Vivo um misto de apreensão e ansiedade. A apreensão vem da época em que vivemos, dura época. Não bastasse esse vírus que está acabando com vidas, tanto aquelas que partem como aquelas que ficam, ainda teremos uma disputa política cheia de revés. Espero que um dos casos (epidemia ou eleição) não anule o outro, prestemos atenção. A ansiedade vem da minha necessidade, desde pequeno, de ir ao cinema. Claro, não o farei até que surja uma vacina funcional, mas fica a expectativa de que isso ocorra logo.
Enquanto o dia não vem, fico entre o filmes que tenho em DVD e aqueles que são exibidos nos canais de TV. Falando nisso, gostei muito do que foi exibido em Gramado esse ano, achei Todos os Mortos (Caetano Gotardo e Marco Dutra, 2020) um filme sensacional, mas King Kong em Asunción (Camilo Cavalcante, 2020) fez por merecer o prêmio. Mas em uma retrospectiva de filmes que foram exibidos em Berlim (?), Assisti Não Estou Lá, de Todd Haynes, lançado em 2007. Gosto muito de Bob Dylan, principalmente no início de sua carreira, ver o filme, com brilhante atuação de Cate Blanchett, deu mais gosto a minha admiração.
Porém, Não Estou Lá traz uma certa melancolia. Embora aparentasse uma vida sossegada, como ele mesmo disse “um homem é um sucesso se pula da cama de manhã e vai dormir à noite, e, nesse meio tempo, faz o que gosta”, a vida Dylan sempre foi uma luta, hora contra o governo e o militarismo, outras vezes contra a sociedade. O fato é que no filme de Haynes existe um existencialismo aterrador, que tenta transmitir tudo o que o cantor passou em todos seus anos de existência, desde a sua infância até sua morte. Para aqueles que prestarem mais atenção aos detalhes, é um filme pesado, Mas essencial para quem gosta de um bom filme.
Mas como o filme é bom, deixou aquela sensação de frieza, a dita melancolia. Já sem muita esperança no mundo em que vemos (novamente!) acontecer tudo aquilo a que Dylan lutava contra, decidi seguir uma dica e assisti Wiñaypacha, filme peruano dirigido por Óscar Catacora. Esse possui um valor cultural e antropológico, apresentando um casal de idosos que vivem em uma região remota dos Andes. Uma produção sensível, que se não anima por sua história, bem escrita, porém triste, nos encanta com sua beleza de cenários e cores. Os protagonistas são em suas vidas aquilo mesmo que é mostrado pela câmera e mesmo sem saber até então o que era cinema, atuam de maneira primorosa.
Em poucas horas vivi um misto de emoções. Passei de um revolucionário a um homem sossegado do campo, um astro do folk a um traidor popular. Ainda enfrentei a solidão de uma montanha isolada e vi a magia de uma cultura que, infelizmente, morre a cinco mil metros de altura.
Isso é o que faz o cinema ser tão importante na vida de tantas pessoas. Um filme pode ser usado como um meio para muitas coisas. Pode despertar esse misto de emoções, ser usado como um protesto ou despertar a curiosidade cultural e/ou social de um povo. Uma história, se bem escrita, tem esse poder e hoje em dia descobrimos que podemos vê-la em qualquer lugar, claro que a tela grande é sempre a melhor opção, e que independente da situação, sempre vamos precisar delas.
“Quando a polícia siciliana finalmente quebrou a máfia no começo dos anos 90, prenderam alguém – esqueço o nome dele, mas era o segundo no comando – e um repórter italiano perguntou para ele se havia algum filme fiel sobre aquele mundo. E ele disse: ‘Ah, ‘Os bons companheiros’, na cena em que o cara diz ‘Você acha que eu sou engraçado?’. Porque essa é a vida que a gente leva. Você pode estar sorrindo e rindo num segundo e [estala os dedos] numa fração de segundo está numa situação em que pode perder a vida”.
Esse depoimento de Martin Scorsese é a melhor descrição e metáfora de seu filme, “Os bons companheiros” (“Goodfellas”), lançado em 1990. Um filme que se tornaria, como outros do diretor , um ícone do cinema por, dentre tantos motivos, a inventividade da linguagem e da representação.
