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Terça-feira, 21/6/2022
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Você está em um loop e não pode escapar


Fonte: filmestipo.com



No cinema, um mago viaja por multiversos incontáveis. No streaming, filmes e séries voltam no tempo para reviver um tempo anterior. Na realidade (realidade?), a história parece se repetir continuamente. Como não podemos abrir um portal e atravessar o tempo, de repente, você se pergunta: é um déjà vu , ou isso está acontecendo?

Esse sentimento pode parecer uma sensação isolada, mas não é. Vejo depoimentos, imagens, pessoas, que realmente vislumbram um certo tempo, não muito distante, imaginam e sonham que, de algum modo, “as coisas poderiam voltar ao que era antes”.

É mais complexo que “O feitiço do tempo”, filme de 1993, no qual o personagem acorda sempre no mesmo dia. Talvez nossa condição contemporânea, especialmente dos últimos anos, nos empurre para uma nova sensação, um desejo, de retorno e repetição.


Filme “Feitiço do tempo”. Fonte: https://media.fstatic.com/


É uma especulação. As percepções e suas tentativas de explicação, surgem quando especulamos. Mas, busquemos um fundamento mais, digamos, concreto. O mito do eterno retorno, tão conhecido e interpretado nos mais variados campos, pode servir como esse fundamento.

Não caberia aqui, evidentemente, abordar as várias interpretações que esse mito teve, desde a filosofia de Nietzsche à psicanálise freudiana. Fiquemos com a interpretação da mitologia de Mircea Eliade , presentes, nos livros “O mito do eterno retorno” e “Mito e realidade”.



Mais especificamente, tomemos a sua interpretação do ato de regeneração do tempo das origens. As sociedades arcaicas, diz Eliade, necessitam regenerar-se periodicamente. Os rituais de regeneração sempre se ligam a um ato, momento, exemplar, arquetípico e, em geral, cosmogônico, como o surgimento do mundo.

A vida do homem arcaico está ligada às categorias essenciais, mitos primordiais, atos arquetípicos e não a eventos. (Deixa eu logo fazer essa observação, antes que eu seja apedrejado por uma antropologia: hoje, uma certa interpretação antropológica chama sociedades arcaicas de tradicionais e modernas de complexas; estou usando os termos literais de Eliade).


Fonte: submarino.com.br


Esse homem não carrega o peso do tempo, mesmo nele vivendo, exatamente porque sua concepção temporal se liga à ideia das origens.

Quando, no tempo, a realidade cai em desgraça, quando o homem se afasta de seus modelos, exemplos, anula-se o tempo e, então, para essa concepção arcaica, é possível ir, novamente, em busca das origens, em busca de uma renovação.

Isso se revela em mudanças cíclicas, como as fases lunares, ou em eventos mais cataclísmicos, como o apocalipse, nos quais a realidade se degenera em “pecado” para, em seguida, se regenerar.

A ideia do tempo da modernidade, um tempo linear irreversível, de rememorar os mais variados atos históricos que devem ser guardados, registrados, está distante da concepção de tempo cíclico atemporal das sociedades arcaicas.

Mas, então, o que explicaria essa sensação de eterno retorno contemporânea, presente na realidade e na ficção?

Estaríamos voltando à ideia de um necessário retorno às origens? Estaríamos buscando substituir um tempo decaído por um tempo exemplar, menos caótico, menos catastrófico, mais estável e compreensível?

Não tenho respostas definitivas, mas impressões. Em primeiro lugar, como sabemos e o próprio Mircea Eliade deixa claro, o mito não finda com a sociedade moderna, mas ele se modifica.

Os exemplos são vários, desde os rituais que atravessam a vida, os mitos da literatura, dos quadrinhos, do cinema e tantos outros. A questão é que, na vida moderna, diferentemente da ficção, o mito tende a operar dentro do tempo irreversível, que não pode anular os momentos “profanos” que se afastam dos modelos.


”A persistência da memória”, 1931. Salvador Dalí. Fonte: https://pt.wikipedia.org/


O que significa, por exemplo, que dentro desse tempo, os momentos de guerras, catástrofes, pandemias, permanecem dentro do tempo da modernidade. Pode-se argumentar que aprendemos com eles, ou que eles são inevitáveis.

Mas, como vimos, para a concepção arcaica, a noção do tempo não se mede dessa forma, daí por exemplo, podermos afirmar que para essa ideia do homem arcaico o tempo é sempre presente. E, quando esse presente se apresenta distante dos seus modelos originários míticos de origem, pode-se recorrer aos mais variados rituais para refundá-lo, trazer um novo tempo.

Não exatamente o mesmo tempo anterior, mas o voltar a origem, ao modelo, ao arquétipo, de certo modo, regenera o tempo, dando-lhe outra configuração. O estimado leitor já entendeu que, na nossa sociedade moderna, somos incapazes de realizar tal feito, justamente porque nosso tempo parte do princípio de linearidade, da ideia de continuidade. A palavra é progresso.

Se somos fundados na ideia de linearidade e progressão do tempo e, com isso, da história, carregamos o peso dos fatos ocorridos e não podemos anulá-los.

Daí, por exemplo, a ideia de subversão da dor, do sofrimento, passar pela concepção de mudança, subversão, revolução. Mas, mesmo essa ideia, é atravessada dentro de um tempo que evolui, que não volta a um tempo de origem, de arquétipo.


”Contos do loop”, série de streaming


O homem moderno talvez sinta isso como impossibilidade, o que, ao mesmo tempo, pode explicar seu sentimento de um desejo de retorno.

Olhamos para trás e desejamos que determinado tempo voltasse, olhamos para dois anos atrás e queríamos que os anos que se seguiram não tivessem acontecido. Exatamente porque o que se seguiu foi preenchido por desprazer, queda, catástrofe.

Nossa ideia moderna de progresso no tempo nos obriga a caminhar para frente, carregando nas costas, memória, o fardo da história.

Talvez a enorme quantidade das produções imagéticas que criam loops temporais, portais interdimensionais, viagens no tempo, do cinema, do streaming, reflita esse desejo, satisfazendo, assim, esteticamente, nossa necessidade de retorno.

Pode ser sintomático que desejemos, através das imagens espetaculares de outros mundos e realidades proporcionadas pela técnica contemporânea, vivenciar outras realidades, um desejo de retorno e, contraditoriamente, isso nos coloque em uma simulada tentativa de desafiar o tempo. Nosso eterno retorno é outro.

O homem arcaico, com sua concepção religiosa e mágica – e, ironicamente, exatamente por isso é chamado de arcaico – realizava tal façanha dentro do seu próprio tempo.



Como não podemos realizar tal feito, um mago, no cinema, realiza um ritual e abre um portal de onde várias réplicas de pessoas e mundos surgem e, então, escapamos, imageticamente, de nosso tempo. De repente, você se pergunta: é um déjà vu, ou isso está acontecendo? Loop!


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia, ed. ufpa ”

[email protected]

Esse texto foi publicado no Diário online e em relivaldopinho.wordpress.com.



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Postado por Relivaldo Pinho
21/6/2022 às 19h39

 
Asas de Ícaro

Ícaro, filho de Dédalo, tentou subir aos céus com asas feitas com penas de gaivotas e cera de abelha. Queria fugir do Labirinto onde estava preso, juntamente com seu pai.
A lenda de Ícaro e o sonho de voar alto, ganhar o espaço. Vencer também traz advertências e conselhos quanto a cuidados com o calor do Sol. E preciso evitar o derretimento da cera e o perigo de voar baixo, perto das águas do mar, encharcando as penas, aumentando o peso e provocando afogamento.
Uma lenda. Uma história fantástica.Ficção à moda antiga.
Observo a estante bem ali na minha frente, repleta de encadernações de projetos, pastas com documentos, pilhas de papéis rascunhados com ideias, aulas, diagramas, mapas.
Vida colecionada em lembranças de um passado de trabalho, criação, e realizações.Igualmente, testemunhos de enganos, sonhos não concluídos ou realizados, tempo perdido, enfim, uma papelada inerte, absolutamente inútil.
As gavetas da estante parecem cestas trançadas pelas mãos da autoconfiança, da coragem e da fé, cheias de penas de gaivotas virtuais, ainda sujas com os restos da cera, igualmente virtual, imaginada a partir dos livros, aqui favos do mel do conhecimento, colecionados na mesma estante, em outras prateleiras.
Cada encadernação, cada pasta, cada maço de papel grampeado rabiscado com alguma ideia, os mapas e roteiros para execução de tarefas, as notas e registros, enfim cada lembrança contida remete a um voo. A maior parte bem sucedidos, mas nenhum pouso definitivo no topo do penhasco das ambições. Apenas visitas.
O calor do Sol das vitória provocava a fusão da cera da humildade, da serenidade, do equilíbrio.
Os ventos do reconhecimento sempre atenuaram o planeio em voos, quase nunca suaves, rumo ao fundo do vale da existência.
A cada descida observei as escarpas riscadas por diversas trilhas tortuosas, abertas em direção ao cume, repletas de gente lutando para vencer as armadilhas da vida em busca dos sonhos.
No meio do paredão, atado por correntes flamejantes, reconheci o Titã Prometeu sofrendo seu eterno castigo, apenas por ter dado aos humanos o segredo do conhecimento.
Ah, Prometeu, o rebelde…
Hoje as gaivotas passam voando aqui na frente da varanda do apartamento onde moro, sem correr nenhum risco de serem depenadas. O mel vem livre da cera e sempre está presente na primeira refeição, sinalizando a perenidade do sabor doce, não importa quem o está experimentando.
Os voos estão limitados ao espaço do viveiro: do poleiro para o bebedouro, do bebedouro para o poleiro ou para o pote de ração. As lembranças se alternam entre as delícias dos êxitos e as dores dos castigos.
Uma vez Ícaro, outra vez Prometeu…
RA

