fiquei sem jeito, um conhecido podia passar, peguei ele assim mesmo.
Dois olhos pretos e grandes. Apertei a criança no peito e senti o calor. Falei umas coisas. De tão novo, nem ria. Não demorou, fez uma careta. A golfada quente escorreu pra minha camisa.
Voltou, devolvi o menino, e pra não perceber o que tinha acontecido, cobri a mancha com a marmita.
O ônibus encostou, eu fui pra casa.
Entrei no quarto, abri a porta do guarda-roupa e fiquei me vendo no espelho, os braços cruzados, segurando o resto do calor que tinha ficado do menino.
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Postado por Anchieta Rocha
1/2/2018 às 15h58
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Procissão
Na Sexta-feira Santa eu peguei a tocha e fui pra frente da porta principal da Matriz de São Sebastião pra puxar a procissão. Diferente dos outros dias, a igreja era uma animação danada. Gente de todo lugar, muitos de longe. Achava legal, de batina e sobrepeliz, importante, todo mundo olhando, do lado dos padres o tempo inteiro. Nos outros dias, sem ninguém pra ajudar no altar, tinha que acordar cedo, mamãe me obrigava ir. O sacristão não podia ficar por conta do padre no altar. Toda hora tinha que sair pra fazer alguma coisa, principalmente pôr pra fora algum cachorro que entrasse na igreja, o que era o que mais irritava o padre. Num domingo, missa das nove, dando comunhão, apontou um peludo na porta lateral. O padre bateu o pé com tanta força pra assustá-lo que a Filha de Maria se engasgou com a hóstia.
Tocar sino era do que eu mais gostava. Dependurava na corda, tomava impulso e dava uma volta grande do lado de fora da torre, a cidade embaixo, as pessoas achatadas no chão. O Nosso Senhor dos Passos me dava medo: os olhos esbugalhados, a cabeleira de gente. Toda vez que passava perto, virava o rosto pro outro lado. A essa, onde os mortos recebiam as últimas bênção, me amedrontava também. Pior ainda era na quaresma quando cobriam as imagens com panos roxos.
Eu gostava da Sexta Feira Santa por causa da animação na igreja. Ficava impaciente pra chegar a hora da cerimônia, pra sair de casa, principalmente por causa do falatório da mamãe no ouvido. Tudo era proibido. Não podia jogar bola, gritar, nem brincar. Tudo era pecado. Os bares e a padaria não abriam. No rádio só música triste. Tinha que jejuar, a barriga roncava o tempo todo.
Umas duas horas antes da procissão, o sacristão saiu com a matraca pro adro da igreja e começou a tocar — dentro de pouco tempo o descendimento da cruz.
Entrei no quarto e comecei a me aprontar. Sentei na cama e vesti a calça curta branca. Tirei do criado-mudo duas gominhas, estiquei as meias e as prendi. Calcei o sapato de sola de pneu e, pra não suar debaixo da batina, vesti a camisa mais fina. Reparti o cabelo de lado e fui pra sala. Mamãe falou que estava cedo. Tinha muita coisa pra fazer antes da procissão — inventei. Eu queria ficar andando em volta da igreja, vendo o movimento.
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A sacristia estava cheia. Cheiro de vela, de flores, de paramento. Dona Mercês, que organizava tudo, disse pra ir me vestir. Fui até o armário e tirei três batinas azuis com cheiro de naftalina. A primeira pega-franga, a segunda largona. A terceira, ainda com pingos de vela da última procissão caiu bem. Vesti a sobrepeliz. Enfiei a mão debaixo da batina e peguei o espelhinho redondo com o retrato da Dorothy Lamour. Ajeitei o cabelo. Sorri com o canto da boca. Eu tinha certeza que as meninas iam ficar olhando pra mim.
Quando acabei, Dona Mercês me deu o turíbulo pra acender. Fiquei todo metido. O turíbulo tinha que ir junto do pálio com o Nosso Senhor Morto.
Botei carvão até na boca e fiquei esperando pegar. Joguei incenso, a fumaça perfumou tudo em volta.