Talvez, inventividade não seja a palavra certa. A película do diretor norte-americano é mais do que isso. Ela faz parte de um gênero e, ao mesmo tempo, o subverte; é linear, não sendo previsível; é sobre o poder, mas quem atira sempre é o instinto.
A trajetória de Henry Hill ( Ray Liotta ) de menino a homem encantado com o mundo da máfia, nos é mostrada em uma narração que parece nos trazer os elementos perfeitos de mais uma história de gangsters. Mas Scorsese não se trai.
“Pensei no filme como uma espécie de ataque” (“Conversas com Scorsese”, de Richard Schickel), diz ele. Essa fúria é a grande marca desse frenesi imagético. Scorsese quer que o espectador, como Joe Pesci (Tommy), sinta o coice da Magnum 44 romper, inesperadamente e, ao mesmo tempo, em slow motion, paralisar você. Pow! Pow!
Isso pode parecer um elogio à violência gratuita e, como nos filmes conhecidos de gangsters, transmitir uma sensação de onipotência e glamour. Mas o filme não é apenas um contraponto desse gênero. Ele é, principalmente, a ascensão e derrocada desse mundo. Não é uma tragédia, e não é uma expiação.
Scorsese conta sobre o espanto da plateia ao exibir o filme para o elenco do seu “O aviador” (2005). O que impressiona, diz o diretor, é seu aspecto violento, mas de uma violência que mais se oculta do que se mostra.
Sob esse aspecto, “Goodfellas” seria exatamente o oposto do filme de 1931. Mas, o que está em jogo, além da exibição dessa violência “escondida”, é, como em os “Os bons companheiros”, ambos os protagonistas mergulham (não submergem, é diferente) nessa vida impulsiva e se deleitam com o poder. É, demasiadamente, humano.
É isso que confere a essa obra um de seus fascínios. Esse filme não apenas quebra a ideia do gênero filmes de gangsteres, como se convencionou mencionar. É a mão do narrador que confere a ele o status de obra de arte.
Como diz Edward Buscombe em “A ideia de gênero no cinema americano”, “a principal justificação do gênero não é a de que permite a diretores meramente competentes fazer bons filmes (embora possamos estar agradecidos por isso), mas a de que permite a bons diretores tornarem-se melhores ainda”.
Scorsese, como sempre, imprime sua mão, para lembrar uma expressão de Walter Benjamin utilizada aqui, provavelmente, de modo indevido, na argila de sua experiência. Sua história é a de ítalo-americanos, mas seu filme é sobre o viver indomável.
Na edição especial em DVD do filme, Thelma Schonmaker, sua montadora, ilustra, em sentido próximo, esse aspecto. Diz ela: “esse foi um daqueles filmes que montamos como um cavalo. Foi tão bem escrito e moldado por Pileggi (autor do livro, “Wiseguy”, que deu origem ao filme e também roteirista da película junto com Scorsese) e Marty (Scorsese), que tinha sua própria energia, sua própria força. Enquanto Marty o criava, já sabíamos que seria incrível. Era muito forte e tinha muito ritmo”.
Força e ritmo. É a síntese dessa linguagem que atravessa todo o filme. A cena dos corpos exibidos em diferentes lugares é guiada pela música; o close em Jimmy Conway (Robert De Niro) no balcão destaca seu contido cinismo. Sim, forma e conteúdo. É impressionante que, hoje, isso pareça, cada vez mais, algo raro.
Basta ver, por exemplo, outras duas sequências icônicas, a da entrada de Henry no Copacabana em uma única tomada usando uma steadicam (novidade na época) e o final frenético do neurótico personagem. Inventividade não é a palavra certa.
“Os bons companheiros”, como grandes obras, foi tão imitado, copiado, citado e, como sempre, na maioria das vezes, das piores formas, que, talvez, jovens cinéfilos acreditem que Tarantino tenha criado o contraponto imagem/trilha sonora.
A clássica cena, “Você me acha engraçado?” em que Joe Pesci e Ray Liotta improvisam só pôde ser realizada exatamente porque forma, conteúdo e ritmo formam um único elemento fílmico.
Inimitável, porque moldado em força e ritmo, a obra prima de Scorsese ainda espanta, encanta e vibra. Como a vida na qual “você pode estar sorrindo e rindo num segundo e [estala os dedos] numa fração de segundo está numa situação em que pode perder a vida”.
Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia, ed.ufpa. Site: Relivaldo Pinho [email protected]
Lá em 1956, George Stevens lançava um dos maiores clássicos de sua carreira. Carreira essa interessante, onde figuram filmes como Um Lugar ao Sol (1951) e Os Brutos Também Amam (1953). Giant (Assim Caminha a Humanidade, no Brasil) é uma adaptação do best seller homônimo de Edna Ferber, do qual Stevens teve um grande trabalho para comprar os direitos, mesmo antes do livro ficar famoso. Assim como nos outros dois filmes mencionados, o diretor trabalha a visão comportamental do cidadão norte americano da época, o que sempre causou problemas tanto para ele, quanto para a autora do livro. Podemos dizer que os texanos ficaram ultrajados vendo todo o seu machismo e racismo sendo expostos para o mundo inteiro.
A narrativa percorre três gerações de uma família texana tradicional. Começando com Bick (Rock Hudson) que vai até o leste do país para comprar um cavalo reprodutor e acaba voltando casado com Leslie (Elizabeth Taylor), uma mulher sensível para os parâmetros de sua terra, mas que aprende rápido e se torna tão dura como os texanos, isso sem perder sua amabilidade. Taylor está sensacional em cena, sua personagem é uma mulher decidida e que sempre levanta questões conservadoras, sempre mostrando que embora estivesse casada, era uma mulher independente e dona de si.
O lado oposto de sua personalidade é Luz (Mercedes McCambridge), irmã de Bick, Luz é uma solteirona, feita aos moldes sulistas, daquelas que toca o gado e colhe a plantação. É interessante ver a diferença dessas duas personagens em relação a ideia que a história traz, como uma quebra de tabu, isso lá nos anos 1950.
Entre o casal está um personagem que se tornou um ícone do cinema, Jett Rink. Interpretado por James Dean, o personagem tem um papel importante na vida do casal e como um personagem na crítica que o diretor procura apresentar. Rink é um empregado diferente dos outros, embora trabalhe para Bick, é um dos poucos que é texano. Sua vida não é fácil, o que lhe garante o emprego é o carinho que Luz tem por ele. Esse carinho vira um pequeno pedaço de terra, que Luz deixa para o rapaz depois que morre, decorrente a um acidente de cavalo. Rink encontra petróleo e, a partir daí, passa a ser uma pedra no sapato de Bick.
Quando falamos sobre Assim Caminha a Humanidade, precisamos falar sobre a cena em que o juiz da região vai apresentar o testamento de Luz. Os homens mais importantes estão reunidos, todos para convencerem Jett a aceitar o dinheiro que equivale ao dobro do valor do terreno. Mas em uma das cenas mais memoráveis de James Dean, quiçá do cinema, ele recusa e vai embora.
Com essa narração genérica, muitas coisas acontecem nesse meio tempo e posteriormente, mas posso dizer que assim ainda caminha a humanidade. No filme, vemos todos esses problemas sociais, que podem ser associados a cultura do lugar/época, mas tudo evolui e sempre esperamos que seja para melhor. Isso acontece no decorrer da história de Ferber, Bick só passa a ser herói, aos olhos de Leslie, quando se levanta e discute, briga e apanha de um cozinheiro de lanchonete, racista.
Porém, 68 anos depois (o livro foi lançado em 1952), vivemos um retrocesso e parece que nada aprendemos com o passado. O mundo continua tão duro para aqueles que buscam acabar com esses problemas sociais quanto era naquele Texas. Isso faz parecer que estamos parados no tempo, estagnados. Mesmo com tantas Leslies atuando fortemente por mudanças, raramente temos Bicks dispostos a aprenderem que nem tudo é o que era e que não precisam ser.
Enquanto vejo o fascismo covardemente no sopé da porta, imagino se seria possível convidá-los para assistir uma cena ou outra de Assim Caminha a Humanidade (como aquelas em que Leslie "discute" sobre negócios ou que Bick briga na lanchonete). O cinema, assim como outros meios de cultura, tem muito a nos ensinar, talvez por isso ele seja tão temido por aqueles que possuem o poder. Mas, sabendo a incapacidade de um diálogo coerente com essas pessoas, a gente segue indo, esperando fazer jus ao que pregamos.
Nas ondas do mar, nas ondas sonoras, nas ondas de ventos, nas ondas da emoção, nas ondas magnéticas,... é por onde anda a humanidade... Sem ondas o mundo desanda...