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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
21/5/2022 às 12h49

 
Auto estima

Quem é que acha que pode dizer aos outros
o que vestir para melhor se ver ou
para melhor falar ou escrever.
Quem é que pode pretender mudar,
sem medo de se arrepender,
a cor dos cabelos, o jeito de ser,
o modo de rir, a voz, o saber.
Quem pensa que ditar moda
faz melhor aos seus iguais
nunca será capaz de entender
o prazer de apenas se deixar ser
tal qual como Deus criou.
Nasceu para ser gordo, gorda ou magrela,
nasceu para ser princesa, corista ou Cinderela.
Será rico ou será pobre. Será plebeu, paria ou nobre.
Nada adianta tentar mudar.
Não adianta chorar, berrar, espernear.
O melhor e deixar a vida correr e aceitar.
Dizem que ele escolhe, define e organiza
tudo que vem pela frente.
Então, o jeito é pegar
o que escolheu para a gente.
Gordo, gorda ou magrela, inteligente ou nem tanto,
bonitão ou bonitona, gulosa ou enfastiada,
não faz a menor diferença.
Ser feliz é o que conta, ser do bem é o que vale.
Viver em paz e harmonia, com muita felicidade
Com bom humor, com verdade, com amor, com amizade.
Gozar a vida sem medo, sem rancor, sem avareza.
Sem maldade, sem tristeza, com muita tranqüilidade.
Não gosta de feijoada? Come pouco? Não bebe?
O manequim está grande? Não tem porte elegante?
O que é que está faltando? Qual importância tem?
Deixe a vida ir passando sem sentir dor ou tormento. Coma, beba e desfrute. Ame até a exaustão.
Com vontade e paixão.
Goze a vida sem pudores.
Tenha quantos amores quiser, mas nada de sentir dores, principalmente, de amores.
Só não faça confusão: Roupa de magro é de magro.
Roupa de gordo é de gordo.
Encontre o seu figurino, Encontre a sua verdade.
Encontre a sua parceira, Parceiro, caso ou ficante.
Não copie, não invente.
Procure, ache.
Descubra que a felicidade é aceitar o destino e a tal fatalidade.


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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
8/5/2022 às 11h38

 
Jazz: 10 músicas para começar


Sinatra observando a maestria de Ella Fitgerald, em 1967. Fonte: https://francisalbertsinatra.tumblr.com/



Algumas pessoas gostam de listas. Eu não gosto. Mas, como acredito que a contradição faz parte do humano, resolvi fazer uma. É de jazz. É em homenagem ao Dia internacional do jazz, celebrado na data de 30 de abril. Você não precisa gostar do estilo para ouvir. Afaste logo essa ideia boba de que jazz é só coisa de gente cult e inteligente. Pense na famosa frase de Louis Armstrong, “se você precisa perguntar o que é jazz, então nunca saberá”.

Como toda lista é falha, acertar não importa. Sim, é uma lista pequena e não faz jus ao gênero. Maior, ficaria inviável para o espaço. É para se ouvir em uma tarde de um sábado qualquer, como este.

A ideia é que, depois desta lista, você possa se aprofundar mais e perceba a potencialidade do estilo musical mais, ...eu queria achar outra palavra..., profícuo da cultura industrial.

Para a escolha destas músicas, além do meu gosto pessoal, há um critério; tentar abarcar uma certa variedade dentro do gênero musical. Uma variedade vocal e instrumental.

“Summertime” (George Gershwin, DuBose Heyward, 1935). Retirada da ópera “Porgy and Bess”, essa canção é tomada como um dos temas mais singelos e belos para um standard (um clássico) do jazz.



Vale a pena ler a história da ópera da qual a música faz parte. Aqui, vamos unir um dueto do panteão jazzístico, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, interpretando-a no álbum “Porgy and Bess”, de 1957.

É a hora de você, neste sábado, acomodar-se no sofá e sentir o vigor da letra, das vozes e do trompete nessa música e nessa inigualável interpretação.

A introdução do trompete de Armstrong e a entrada de Ella vão ecoar na sua cabeça por um bom tempo. Uma dica de um fã: há uma interpretação solo de Ella em vídeo, feita em 1968, em Berlim. Veja como cantar pode (ainda pode?) ser outra coisa.

“Giant steps” (John Coltrane, 1960). Certamente, quando se começa a escutar essa música, o sofá já não é mais seu lugar. A ideia é essa, a tonalidade do Bebop (um ritmo mais cadenciado e perceptivelmente arranjado, do qual o grande Charlie Parker foi o maior símbolo), aqui, foi explodida, literalmente.

O antropólogo Massimo Canevacci certa vez escreveu que Adorno (o filósofo) não gostaria de Coltrane, exatamente daquilo que faz desse álbum a sua grande marca, uma certa improvisação programada, se assim posso dizer.



É uma erupção de tons e variações, impensáveis para um ouvido acomodado à cadência melódica do Swing (ritmo consagrado pelas big bands) e totalmente distante de um entediante Smooth jazz (puristas do jazz chamam, jocosamente, de música de elevador). Coltrane marcaria seu nome na história, justamente por romper com ela.

“Caravan” ( Duke Ellington, Juan Tizol, Irving Mills, 1936). Talvez a música instrumental mais regravada do Jazz. Ouça a gravação do álbum “Money jungle” (1962), de Ellington, Max Roach e Charles Mingus.

Logo, de cara, você sentirá os dedos de Mingus atacando o contrabaixo, a força da bateria de Roach e as célebres possibilidades do vigor pianístico de Ellington.

Duke, como era chamado pelos amigos, mudaria a história do jazz por lhe conferir uma aura para além da mera fruição gratuita.



“I fall in love too easily” (Jule Styne, Sammy Cahn, 1944). Já prevejo algumas pessoas torcerem o nariz, mas listas são feitas, também, exatamente para isso.

Senhoras e senhores, essa canção de amor, tão pequena e simples em sua letra, serve como uma bela introdução ao estilo Cool jazz (um estilo mais lento que o bebop, que se consagraria com o memorável Miles Davis ) e um bom começo para se ouvir seu mais conhecido intérprete vocal, Chet Baker.

É na sua interpretação (Let's get lost: the best of chet baker sings, 1954) que podemos perceber o cantor, quase, pagando uma penitência pelo amor.



Poderia parecer piegas, porque nos remete, talvez, à experiência de cada um, mas, fantasiamos, e parece que Chet está contando sua história e, então, nos irmanamos com ele em sua interpretação. Too easily, muito facilmente.

“Moanin’” (Bobby Timmons, 1959). A escolha aqui atende a dois propósitos, primeiro, perceber como o jazz evoluiu em ritmos que o enriqueceram, como o Hard bop; depois, atende à história do álbum do qual essa música faz parte, “Art Blakey and the jazz Messenger”, de 1959, o álbum que iria mudar a história da Blue Record, uma das maiores gravadoras de jazz da época.

E, parte dessa história, está ligada a excepcionalidade musical proporcionada por um dos conjuntos de instrumentistas mais fortes do gênero: Art Blakey, Horace Silver, Clifford Brown, Lee Morgan , Freddie Hubbard , Wayne Shorter, Wynton Marsalis e tantos outros célebres.



Pegue qualquer nome daí e você verá um gigante na história do estilo. “Moanin’” é não só uma síntese estilística desse momento, com suas acelerações e pausas perfeitas, permitindo a expansividade de todos os músicos, mas o prenúncio do brilho que muitos desses músicos ainda alcançariam.

“Fly me to the moon” (Bart Howard, 1954). Há coisas das quais não se pode escapar. Freud, em “Além do princípio do prazer”, cita uma frase de Mefistófoles, do “Fausto”: “Pressiona sempre para frente, indomado”.