Na hora que fui entrando na sacristia, Dona Mercês pegou o turíbulo da minha mão e entregou pro filho dela. Baixei a cabeça e fiquei tirando os pingos de cera na batina com a unha. Depois não liguei mais. Quem levava a tocha também era importante porque puxava a procissão. Aí chegou o Zeca, começou a orientar os coroinhas, virou pra mim.
— Você vai andando encostado no meio-fio, sempre alinhado com a tocha que puxa a outra fila, prestando atenção no menino do crucifixo. Se ele parar você para. Se andar devagar você também anda. Não tira o olho dele.
Um dia até deu vontade de levar o crucifixo, mais importante, puxava a procissão, mas tinha medo de entrar numa rua errada e bagunçar tudo.
Passado um pouco o padre chegou suado, nervoso, reclamando do atraso da procissão. Logo em seguida a Nossa Senhora, a Madalena e a Verônica — todas de vestido comprido, carregando uns negócios que eu não sabia pra quê. A Nossa Senhora, de tão branca, parecia que tinha saído de um sanatório. Madalena, com um cabelo de todo tamanho, promessa pra sarar de uma doença de nome complicado, não ia cortar enquanto não ficasse boa. Contou pra minha irmã que queria fazer permanente pra agradar o namorado. A Verônica era a mais bonita. Conversava comigo, eu baixava a cabeça com vergonha. Tinha vez, do alto da construção do lado da sua casa eu ficava vendo ela tomar banho. Tão logo chegava do serviço, eu subia correndo as escadas, me escondia atrás de uma pilha de tijolo até se enrolar na toalha.
Saindo da igreja virei pra trás. Fiquei inchado vendo aquele povaréu todo me seguindo.
O vento leve de abril assustava as chamas das tochas.
Nesse dia a procissão não acabou.
A rua Juiz de Fora toda enfeitada. As luzes do casarão da Dona Druziana e uma toalha estendida na janela da casa do pessoal da carvoaria. Do alto do sobrado do Chiquinho a rama de uma samambaia descia até não poder mais. Na pensão, o parapeito coberto de flores. No Seu Juquinha um altar. O incenso, o manjericão, a arruda, as velas, os jardins das casas. Tudo bonito demais.
Virei a esquina na fábrica de bebida e entrei na Rua Tupis. A minha mão suava. Mais andava, mais forte batia o coração. Toalhas e flores que não acabavam. Em alguns locais a procissão parava pra ouvir o canto da Verônica. O silêncio aumentava. Sua voz corria as ruas, entrava nas casas e atravessava a minha garganta. Eu levantava a cabeça e comovido procurava qualquer coisa no céu. Então me dava vontade de ser um menino bom, de não desobedecer mamãe e prometer a mim mesmo nunca mais subir na construção e ficar olhando a Verônica tomar banho.
Quase chegando na igreja a procissão cresceu mais ainda. A lua rebentava pros lados da Serra da Piedade.
Em vez de entrar na igreja e seguir o rapaz do crucifixo, me veio na cabeça a vontade de fazer tudo de novo e passar pelos mesmos lugares que tinha passado. Toda vez que completava uma volta, parava em frente da igreja e tornava a caminhar. Fiz isso repetidas vezes. Fiquei dando volta sem até não poder mais. A procissão daquela sexta-feira nunca acabou.
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Postado por Anchieta Rocha
14/4/2017 às 11h47
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Rua da passagem
Com tantos enterros passando em frente de sua casa, Ferreira já não estranhava mais a morte.
A rua, afunilando na subida íngreme, terminava no portão de entrada do cemitério. Percebia-se o alívio dos que acompanhavam os mortos, tão logo os caixões eram apoiados nas beiras dos túmulos.
Menino ainda, o pai comprou a casa. No início a mãe dizia que não ia aguentar, os enterros passando debaixo da janela o tempo todo. Fez o marido jurar que mudariam pra outra casa longe dali. Acabaram ficando a vida inteira.
Ferreira cresceu, estudou, trabalhou, casou, os filhos nasceram, os mortos não paravam de passar.
Um dia, houve tantos, um povaréu sem parar, as pessoas se embolando, gente seguindo caixão errado. Se o tempo não ajudava, se um parente do morto de cidade distante demorava a chegar, os sepultamentos iam até o anoitecer, pouca gente acompanhava, povo medroso igual não tinha.
Pelo tamanho do cortejos e dos tipos de caixões, dava pra perceber quem ia dentro. Os dos pobres, poucos seguiam, um bolinho de gente de cabeça baixa, uma vez ou outra um choro cortando a reza. Nos dos ricos e importantes, tanta gente, os que ficavam pra trás iam conversando sobre negócios, sobre acontecimentos e até riam. Havia também os que levavam junto alguns de seus pertences: uma bandeira de um clube de futebol, um vestido de noiva, e até certa vez um pandeiro, quebrando o silêncio com os solavancos do caixão.
No dia de finados, a rua era uma festa. As barracas de flores, de velas, de bebidas, guloseimas e salgados ocupavam os passeios.
A rua também tinha suas histórias engraçadas como as dos bêbados perdidos de noite entre os túmulos amedrontando a vizinhança. Estranhas também, como a da viuvinha, casada de pouco, que todos os sábados levava flores pro marido morto na explosão da pedreira e que um dia não mais foi vista fazendo o caminho de volta.
Os moradores davam conta da vida de todos os que eram levados pro cemitério. Se os que iam ser enterrados passassem sem deixar uma história, pequena que fosse, ficava um grande vazio. Nada sabendo de quem ia no caixão, entravam para suas casas acabrunhados.
Foram anos e anos e as mortes passando. Morte de todos os tipos: por acidentes, paixões, rixas de família, homens lavando honra, suicídios, por amor e desamor. E mesmo que irresignáveis, as incontáveis naturais. Vez por outra os caixões lacrados — temor de doenças contagiosas, os lenços nos nariz. E os das crianças, alguns de tão pequenos levados junto ao peito pelos pais, embalando-as pela última vez.
As mulheres eram as que mais visitavam os túmulos. Subiam com as mãos segurando flores, terços, velas, o olhar enterrado no chão. Na volta os rostos erguidos, desencurvadas, confortadas.
Com o passar dos anos, a mulher do Ferreira também acabou se acostumando, até sentindo falta da rua quando viajava ou tinha que passar uns dias com as filhas. Tão logo voltava, corria pra casa dos vizinhos em busca de novidades.
O Ferreira não saía pra lugar nenhum. Uma vez ou outra ia na casa do Nicanor para uma partida de dama. No mais ficava o tempo todo na varanda, varrendo a rua com o olhar pra cima e pra baixo. Nunca pôs os pés no cemitério. Iria lá só num único dia, dizia. E quando esse dia chegasse, que chegasse, completava.
Foi então que tudo acabou. De uma hora pra outra, os enterros pararam de passar, as pessoas já não mais eram vistas, não mais se encontravam nas portas das casas.
A tristeza tomou conta dos passeios, das varandas, das janelas. Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo.
A ordem tinha sido dada. Os cortejos não mais iam poder transitar pelas ruas da cidade. Para facilitar o acesso dos veículos, uma entrada tinha sido construída do outro lado do cemitério. Chorar os mortos daquele dia em diante só no velório.
As histórias foram rareando, a rua nunca mais foi a mesma. O Ferreira foi o primeiro a morrer.
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Postado por Anchieta Rocha
28/2/2017 às 23h19
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Noite feliz
Quando cheguei, mamãe falava pra vizinha dos tempos difíceis após a mudança pra capital.
— Aconteceu numa noite de Natal, igual à de hoje, chuvosa também.
Me passou a garrafa de refrigerante.