Sempre que ouço essa música, na interpretação de Sinatra no álbum “It might as well be swing”, de 1964, lembro dessa frase.

Pode parecer contraditório com a interpretação freudiana, mas nem tanto. Talvez seja a ideia de uma sensação de prazer incontida, da qual a letra trata, que leve a isso.

Empurrando o amor, incontrolavelmente, para as estrelas, aquilo que se sabe, finito, por isso intensamente vivido.



Sinatra, em uma apresentação de 1965, disponível em vídeo, parece saber disso e exala uma alegria, diante da plateia e da câmera, indomável.

“Red clay” (Freddie Hubbard, 1970). Escrevi um texto específico sobre essa música, “Red clay 12:12”. Ela pertence ao álbum de mesmo nome e representa um momento em que Hubbard coroa, com brilhantismo, sua relação com a Soul music e com o Jazz fusion.

A melhor versão é ao vivo, contida no álbum. Como exercício comparativo, é interessante perceber como as duas versões mudam bastante, revelando, em uma gravação, como poucas, a carta na manga do jazz; o tocar ao vivo, a diferença entre músicos, o enriquecimento da improvisação.

Hubbard se tornará um dos mais célebres trompetistas por, dentre outras características, sempre desafiar o limite das notas, da frase musical, daquilo que como o barro (clay) pode ganhar outras formas de interpretação.



"My baby just cares for me" (Walter Donaldson, Gus Kahn, 1930). Claro, é a gravação dessa música feita por Nina Simone que interessa. Impressiona bastante como essa canção estará no álbum de estreia da cantora, “Little Girl Blue”, de 1959.

Mas, mais impressionante ainda, é perceber como aquela pianista, que ainda sonhava com a música erudita, vai nos proporcionar não só uma inigualável diferenciação e pujança vocal, como um talento incomum com o teclado.

Certa vez, um amigo músico de jazz, quando escutávamos essa canção interpretada pela musicista, no exato momento que ela executa o solo no piano, interrompeu, exclamando: mas é Bach!



“Take five” (Paul Desmond, 1959). Essa música é tão simbólica, tanto pelo seu ritmo que memorizamos por horas, quanto pelos seus feitos comerciais. Ela pertence ao álbum “Time out”, do Dave Brubeck quartet, de 1959.

O álbum vendeu, naquela época, graças, em grande parte, a essa música, mais de um milhão de cópias, um enorme feito para o jazz e um gigantesco avanço para sua popularização.



É a melodia, agradável, variada e, ao mesmo tempo, aderente, do sax de Paul Desmond e do Piano compassado de Brubeck, que conferem, a essa canção, um lugar fundamental na história do jazz.

“Misty” (Errol Garner, Johnny Burke, 1954). Sarah Vaughan chegou, para mim, depois de Ella Fitzgerald e instilou uma dúvida. Como todo amante do jazz, comecei a comparar as versões das músicas entre as duas.

Ainda hoje, posso jurar em um dia ter gostado mais da versão de “Misty” de uma, do que da outra. Obviamente, no outro dia, penso o contrário.

Essa música presente no “Vaughan – Vaughan And Violins”, de 1958, nos dá uma amostra da potência (aqui, não tem jeito, a palavra é essa mesmo) da voz de Vaughan. Em um vídeo, de 1964, gravado em uma apresentação na Suécia, ela parece estar tímida antes de começar a cantar.



Quando começa, após ouvir aquele grave se espraiando, suave, e em seguida um agudo contrastando-o, e as frases distendidas, você pode pensar, essa versão é melhor.

Aí está. 10 músicas para você sentir um pouco do que o jazz já nos proporcionou e ainda nos proporciona. Sensação é a clave. Lembre-se sempre da frase de Louis Armstrong.


P.S: Ah listas! Alguns podem me acusar de ter esquecido de Billie Holiday. Não esqueci. É que uma de suas maiores interpretações é algo tão denso, que escrevi um texto específico sobre: “Billie Holiday, Strange Fruit e 100 anos do Jazz”.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed.ufpa.

[email protected]

Esse texto foi publicado no Diário online. E em https://relivaldopinho.wordpress.com/

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Postado por Relivaldo Pinho
5/5/2022 à 01h10

 
THE END

Esta viagem se alonga há muito tempo.

Não tem retorno

e já é tarde para interrompê-la.

Foram muitas as cenas à janela

tantos os testemunhos a distância

que me deixaram marcas nas lapelas:

desbotaram as cores fio a fio

da superfície ao cerne do tecido.

 

Passou-se assim a vida feito um filme

De que não se guardou nenhuma imagem

ou fotograma sequer.

Só uma vaga lembrança.

Ó fugidias câmeras

de que películas fui um dia personagem?

Ou figurante apenas,

pois isso só a mim já contentava?

Tudo ocorreu tão rápido...

É o salão que acende.

São as figuras que apagam.

Enfim no fim nem um the end.

(Não era assim que os filmes terminavam?)



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Postado por Impressões Digitais
3/5/2022 às 12h06

 
A Caixa de Brinquedos

(reapresentação)

Antonio Ferreira Gonçalves Leitão, um comerciante bem sucedido filho e neto de comerciantes de ferragens estava cansado da monotonia das férias e feriados. Era sempre a mesma coisa: Praia, mais praia e praia novamente.
Não! Não agüentava mais, seguiu pensando.
Seguindo a própria rotina, foi o último a sair da loja, verificando se estava tudo em ordem dos fundos até a porta principal. E o negócio era bem amplo. Verificou os cadeados das portas de subir e descer e foi caminhando até ao estacionamento.
Abriu o carro de longe, com a chave eletrônica, o que sempre lhe causava discreto espanto. Aquilo piscava e apitava enquanto ele se aproximava.
Chegou diante do portão da garagem, outra maravilha moderna, abriu, entrou e fechou com o comando à distância. Colocou o carro no lugar, respirou fundo e entrou pela porta lateral.
Vendera o apartamento do Guarujá por conta da parentada e dos amigos que se convidavam, transformando o que deveria ser um lugar de descanso em alojamento. O pior: Os três filhos pós-adolescentes davam a impressão de gostar da bagunça.
Quem pagava a conta era ele, Antonio Ferreira Gonçalves Leitão, comerciante de ferragens, e ponto final. O dia em que cada um pudesse escolher o que fazer para ocupar feriados ou dias vazios com seus próprios recursos, que o fizessem da maneira que lhes melhor aprouvesse. Queria ir para um hotel fazenda, entre a serra e o vale, com muito verde, algum silêncio, paisagem, boa comida e descanso.Faria o possível e o impossível para convencer sua esposa Estavam todos, definitivamente, convidados.
Só que a família pensava diferente.
Abriu a geladeira da cozinha e sentiu passos vindo em sua direção: A esposa.
- Oi! Tudo bem? Abraçou-a e puxou assunto: Que tal inventarmos algo novo no feriado da semana que vem? Outra vez praia...
Você bem que poderia encontrar algo novo, senão já sabemos o que vem pela frente: Lentidão na estrada, chopinho, fila para almoçar no restaurante da moda, comprinhas de quinquilharias.
- Se você estiver disposto a abrir a carteira, poderemos viajar, fazer um cruzeiro marítimo pelo Caribe. Quem sabe Miami? São poucos dias.
- Nem tanto ao mar, nem tanto a terra, respondeu Antonio.
- Aquela coisa sem graça, de ficar olhando um para a cara do outro na rua principal, procurando algum conhecido ou tomando banho de água mineral? Não estamos tão velhos e as crianças nem podem ouvir falar nessa história.
- Vi a propaganda de um hotel-fazenda, temático. Uma coisa interativa, teatral, com os empregados caracterizados à moda do século 19. Uma verdadeira cápsula do tempo. É como se fossemos convidados por uns dias à mansão de um barão do tempo do império.
- E qual é a graça? Retrucou a mulher
- A programação inclui passeios, aventura, trilhas na serra, belíssimas flores, pássaros, cascatas, arvorismo, tirolesa. Quero mudar um pouco essa rotina de cadeirinha, protetor solar, cerveja de latinha, toalha cheia de areia. Estou cansado de ver as mesmas caras, as mesmas poses, as mesmas atitudes. Quero diversificar! Nas ultimas vezes só as gírias das crianças mudaram.
- Hum, não sei não. Pelo menos, a praia é diversão conhecida e garantida.
- Olha, trouxe um folheto para você ver. Talvez gostes. A cidadezinha parece interessante. Arquitetura colonial, antiquários, artesanato tradicional, confecções, moda, coisas do gênero. Vamos tentar?
- Vamos.
- Então você fala com a turma.
- Que foi que deu nele? Perguntou Cássio Murilo, o filho, quando Ernestina Maria das Graças Magalhães Leitão, bem cuidada ex-aluna de colégio de freiras, formada em sociologia pela PUC de São Paulo, freqüentadora de academia, praticante de Pillates e linda em seus 48 anos, comunicou o plano de viagem do pai.
- Hotel fazenda é coisa para velho. O que é que eu vou fazer lá? Ordenhar vacas? Tirar fotos com cavalinhos? Será que o pai não vê o nosso lado? O pessoal todo está na praia. As pessoas interessantes não vão para hotéis-fazenda. Que programa mais punk... E a gente como é que fica? Comentou Cecília Maria, a mais velha das filhas. Tomar chá com torradas servido por mucamas? Isso lá é programa?
- Vocês estão esquecendo duas coisas: Primeiro é a vontade do pai, que sempre faz todas as nossas. Nunca disse não. Vendeu o apartamento na praia, pois não mais estávamos aproveitando e vocês sabem bem da historia. Segundo: Ele quer conhecer, quer ver como é. Nunca sugeriu nada. É a vez dele, de quem sempre paga a conta! E que contas.
Acabaram-se os argumentos contra e agora era começar a preparar a viagem.
O tema da conversa durante a sobremesa foi o que levar na bagagem.
O casarão colonial com uma dúzia de janelas podia ser avistado desde a estrada, lá no fundão perto do horizonte. Uma curva para lá, outra para cá, a construção sumia e aparecia, emoldurada pela serra coberta pela luz de um céu de poucas nuvens. Chegando mais perto, as cercas caiadas de branco, mostravam os limites da propriedade. A primeira impressão era de um cartão postal. Tirando a arquitetura, a paisagem poderia ser confundida com o verão de um cantão suíço.
- Bom dia. Temos reserva.
- Bom dia! Sejam bem-vindos! Conforme o vosso pedido, as acomodações estão aqui no casarão.
A jovem recepcionista com roupas de senhorinha, sorridente e gentil, falava e gesticulava em rapapés figurando um estilo colonial. Aguardou uns instantes enquanto Antonio preenchia as fichas e concluiu, indicando com um gesto a direção da sala de visitas
- Convidamos todos a tomarem café.
- Esse pessoal recebia muita gente mesmo, comentou a filha do meio, Letícia, meneando os cabelos pintados de louro, e mostrando desdém com o recém-começado programa. Que sala de visitas enorme.
- É mesmo respondeu Antônio, sem esconder o entusiasmo e expectativa quanto ao programa.
- Bom dia!
Outra moça vestida de mucama cumprimentou reverenciando, enquanto mostrava a mesa redonda guarnecida por louças brancas sobre uma toalha rendada. Em seguida, um rapaz vestido com um libré, chegou empurrando um carrinho muito bem arranjado com pães, bolos, biscoitos caseiros, manteiga, mel, geleias coloridas, café e leite quente.
- Bom dia!
Novamente o cumprimento cordial e o serviço um pouco afetado, segundo comentou Ernestina, até então observadora muda e atenta.
As cinco mesas da sala de visitas, transformada num coffee-shop estilizado, estavam ocupadas por gente bonita, alegre e curiosa, muito diferente do que Cássio imaginara, ao saber que o programa do feriado prolongado fora mudado.
- Até que não está tão mal assim, murmurou entre os dentes, enquanto perscrutava todo o ambiente com olhar crítico e presunçoso.
- Então, o que estão achando? Perguntou Antonio, enquanto experimentava o pão ainda morno, com a manteiga produzida na fazenda.
- Vamos ver, não é? Por enquanto é tudo novidade. Esta gente fantasiada de novela das seis é um tanto bizarra, mas acho que vai dar para o gasto, respondeu Cassio.
- Eu estou gostando.
- Eu também. Responderam primeiro Letícia e depois Cecília, notando o desapontamento do pai com a resposta pouco gentil do irmão.
Estavam terminando, quando um outro funcionário vestido de fidalgo apareceu cumprimentando e iniciando uma descrição das facilidades e divertimentos que o hotel oferecia.
Entre passeios a cavalo, visita as instalações rurais, caminhadas nas trilhas na serra, o sarau das 20 horas e a ceia das 23, a piscina e o seu bar foram o que mais chamou a atenção da família.
Entreolharam-se cúmplices, sorriram discretamente e, sugeriram continuar o programa conhecendo aquela parte descrita pelo homem fantasiado de conde, como um verdadeiro jardim de delicias. Antonio, antevendo o lugar apenas como mais um palco para as caras e bocas praianas do qual pretendeu fugir, nada disse.
Os três apartamentos da ala direita do casarão eram confortáveis e adaptados à modernidade, com isolamentos térmicos e acústicos, teto rebaixado, banheiro confortável, TV., e todas facilidades de um hotel de qualidade. Definitivamente, não era um programa de roça tal como os três filhos haviam pensado.
Menos de uma hora após a chegada, as expectativas quanto ao aproveitamento do feriado prolongado tinham mudado substancialmente. Ninguém iria ordenhar vacas ou dar comida às galinhas. As pessoas avistadas não formavam um bando de velhinhos e velhinhas pré-caquéticas. Nesse aspecto Antonio estava redimido. O lugar e o programa tinham tudo para serem divertidos. Uma novidade a ser desfrutada.
Saíram dos apartamentos quase ao mesmo tempo, menos Antonio que ficou arrumando documentos e valores a colocar no pequeno cofre dentro do armário.
Ernestina, Cecília, Letícia e Cássio questionaram-se quanto à bagagem tão praiana, se o lugar sinalizava campo, montanha. O fato é que maiôs, sungas, chinelos bolsas e tudo que fosse necessário para uma temporada al mare foi colocado nas malas, juntamente com camisas de flanela, botas e roupas mais adequadas ao interior. Talvez por isso, o compartimento de carga da van ficara absolutamente entupido.
A porta do ultimo apartamento da mesma ala ocupada pela família estava entreaberta deixando ver uma escrivaninha antiga, igual ou quase, a que o avô de Antonio tinha ao fundo do escritório de sua primeira loja.
- A mesa do vovô! Exclamou em voz baixa, esticando o olhar lá para dentro.
A curiosidade o colocou no meio do cômodo. Havia de tudo. Uma vitrola de corda, duas bicicletas Philips empoeiradas e com pneus murchos, utensílios para a lida no campo, latões, ferros estranhos, canecas enormes, arreios.
Uma das estantes dividia pilhas de livros de registro com brinquedos antigos e o que mais chamou a sua atenção, a caixa de blocos de madeira para montar casas, com o rótulo escrito em alemão: Der Baukasten. Era igual a que herdara do pai que, por sua vez, ganhara do seu avô. Que coincidência! A escrivaninha e o brinquedo. Não resistiu a tentação e, no momento em que esticava os braços para abri-la e matar saudades, ouviu uma voz autoritária e forte cumprimentar:
- Bom dia Antonio! Traga para cá.
- Ande logo. Traga a caixa para cá, esta que você está querendo pegar.
O tremendo susto o trouxe de volta das recordações perdidas no fundo da memória.
- Vamos! O que está esperando? Traga a caixa para cá, não temos tempo a perder.
- Ah... Bom dia Sr. Não o vi chegar. Estava a caminho da piscina quando vi a porta aberta e aquele móvel igual ao do meu avô. Deu-me tanta saudade, sabe como é.