— Foi duro criar os filhos. Com a morte do pai deles, tudo mudou. Nunca pensei que ia passar tanta penúria. Mal acabava de tirar a mesa, vinha o sofrimento por não saber o que tinha pra comer no dia seguinte. Numa manhã, a hora do almoço chegando, nem um fubá prum caldo, um tempero, nada. Saí pra não ver ninguém. Puxei a porta e joguei o xale no ombro. Fiquei dando volta no bairro esperando o tempo passar. Quando perdi as forças, entrei na igreja e fiquei até criar coragem pra voltar pra casa.
As moças arranjavam cada emprego, nem gosto de pensar. O mais velho era o mais preocupado por se sentir no lugar do pai. Mexia daqui e dali, chegava em casa com as mãos vazias. Os pequenos, o coração cortava. Traziam dinheiro da rua engraxando sapato, entregando marmita. Este aqui — apontou pra mim — um dia chegou da aula e pela cara perguntei o que tinha aprontado. Por sorte o chinelo que atirei nele foi bater na janela do vizinho. Amuado, disse que a professora não ia deixar ele assistir aula sem o livro de leitura.
Ela virou pra uma das meninas e pediu pra fechar a janela.
— Aí veio a enchente. Não deu pra salvar quase nada. Com a água no peito, saímos do beco segurando a corda que o vizinho atirou. Quando baixou era tudo barro. No fim da tarde, um dos meninos com a cara mais alegre do mundo apontou no outro lado da rua com um rolo de pano debaixo do braço. Não gostei e passei um pito. Não queria ninguém tirando proveito da situação. Não era o que eu estava pensando. Com o temporal, as faixas de propaganda tinham sido arrancadas dos postes. Uma das meninas pegou, abriu, embolou, entrou em casa, afastou a tampa do alçapão da sala com a vassoura e jogou pra dentro do forro.
Mamãe prendia a atenção de todos.
— Um pouco antes da meia noite, reuni todo mundo e levei pra Missa do Galo. A Igreja de São Sebastião estava cheia. Sentamos perto do altar lateral de Santa Edwiges, protetora das causas perdidas.
Eu não tirava os olhos da minha família. Era uma filharada bonita. Baixei a cabeça tentando segurar as lágrimas. Pedi a Deus que fossem felizes. Os mais velhos me olhavam com compaixão. Os pequenos, entre uma cochilada e outra, boquiabertos, observavam: a abóboda enorme, os anjinhos louros, os olhos esbugalhados das imagens.
— Mãe — interrompi —, eu era coroinha e devia estar no altar ajudando o padre Américo.
Ela sorriu e continuou.
— Antes da missa acabar, minha filha do meio cochichou no ouvido do irmão mais velho e veio até mim. Deu uma desculpa e disse que ia embora. O namorado estava esperando do lado de fora da igreja, eu tinha certeza. Os dois em casa sozinhos, a outra filha entendeu minha aflição, segurou meu braço pedindo calma.
— Quando a missa acabou, o coro cantou Adeste Fideles, os meninos saíram correndo na frente, eu lembro com se fosse hoje — acrescentou minha irmã.
— Na mesa da sala — mamãe contava detalhes — a travessa de arroz de forno avermelhado, e na bandeja um frango assado. Forrando a mesa, uma toalha improvisada: a cortina que separava a sala da cozinha, que na correria da enchente alguém arrancou e guardou. Antes de servir, pedi uma prece pro pai deles.
Acabei de comer, as três me chamaram. Entrei no quarto e vi as roupas de cama, tudo branquinha, cada uma mais bonita, nada daquela molambeira que eu não aguentava mais ver. Das faixas de propaganda guardadas no forro da sala no dia da enchente, as meninas fizeram o meu presente de Natal.
Demorei a pegar no sono. Só dormi quando virei pro canto e percebi na fronha, perto do meu rosto, uma mancha azul do tamanho dum bago de feijão, resto duma letra que fiquei raspando com a unha até fechar os olhos.