- Sei. Sei sim. Agora vamos. Deixe-me ajuda-lo com isso.
Antonio entregou a caixa de brinquedo ao desconhecido, observando atentamente os detalhes do seu trajar, desde a gravata até aos sapatos cuidadosamente lustrados.
- Mais uma personagem nessa historia, pensou em silêncio enquanto acompanhava os passos rápidos e firmes do estranho.
Atravessaram a recepção seguindo para as portas da entrada abertas em par, alcançando a varanda e a escada. Embaixo, o cocheiro e o palafreneiro aguardavam ao lado de uma carruagem fechada, com duas parelhas de cavalos. Antonio exultava com a escolha do programa. Parecia um parque temático americano: Todo mundo fantasiado, a decoração, o ambiente, a teatralidade.
Os sabores dos pães caseiros e da manteiga ainda permaneciam em sua boca. Pensava no que os outros estavam perdendo naquela pressa de ir para a piscina, passar protetor solar, fazer cara de paisagem, enfim repetir o programa de sempre, sem qualquer novidade.
- Suba! O criado ajuda. A voz de entonação imperativa, não conseguiu tirar o meio-sorriso de sua cara. Antonio, totalmente envolvido com as novidades, aboletou-se num dos assentos, enquanto o estranho sentava à sua frente, colocando a caixa e a bengala de castão de prata ao lado, apoiada no banco quase encostando ao seu pé. A porta foi fechada e o cocheiro pôs os cavalos em marcha. Olhava para fora dando conta não haver notado a fileira de casas de colonos ao lado da estradinha de terra de acesso ao casarão. Seria capaz de jurar, até aquele momento, que tudo era asfaltado e que... Bem, talvez não tivesse percebido, tão ansioso que estava em conhecer a Fazenda.
- Posso saber para onde vamos?
Perguntou sorridente, no exato momento em que o céu escurecia de pesadas nuvens, e o ruído dos trovões deslocava o ar sacudindo a carruagem. Não teve resposta. O estranho abaixou as cortinas das janelas, e olhando para ele ordenou:
- Segure-se!
Nem bem acabou a frase de alerta e um raio caiu bem na frente assustando os cavalos. Os gritos ininteligíveis do cocheiro misturavam-se ao barulho da tempestade.
Um susto enorme, forte cheiro de enxofre, a chuva entrando pelos vãos da janela da carruagem e Antonio começou achar a quantidade de efeitos especiais um pouco exagerada.
- Onde será que vai isso dar? Pensava desconfiado, recordando as atrações dos parques de Orlando. Aqui tudo estava muito mais sinistro.
A escuridão foi tomando o interior da carruagem e a sensação de que a luz evaporava e saia pelas frestas, começou a provocar desconforto.
- Senhor!
Senhor, estou passando mal. Quero sair. Pare, por favor.
Antonio procurava chamar a atenção do velho, falando e gesticulando nervoso e inseguro. Sentia a estrada descendo e continuava escutando o cocheiro gritar. Não se conteve mais e abriu a cortina da sua janela, constatando a escuridão do lado de fora,repleta de criaturas aladas fosforescentes, horríveis e ruidosas, sendo quebrada por relâmpagos. Os morcegos descomunais com caudas em forma de seta e olhos chamejantes rodeavam a carruagem de forma ameaçadora. A tremedeira começou pelos pés e um sofrimento atroz, junto com arrepios, foi subindo e tomando todo o corpo.
Mal terminaram o breve diálogo e o balançar frenético parou, dando lugar a um rodar macio e calmo. Agora a janela aberta mostrava um nevoeiro denso e claro, que se esgarçava um pouco menos que lentamente. Logo a paisagem se recompôs exibindo um cenário verdejante.
O velho bateu duas vezes com o castão da bengala no teto da carruagem, paralisada imediatamente pelo cocheiro.
- Ainda não acabou? Antonio não chegou a pronunciar o pensamento, respondido imediatamente pelo velho:
- Não. Não acabou. Estamos começando. Vamos descer.
- Estou satisfeito. È muito real. Perfeito. Não esperava tanto realismo. Estou surpreso com tanta tecnologia.
Desceram e o estranho voltou a tomar Antonio pelo braço, conduzindo-o em direção à porta do que parecia ser uma hospedaria do final do século 18.
- Vamos entrar.
- Sejam bem vindos! A mulher sorridente encaminhou-se na direção dos dois, falando e abrindo os braços numa saudação comum.
- Querem comer alguma coisa?
- Sim. Traga um pouco de vinho e o que tiver pronto, respondeu o velho sem consultar Antonio.
- Vamos descansar e seguir viagem.
- Eu não tenho fome. Vou almoçar lá no hotel com o meu pessoal.
- Então não coma. Vai perder uma chance de conhecer algo muito especial.
O velho encerrou a conversa, apontando onde ele deveria sentar-se. Uma cesta de frutas decorava a mesa indicada pela mulher que os recebera.
Olhando em volta Antonio percebeu a sala repleta de fisionomias conhecidas. Controlou o espanto, baixou os olhos, pensou um pouco, e voltou a observar enorme angústia provocada pela presença do velho no semblante de cada uma delas.
Era isso! Havia ali uma coleção de lembranças ruins, de pessoas más, aproveitadoras, covardes, desonestas e traidoras. Todas tinham feito algo de mal a Antonio!Um calafrio percorreu seu corpo e os olhos do velho, firmes e frios, olhavam no fundo dos seus como se indagassem o que fazer com elas.
Permaneceu em silêncio, encarando as lembranças, desapontamentos, desilusões, prejuízos, dores e tristezas. Depois de instantes, conseguiu achar o ponto de resposta e disse:
- Obrigado, não vou comer. Não tenho fome.
- Então beba, tome um gole.
- Não, obrigado. Não quero. Talvez água. Só água.
- Traga uma jarra d'água, ordenou o velho à mulher que aguardava ao lado.
Mais uma coisa, surreal e absurda, acontecia: O rotulo da caixa de brinquedos colocada sobre a mesa brilhava durante a breve conversa.
O velho abriu a caixa retirando um manual de instruções, semelhante a um fino caderno ilustrado, e entregou a Antônio.
- Dê uma olhada. É igual ao que você conhece, não é?
- É sim. Nem me lembrava mais disto.
- Vamos construir um castelo com essas peças mais escuras. Começaremos pela masmorra que fica na base, depois o salão nobre e as torres.
- Castelo? Masmorra? Construir uma prisão? Nunca fiz isso. Aqui ensina a fazer casas, sobrados, igreja, estação de trem.
Antonio estava confuso. Por um momento esquecera o passeio, o hotel temático, a família esperando no bar da piscina, o feriado prolongado.
- Na masmorra vamos prender os maus, no salão vamos escutar os bons e nas torres colocar os sonhos. Foi a resposta do velho, ao começar a retirar da caixa os primeiros blocos, arrumando e formando as paredes da base do castelo. Em seguida voltou a provocar Antonio:
- Aqui está! O calabouço: Quem é que vamos colocar aí dentro? Por quem começaremos?
- Desculpe, mas já estou um pouco velho para ficar brincando de construir castelos com blocos de madeira. Está acontecendo algo que não consigo entender e não estou gostando...Não vou colocar nada nem ninguém ai dentro. Não tenho tempo para ficar pensando em quem é mau, bom, ou coisas assim respondeu, mostrando surpresa e desagrado.
O velho levantou-se, e deixando as peças e a caixa aberta sobre a mesa, caminhou para a porta.
- Venha! Chamou Antonio já em pé e ansioso por deixar o lugar.
A carruagem não estava mais por ali e apenas algumas pessoas andavam de um lado para o outro, como se aguardassem a chegada de algum visitante.
Antonio começou a sentir o peso dos olhares da pequena multidão que se formou do lado de fora. deu uma olhada para trás, para dentro da hospedaria, e não viu mais ninguém. A sala estava completamente deserta, a mulher retirava as sobras da refeição do velho e caixa havia desaparecido.
A menina bem no centro do povo aglomerado, mostrava pesar e tristeza. Seus olhos doces e angustiados foram empurrando a memória até perceber que era a namoradinha dos tempos da adolescência. Prometera casamento, jurara amor eterno e ela acreditara em tudo, sem nenhuma duvida, sem desconfiança, cheia de amor. Ele fora embora sem dar notícia. Lembrou-se das filhas em desesperado silêncio:
- Meu Deus!
Era a vez de deparar-se com suas iniqüidades, patifarias, malandragens, golpes, traições, falcatruas, irresponsabilidade, egoísmo, vaidade.
Ao lado da mocinha outras mulheres, de tempos e idades diferentes, olhavam para ele com o mesmo ar de desapontamento e frustração. Ex-empregados pareciam querer entender algo fora das quitações e indenizações. E ali estavam vizinhos, parentes, conhecidos, amigos tentando obter uma explicação, um gesto, uma justificativa para um estrago qualquer provocado por ele. Não cobravam, mas eram credores. Não reclamavam, mas tinham sido prejudicados. Não choravam, mas mostravam desencanto, desapontamento, frustração, dor.
Antonio tentou caminhar em direção ao grupo, mas não teve forças. As pernas estavam pesadas, os braços não se moviam. Tentou falar e nada. A boca continuava entreaberta, seca e muda. Não tinha nenhuma ação. Mal conseguia enxergar o que se passava à sua frente. Num estupor infernal, notou o velho saindo da multidão, com a caixa debaixo de um dos braços e a bengala na outra mão. Mesmo assim não conseguiu sair do transe. Seus olhos suplicavam clemência, perdão. Sua fisionomia transmitia vergonha e arrependimento. Seu corpo tremia de medo, pavor, fraqueza e infelicidade.
As pessoas começaram a afastar-se, uma a uma saindo do seu campo de visão, virando a cara e tomando um rumo qualquer. O velho assistia a tudo, impávido, insensível, indiferente. Alguém trouxera uma cadeira onde ele sentou-se com a caixa por cima das pernas cruzadas. Assim ficou até que o ultimo individuo deu as costas e partiu. Antonio sentiu um enorme alivio.
O velho sorriu pela primeira vez e falou com a mesma firmeza de sempre:
- Vamos deixar o castelo para outro dia. As torres precisam ser mais bem planejadas.
Em seguida levantou-se e tomou Antonio pelo braço, tal como no começo, lá no corredor do hotel.
- Antonio o que houve? Maria Ernestina estava em pé no quarto, diante da cama onde ele parecia descansar da viagem.
Você veio aqui para dormir? Levanta daí, estamos te esperando e você aí deitado.
- Ah... Não sei. Recostei-me e... Sei lá. Peguei no sono. Não me lembro de nada. Faz muito tempo que estou dormindo?
- Uns dez minutos, talvez.
- Que coisa engraçada. Acho que sonhei. Lembrei da escrivaninha do vovô, aquela que está na garagem.
- Vamos, estão nos esperando.
Ao passar pela porta do ultimo apartamento da mesma ala, Antonio se deteve, tentou lembrar de algo, ficou ali por alguns instantes ao lado da mulher que nada entendia.
- Vamos! Não vais querer voltar e dormir de novo.

Uma empregada vestida de mucama passava, empurrando o carrinho de arrumadeira.
- Moça, por favor, o que é que tem nesse quarto?
- É o apartamento do Gerente.
- Ah, obrigado. Só curiosidade.
Do outro lado o velho, invisível por detrás de uma coluna, fazia anotações numa espécie de diário:
Antonio Gonçalves Ferreira Leitão - prorrogado por mais 10 anos.

Raul Almeida.

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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
26/4/2022 às 11h37

 
Nosferatu 100 anos e o infamiliar em nós*




Antes de mais nada, é preciso aceitar a tarefa sisifiana de definir, a grosseiríssimo modo, essa palavra-conceito, infamiliar [“Das Unheimliche”], tida coma uma das mais complexas da literatura freudiana. Freud toma de Schelling uma citação que define o infamiliar como “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona”. Mas, nessa definição, o analista não se limita. Existe, neste texto de Freud, como, de resto, nos demais, uma série de entrecruzamentos conceituais de sua obra. O infamiliar torna-se um conceito novo porque reúne a característica de ser algo que sentimos, ao mesmo tempo, como pertencente a nós (familiar), mas que, por vários fatores, recalcamos, e que, em determinado momento, irrompe, transformando-se em infamiliaridade, em algo angustiante. É um afeto que estava em casa, acomodado, mas, inesperadamente, torna-se, um estranho do mesmo lar.

O exemplo principal de Freud, para exibir sua argumentação sobre esse conceito, é o conto “O Homem da areia” (1815), de E. T. A Hoffmann . No conto, o elemento central, para o teórico, é a figura imaginada de um homem que joga areia nos olhos das crianças e os arranca.

Nessa narrativa, Nathanael, o rapaz que imagina ver o homem da areia, é assombrado por sua imagem que ele, posteriormente, identifica como de um advogado, Coppelius, depois com um vendedor de barômetros chamado Coppola, que venderá a Nathanael um monóculo. Esse monóculo permitirá a Nathanael olhar para a casa em frente, onde está Olímpia, filha de um professor.


Ilustração do próprio Hoffmannn de “ O Homem da areia”


Nathanael se apaixona por ela e, só depois, perceberá que ela era um autômato, o que provoca nele uma crise. Recuperado, ele, então, passeia com a noiva que ele havia abandonado. Nesse momento, em uma torre, de repente, nele irrompe uma sensação de pavor, e ele vê Coppola/Coppelius, enlouquece e se atira.

Freud vai demonstrar como essa narrativa ficcional serve como paradigma para a caracterização do infamiliar. Aspectos como a figura do autômato, do eterno retorno, do complexo de castração são evocados na análise freudiana.

Não cabe aqui fazer uma reconstituição desse difícil trajeto. Mas as conclusões freudianas caminham para a compreensão de que o personagem Nathanael projetaria nas figuras do homem da areia, do advogado e do vendedor, alguns de seus recalques infantis, especialmente em relação ao elemento paterno, daí podermos entender a ideia do duplo (Coppelius/Coppola), do complexo de castração, representado no ato de arrancar os olhos, e do autômato , seres inanimados que ganham “vida”.

As manifestações da psicose de Nathanael, então, não são externas a ele, elas já estavam dispostas em sua infância, em seu lar, mas, se antes, ainda guardavam uma familiaridade, com o advento fantasmático da realidade, elas se transformarão, porque recalcadas, em sua infamiliaridade.

É evidente, repito, que a análise freudiana do “Das Unheimliche”, de modo algum, se resume a esses aspectos. O que quero chamar atenção – e precisei fazer esse resumido périplo para tal – é de como esse elemento infamiliar, partindo da senda de Freud, nos ajuda pensar “Nosferatu” e nossa contemporânea infamiliaridade que, se não morde pescoços, atinge, como o vampiro aterrorizante, decisivamente, nosso Eu.

O primeiro contato de Nosferatu com a esposa de Hutter é através de uma fotografia dela, que seu marido portava quando visitou o Castelo do Conde/vampiro. Ao ver a imagem, o Conde fica fascinado e ele, então, decide comprar a casa que Hutter, um agente imobiliário, foi lhe oferecer, “a bela casa abandonada em frente à sua”, diz Nosferatu ao agente.


Antes do infamilar, o feliz casal Hutter


O vampiro se tornará seu vizinho, como os medos que guardamos próximos a nós, e que, mesmo que não desejemos, vêm à tona. A fotografia de Ellen, a esposa, é a abertura para a chegada do (des)conhecido, aquele que nos habita e que, ao mesmo tempo, estranhamos, o infamiliar.

Não deixa de ser curioso que Kracauer em seu livro, “De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão” (1988), afirma que a crítica à “Nosferatu” à época não deixava de relacioná-lo a E.T.A Hoffmann. Exatamente o autor central a ser tomado como exemplo do infamiliar por Freud.

Kracauer, pela sua leitura política, identifica a imagem do vampiro, predominantemente, como uma figura tirânica, “aparecendo onde mitos e contos de fadas se encontram”. Mas Kracauer não percebeu a dimensão ontológica, metafísica, explorada pela certeira crítica de Jean Domarchi sobre Murnau e seu filme, escrita no Cahiers du cinéma, em 1953.


Livro de Kracauer. “De Caligari a Hitler”.


Em “Presença de F.W Murnau”, Domarchi diz: “é plausível que a técnica de Murnau no cinema corresponda à de Kafka no romance, pois a principal intenção que os conduz é a mesma em ambos os casos; ela diz respeito ao trágico da existência. O mundo, como diz K. Jaspers, é um espelho quebrado, e, neste mundo, a verdade e a paz do coração são inacessíveis. ‘Nosferatu’ já havia antecipado, de um modo ainda mais ‘anedótico’, essa constatação. O verdadeiro tema deste filme não é, como se poderia supor, uma lenda tirada de uma coleção demonológica, mas a “metamorfose” de um universo provincial e burguês dos anos 1830, em um mundo habitado pela morte e pela devastação”.

O que Domarchi está enfatizando é que o cinema de Murnau, possui uma “visão [que] é inexoravelmente pessimista; o mundo aqui é risível e grotesco; o outro, implacável e aterrorizante. Pactuar com ele para escapar das restrições insuportáveis da vida burguesa – cuja mediocridade nenhuma alma generosa e alegre poderia admitir – é brincar de aprendiz de feiticeiro e conter a tempestade”. (Tradução: Miguel Fernandes).

É o que justifica a presença desse outro que pertence ao submundo, mas esse outro é “evocado” pela própria vida mundana. Tem-se a impressão de que, de algum modo, (in)voluntariamente, o casal que vivia feliz, é o anfitrião do terror, de sua própria angústia.

Nosferatu é esse outro, esse duplo da vida que se irrompe dentro dessa familiaridade restrita e insuportável e, por isso, surge, ao mesmo tempo, no interior da cidade, sendo tão distante dela. Infamiliar.

Lembremos que é Hutter quem vai ao encontro do Conde; recordemos que o vampiro, ao chegar à cidade onde se instalará, nada se lhe opõe, ele caminha pelas ruas segurando seu caixão que contem a necessária terra (é o que lhe garante a vida e o poder) de seu lugar de origem e se instala como um habitante qualquer. Nesse lócus, o terror é um estrangeiro que sempre possuiu sua morada.

Não esqueçamos que Ellen, em uma das sequências finais, enquanto o marido dorme, possuída pelo medo/desejo, tenta resistir, compulsivamente, a abrir a janela do quarto para olhar para a casa em frente onde o Conde se instalara, mas não consegue.

Ao abrir a janela, ela consuma a abertura para o outro, para aquele que é seu vizinho, e, também, abre as portas para si, para sua angústia.