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Postado por Anchieta Rocha
24/12/2016 às 17h53
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Amor muito mata
O livro carta romance Os Sofrimentos do Jovem Werther de Goethe provocou angústia tão grande na sociedade europeia após sua publicação, que muitos jovens se suicidaram. Esta declaração de amor de Werther para Carlota é considerada uma das mais belas da literatura universal:
“Retido hoje por uma reunião a que não podia faltar, não fui à casa de Carlota. Que hei de fazer? Mandei lá o meu criado, apenas para ter junto de mim alguém que se tivesse aproximado dela. E com que impaciência o esperei. Com que alegria o vi regressar! Deu-me vontade de beijá-lo, mas tive vergonha.
Conta-se que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, furta-lhe os raios e fica por algum tempo luminosa durante a noite. Pareceu-me haver acontecido o mesmo com o meu criado. Só o pensar que os olhos de Carlota tinham pousado em seu rosto, nas suas faces, nos botões da sua libré, no seu colete, fez com que ele se tornasse para mim tão precioso, tão sagrado!”
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Postado por Anchieta Rocha
7/7/2016 às 23h25
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Dente de Ouro
Eu já tinha pensado em ir embora uma porção de vez. Parecia castigo. Começava a arrumar a mala, acontecia uma coisa, tudo mudava. Ir pra onde? Pra qualquer lugar, deixar esta cidade feia, as casas encardidas, um rio fedorento, um povinho esquisito, fuxiqueiro, que não olha na cara nem ri.
Minha vó conta, de menina, terra boa de viver, todo mundo conversava, as pessoas iam na casa dos outros, faziam agrado, tinha festa, a ruindade começando depois que um padre marcou de fugir com uma moça. Na hora o pai e os irmãos apareceram, levaram ele pra Pedra Preta, arrancaram a batina e botaram fogo. Na roupa de homem, com o crucifixo de cabeça pra baixo amaldiçoou a cidade.
Depois, tudo de ruim danou a acontecer. Não demorava, marido lavava a honra, rixa toda hora, tocaia não tinha conta.
Um dia, catando feijão, no meio dos bagos, duma chacoalhada da peneira, um dente de ouro apareceu. Apartei com a faca, venci o nojo e peguei. Esfreguei na toalha, o brilho avivou. Não tardou, a ideia: vender, comprar um vestido, fazer um brinco. Deitei a cabeça na mão e dei de imaginar de onde tinha vindo o tal: da boca de moço bonito, de quem colheu o feijão, de quem ensacou. Daí pra frente cismei que tinha que encontrar o dono, tarefa difícil, o povo da cidade não abria a boca pra nada, terra de pouco riso, só arrelia, sem festa sem alegria, nem dava gosto de pôr uma roupa bonita.
— Menina, esse feijão sem catar até agora? — Chega a mãe.
Pus empenho em encontrar o dono do dente. Andando na rua sem dar conta de nada, abobalhada, olhando pras pessoas, atrás dum sorriso que me levasse ao altar, até lembrei da história da Gata Borralheira que li de pequena, o príncipe procurando o sapato da moça. Ninguém abria a boca. Cidadezinha! Um dia achei que as coisas podiam mudar. Armaram um circo no campo de futebol. Na hora dos palhaços ninguém riu. Arriaram a lona, o circo não ficou dois dias na cidade.
Numa tarde, depois das tarefas da casa, o corisco na cabeça: por que eu não ia atrás do prático que cuidava dos dentes do povo da cidade?
Dei com ele trabalhando numa dentadura. Tirei meu achado do lenço e mostrei. Ele coçou o queixo, olhou pro lado, olhou pra cima, foi num caderno na mesa.
Não é que o do dente era o dono da venda?
Era um mulato bonito. Cheguei, pedi o que queria, sorri, paguei. Abriu a boca pra agradecer e nada de mostrar os dentes. Fiz que ia comprar uma goiabada, perguntei o preço. Cismei que estava de graça comigo. Mesmo falando coisa do meu agrado, eu não queria abrir a jaca de uma hora pra outra. Peguei o feijão, ele falou qualquer coisa pro ajudante. Naquela boca não ia encontrar a resposta, pensei. Podia até estar escondendo a banguela, no que eu achei que era por vaidade.
Uns dias mais pra frente eu voltei na venda.