Do outro lado da rua, Nosferatu olha pela janela


É impossível desconsiderar, dentre tantas afinidades, a clássica cena final na qual a sombra do vampiro se projeta nas paredes, enquanto ele sobe as escadas, com o pavor sentido pelo Nathanael, de Hoffmann, toda vez que, ao se deitar, o menino ouvia os passos do homem da areia subindo as escadas em direção ao escritório do pai.

Logo na primeira página do conto de Hoffmann, Nathanael, em uma carta ao seu amigo, descreve sua situação de angústia: “uma coisa terrível aconteceu na minha vida! Pressentimentos sombrios de um destino horroroso e ameaçador se espalham sobre mim como sombras de nuvens negras, impenetráveis a qualquer aprazível raio de sol”. (O Homem da areia, em “O infamiliar”, Freud, Autêntica, 2019).

Em “Nosferatu”, o vampiro realiza seu desejo com Ellen. O destino horroroso se consumou. Mas, se em Hoffmann, Nathanael não vê nenhuma possibilidade de um raio de sol que dissipe seu sentimento, em Nosfetratu o galo canta, o sol se levanta e o vampiro desaparece. A peste que, com ele chegou, se esvai. O convidado (in)desejado, o infamiliar, por agora, se foi.


Em um poster do filme, cena clássica da subida da escada


Mas, no plano final do filme, Ellen, desfalece, o marido tenta reanimá-la em vão, enquanto o médico, na porta do quarto, abaixa a cabeça, desconsolado.

A premonição de um passante, que surge logo no início do filme, admoestando Hutter, que caminhava feliz para o trabalho, se concretiza: “não tenha pressa meu jovem amigo, ninguém escapa do próprio destino”.

Convido o leitor a saltar 50 anos, à frente, no tempo.



O filme é ”Solaris”, de ”Andrei Tarkovsky”. Kris, o protagonista, é um psiquiatra encarregado de uma missão no espaço. Já na estação espacial, ele se depara (por motivos que aqui não cabe explicar, e cinéfilos – sic – talvez dissessem ser uma heresia tentar fazê-lo) com um simulacro de sua esposa Hari, morta há tempos.

Ela encontra uma fotografia sua, na mala de Kris. Diante de um espelho, ela, revezando, olha para o espelho e para a fotografia (novamente a fotografia, a imagem) e, então, vira-se para o ex-marido e lhe diz: “Kris, esta sou eu...”.

Kris, angustiado, levanta-se da cama, e Hari lhe confessa: “sabe, eu tenho essa sensação... como se estivesse esquecido algo”. Aflita, ela pergunta: “qual é o problema comigo?”.


Hari, o desejo simulado


Nesse caso, um certo infamiliar é desencadeado em Kris, mesmo que as dúvidas que suscitam esses questionamentos, sejam proferidas pela esposa.

É ele quem realmente duvida se aquela é sua esposa, exatamente porque, essa dúvida provocada pela duplicidade da pessoa amada, faz surgir nele um fascínio, um medo e uma angústia.

Kris, projeta seu desejo e ele se realiza como vida e morte. A cada tentativa de salvá-la, ela morre novamente e, na projeção compulsiva de Kris, ela sempre reaparece, para morrer.

É a ideia de que os mortos, pela vontade onipotente dos que os amaram, podem voltar. E é, também, a ideia do duplo e da compulsão do eterno retorno, tão caras para a análise freudiana. São, como vimos no filme anterior, sentimento ancestrais, míticos, próprios da alma e, ao mesmo tempo, contemporâneos.

Contemporâneos porque “Solaris” serve como uma metáfora das nossas representações especulares, de espelhos, artefatos eletrônicos e reproduções, mas, também, de uma percepção que se desenvolve cada vez mais por simulacros, reprodução e duplicação, que tende a perder a noção do tempo, da história e, em última instância, de si mesmo. Nesse caso, Hari, como Kris, são tanto o vetor do estranho-familiar que não se (re)conhece, como seu objeto.

Nesse âmbito do contemporâneo que aludimos com “Solaris”, aqui, eu permito-me me apropriar da trilha deixada por Ernani Chaves, tradutor do texto de Freud e comentador da sua obra, em seu ensaio, “Perder-se em algo que parece plano” (em O infamiliar, autêntica, 2019).


O infamiliar


Situando o conto de Hoffman e a leitura que Freud empreende desse texto no contexto das novas mudanças tecnológicas, como a fotografia e o cinema, Chaves afirma: “tal aproximação entre o mundo do ‘infamiliar’ e as formas contemporâneas de produção de imagens – hoje levadas a um extremo que Freud e seus contemporâneos não poderiam sequer imaginar – não é descabida, se pensarmos, por exemplo, na exploração “ad infinitum”, nos filmes e nas séries de televisão, das figuras dos mortos-vivos, zumbis, vampiros e fantasmas. As formas românticas do ‘infamiliar’, longe de terem desaparecido, continuam absolutamente presentes no nosso mundo midiatizado e fascinado pelas imagens”.

Sim. Continuam presentes graças, exatamente, a esses novos aparatos técnicos, mas esses aparatos fazem parte de um espírito. Uma disposição contemporânea não só pelo grotesco ou pelo terrífico dos filmes, mas, fundamentalmente, pela possibilidade de termos de lidar com as imagens que deles irrompem e que nós fazemos questão de contemplar, ignorar e esquecer.

Quantas fotos de nós mesmos, repetidas e, principalmente, “duplicadas”, temos em nossos aparatos eletrônicos? Exibimos nosso cotidiano, nossos afazeres, família e gostos. Nessa compulsiva exibição, tratamos sempre de mostrar, mecanicamente, o que nós “seríamos” e ocultamos aquilo que nos desagrada, ou que, julgamos, ao outro irá desagradar e, então, ampliamos o filtro da projeção encantatória.

Nessas representações, talvez estejamos evitando que, não apenas uma certa realidade venha à tona, mas que a reprodução, manchada de vivência, se manifeste. Nessa dialética própria da fantasia, tendemos a ocultar ao que a nós, indelevelmente, pertence.

Na imagem, o que se quer mostrar não é a mera duplicação da vivência, mas outro duplo, o duplo que nos agrade e que não nos incomode. Compulsivamente, repetimos um eterno retorno psicótico, por isso repleto de fantasia, dessa contemporânea vivência.

No limite, a imagem de nós mesmos, sem os aparatos eletrônicos, parece, agora, guardar algo irrepresentável, demasiadamente próximo de nós e, ao mesmo tempo, inevitavelmente estranho, distante e, em certo sentido, angustiante.

Realismo demais de nós mesmos não é algo bem-vindo, é demasiadamente cru e a realidade parece ser sempre a mesma e cruel demais.

Em “Nosferatu”, o medo, a angústia, surgem do entrecruzamento de mundos que pareciam separados, a cidade e o castelo, a vida mundana e uma região na escuridão. Nas compulsões imagéticas contemporâneas, já não se pode mais separar mundos.

E não porque eles convivem em uma sinérgica harmonia, mas porque sua separação, agora, pode ser realizada tecnicamente. O mundo da casa e da rua, separados, para esse “artificial” corte, não apenas não existem mais, mas estão totalmente encavalados, sobrepostos, montados.

Estamos em outros tipos de rituais. Colocamos o monóculo de Coppola e uma certa histeria de nós se apossa. “Ajeite esse fundo, ele está destoando do conjunto da imagem!”.

Um tipo de reprodução recalcada que, com o filtro, em sépia, procura arrumar uma mesa como se fosse um banquete, sem revelar o alimento da alma desalinhado.

Em “Solaris”, Hari afirma ter a sensação de que esqueceu algo. Kris, seu esposo, sabe que ela não pode lembrar porque ela é uma simulação instantânea, que não pode reconstituir toda a experiência anteriormente vivida.

A angústia do marido advém dessa condição, mas seu sentimento pela esposa, adormecido (semelhante à possessão de Ellen pelo Vampiro), compulsivo, ignora essa realidade em prol de um átimo de amor simulacional, que diante dele pergunta: “você me ama?”.

Não seria, de certo modo, o mesmo proceder que desenvolvemos diante de nossa contemporaneidade tecnificante? Ao contemplarmos as simulações das imagens e dos dispositivos, não estaríamos diante, então, desse sentimento compulsivo que ignora o estranho, a repetição imagética e a duplicidade do Eu e do Outro?

A mulher simulacional de “Solaris”, por não ter o sentido do passado, deixa-se levar pelos momentos de prazer com seu ex-marido. Ele, também, a isso não se recusa, mas ele, ao contrário dela, por deter a experiência do que ocorreu, embora se entregue ao momento de prazer, sabe que ele é fugidio, que sob ele se encontra algo que lhe destina a morte do objeto amado e, por conseguinte, essa angústia dele não se afasta.

Poderíamos argumentar que a humanidade sempre tratou de recalcar seu infamiliar. Sim, isso é, inclusive psicanaliticamente, verdade. Mas a questão, reitero, é que a contemporaneidade levou essa atitude ao status de naturalização, talvez, “consciente”.

Naturaliza-se, agora, a repetição das imagens, a compulsão do eterno retorno pela fantasia, a vida como autômato e a dissociabilidade das vivências nas representações. Deve-se evitar – sem nem sempre conseguirmos, como sabemos – as crises de Nathanael.

Enquanto para Freud essas manifestações surgem menos frequentes na vivência, para contemporaneidade seu recalque é a condição do existir.

Se “Nosferatu” (1922) pode ser legatário do “misticismo e magia - forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães se abandonaram com satisfação - tinham florescido em face da morte nos campos de batalha. A hecatombe de jovens precocemente ceifados pareceu alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes haviam povoado o romantismo alemão, se reanimavam tal como as sombras de Hades ao beberem sangue”. (Eisner 1985, citado por Canépa, “Expressionismo alemão”, 2006), nosso expressionismo contemporâneo imagético edita, na palma da mão, um rosto, ou uma paisagem, sem a “feiura” de sua realidade. Velando pelo esquecimento e adornando a dor e a morte.

Reproduzimos, duplicamos, filtramos, editamos. Se isso pode revelar uma atitude que ignora o infamiliar que nos é próprio, isso não quer dizer que esse ignorar gere sempre um tipo de desconforto, angústia, no processo de percepção de nós mesmos.

A expressão jocosa que compara duas imagens, uma sem a utilização da técnica e outra na qual ela foi utilizada (“Na internet/ Na vida real”), é um chiste sintomático desse sentimento, desse espírito. A aceitação angustiante de Kris diante da simulada esposa não nos é estranha.


Episódio da série Black mirror. Tecnologia e vivência


Talvez, nesse sentido, a grande mudança contemporânea desse aspecto seria, ao ignorar esse infamiliar que em nós habita, recalcar esses medos, essas angústias, gerando, posteriormente, um desencadeamento doloroso do Eu.

Agora, talvez, o afeto que estava em casa, acomodado, pela tecnicidade contemporânea, lá deve permanecer, e não se quer que, inesperadamente, ele torne-se um estranho do mesmo lar.

Uma infamiliaridade controlada. Mas sabemos que o infamiliar é sempre um hóspede fiel, seja em uma vila do Século XIX, seja em uma estação espacial do futuro, seja na tela para qual olhamos, compulsivamente, em busca de nós mesmos.

A plaqueta que inicia “Nosferatu” diz: “Cuidado para não dizer a palavra [Nosferatu] senão as imagens da vida se transformarão em sombras”.

Na contemporaneidade, reproduz-se e duplica-se a realidade para, em muitos casos, construirmos a sensação de que, de nossos corações imagéticos, jamais saiam, com sombras, as imagens da vida que não possam ser tecnicamente modificadas. Não podemos ter a sensação de que aquilo que deveria permanecer oculto, venha à tona.




*Esse texto teve a honrosa consultoria de Ernani Chaves.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.


Esse texto foi publicado no Diário online

*Por uma questão técnica, todas as fontes das imagens podem ser consultadas nos links nelas presentes.

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Postado por Relivaldo Pinho
20/4/2022 às 23h40

 
No Shopping

Outro dia errei o caminho de volta para casa propositadamente, e entrei no Shopping.
Fui caminhando, olhando para lá e para cá, parando aqui e ali, até que encontrei a tal praça bebível e mastigável. Optei pela extravagância de um cappuccino enorme, quase uma sopa, muito perfumado, saboroso e caro.
Sentado de frente para o vai e vem da moçada, fiquei observando os diversos clichês, modelitos, protótipos "fashion" , vários bípedes implumes, alguns em herméticos mundos com enormes umbigos, outros em pequenos grupos de excentricidades homogêneas, enfim um zoológico sem grades muito engraçado e bizarro.
Entre uma bicada e outra no super café, notei um casal de idades indefiníveis pelas aparências.No primeiro momento tive impressão de que já os tinha visto, mas algo estava fora do esquadro.Tinha certeza que a conhecia.Tentei lembrar de onde. Segui olhando discretamente,procurando não arrumar confusão com o sujeito de aspecto um tanto desagradável, beirando o tosco,com a barba por fazer,a cara suja dos inconfiáveis,dos falsos,dos que não têm amigos,muito diferente dela, elegante e com estilo, tresandando classe, charme e confiança. Já tinha visto o camarada algumas vezes, até bem de perto e agora me lembrava que, da última vez me deu um cartão de visitas.
-Talvez a idade esteja me arengando, disse aos meus botões
Com ela sempre foi diferente. Chegamos a conversar por horas. Encantadora, fluida como uma manequim de Dior, elegante como uma modelo de Saint Laurent, inteligente, fascinante e, agora ali com aquele cafajeste sinistro. Que coisa mais improvável.
Distraído, evitando encarar qualquer das criaturas, divaguei, procurando lembrar os seus nomes. Uma dupla assimétrica, destoante, anacrônica.
Senti um toque forte no ombro e, saindo da bobeira momentânea, percebi a mulher colocando duas cadeiras a minha frente e se aboletando junto com o companheiro.
Ela falou primeiro:
- Que bom te ver! Faz tempo que você não me liga!
Arregalei os olhos a boca ficou seca, procurei uma resposta e o homem começou:
- Estávamos lembrando de você e,olha só,ai sentadinho, tomando café, como se a vida fosse um mar de rosas.
Ela, imediatamente, intreferiu, colocando a mão delicadamente sobre os meus lábios e respondendo, elegantemente, ao bruto:
-Você não vai tira-lo de mim. Ele é fiel. Não vou deixar.
Respirei fundo e lembrei dos nomes dele e o dela, que, ultimamente, andava distante:
Sr.Fracasso e Dona Esperança.


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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
9/4/2022 às 11h36

 
Primeira bem-aventurança

Para: João Pedro Stédile

Eu sou pobre, pobre, pobre
De marré, marré, marré
Eu sou pobre, pobre, pobre
De marré deci.


Mateus, no Sermão da Montanha
e Lucas, no Sermão da Planície
na devida ordem, chegariam à nossa era:
“Bem-aventurados os pobres de espírito
porque deles será o reino dos céus.”
“Bem-aventurados vós, os pobres,
ai de vós, os ricos!”

Ouvindo agora a voz de Lucas
não me diz a pobreza e a riqueza
medidas por moedas de ouro e prata.
Ricos, os poderosos, os opressores,
entre eles, mandatários e carcereiros.
Pobres, os seguidores do Cristo
os que se opõem ao mando
os que almejam fraternidade
nos arredores da Galileia.
E mundo afora.

Das palavras de Lucas,
vós, que sofreis a pobreza material,
podeis lutar contra a escravidão.
Das palavras de Mateus,
vós, pobres de espírito e discernimento,
podeis um dia enxergar a luz.
Das palavras dos Evangelistas
possamos nos valer todos nós.

Bem-aventurados vós, os pobres,
que sabem dividir o pão e os peixes.
Bem-aventurados vós, os pobres,
porque assim merecem o vinho.
Bem-aventurados vós, os pobres,
que desejam compartilhar a terra.
Bem-aventurados vós, os pobres,
porque almejam dividir a colheita.

Eu sou rica, rica, rica
De marré, marré, marré
Eu sou rica, rica, rica,
De marré deci.


Bem-aventurados esses pobres,
porque são ricos de marré deci.
Bem-aventurados esses pobres
porque podem virar a mesa.

(Série: Poemas dramatúrgicos)

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Postado por Blog da Mirian
26/3/2022 às 18h56

 
Meus versos?

Rio se faz com riacho
manhã se faz do alvissareiro canto do galo
o fruto, ah! o fruto vem da invisível célula
amamentada e aquecida pela terra;
no cio explode o ânimo do corpo amante.

Poesia? Não sei de onde vem.

Rio se faz com riacho
riacho se faz da inesperada gota
fugindo do previsível rumo das águas da fonte;
delicada folhagem mantém vivos elefante e manada
peixe surge da translúcida escama.

Meus versos?

Quem sabe, venham das cosmogonias
quando tudo era nada, infinito, solidão? E vida?
Ou da audível mudez das vozes dos mortos-vivos,
das vozes trêmulas de desamparo,
soprando fagulhas de angústia?

Meus versos?

Sei que não participam dos séquitos dos reis
nem os glorificam nas cerimônias do beija-mão.
Carregando a quieta inquietude dos humanos
meus versos desejam desafiar a navalha que nos fere o corpo
e desmarcar fronteiras que nos prendem ao limbo.

Tempo incontido na fala do instante nascente,
poderá meu canto cativar outras vozes?


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Postado por Blog da Mirian
17/3/2022 às 12h27

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