No lugar do dente um ferrinho. Dali corri pro consultório do prático: “O ferrinho tem uma rosca pra segurar o dente.” — Me explicou.
Volto pra casa, a mãe:
¬—Tava de graça com o dentista?
— Fui botar Gaiacol no dente de trás que tava doendo — inventei.
O tempo passou e não voltei na venda.
Uma noite a mãe chamou pra ir nas barraquinhas da igreja. Ela entrou e eu fiquei conversando com a Rita.
O dono da venda apareceu. Falou que eu estava sumida, minha amiga entendeu e afastou.
Numa hora criei coragem e contei do achado. Mostrei o dente, ele pegou, olhou, abriu a boca, torceu ele no ferrinho. Aí deu de falar.
— Eu estava um dia na venda entretido com o vai e vem do povo na rua. Duns tempo pra cá eu peguei a mania de ficar bulindo neele. Eu torcia, distorcia, um dia afrouxou de vez, destrambelhou e resvalou pro compartimento de feijão. Tão logo vou pegar, os músicos da Lira Santa Cecília, muita gente pedindo refresco, dou com o ajudante acabando de revolver o feijão. Eu não sabia se procurava o dente ou se servia os músicos. Sumiu de vez.
Contei a história pra Rita.
Uns dias depois encontrei o prático na rua. Falou que o dono da venda estava de noivado marcado.
Fiquei sem graça, não sei se percebeu.
Mais uns dias pra frente, na varanda de casa, começou a martelar a ideia de ir embora, começar a vida noutro lugar e terminar os estudos. Fiz uma marca: depois da festa da padroeira. Se dependesse de mim nunca mais punha os pés neste fim de mundo. Não aguentava mais. Só tinha dó da mãe. No dia eu nem despedia dela, só deixava um bilhete. Pra não atentar com nada, comecei a esconder as roupas da viagem na casa da Rita.
No começo das festas, castigo, bate uma dor de dente, no de trás. Bochecho com cachaça, ponho fumo no buraco, cera do Dr. Lustosa e nada. A dor aumentando, a mãe f tudo fez pra me tirar da cabeça a ideia da consulta.
— Filha, dentista é uma gente danada. De tanto relar nas bocas das moças... É de cima que começa. Ainda mais esse tal.
Verguei toda pra trás na cadeira do consultório.
— É igual lança-perfume. Uma zonzeirinha gostosa. Aí eu ponho um remédio pra matar o nervo, você vai pra casa e amanhã já tá boa pra festa.
Veio com o lenço, eu cheirei.
— Mais fundo.
Minha vista escureceu.
Abri os olhos. Chamei ele, nem sinal. Senti uma ardência entre as pernas. O dedo voltou sujo de sangue.
Falei com a mãe que o dente doía e virei pro canto.
Todo dia eu sento na mesa da cozinha, cato feijão, vou na casa da Rita e converso com ela. A mala continua lá. Vez por outra paro na estação, fico olhando. Qualquer dia eu vou embora.
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Postado por Anchieta Rocha
9/6/2016 às 11h19
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Começos Inesquecíveis
A revista Bule pediu a seus leitores, colaboradores, seguidores do Twitter e Facebook que apontassem os melhores começos de livros da literatura universal. Cinquenta e cinco livros foram citados. Desses, a revista selecionou 15. A lista ficou assim: Moby Dick, de Herman Melville; Notas do Subsolo, de Dostoiévski; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; A Lua Vem da Ásia, de Campos de Carvalho; O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger; O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; A Metamorfose, de Franz Kafka; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Anna Kariênina, de Liev Tolstói; O Ventre, de Carlos Heitor Cony; Lolita, de Vladimir Nabokov; O Jardim do Diabo, de Luis Fernando Verissimo; Dom Quixote, de Miguel de Cervantes e Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez
Que leitor não ficaria maravilhado ao deparar com “Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes”, de Vladimir Nabokov, ou intrigado com “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”, de Franz Kafka?
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Postado por Anchieta Rocha
12/5/2016 às 22h25
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Julio Daio Borges
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