Fosse ontem fosse hoje, choramos pelo dia que sangra
Fosse ontem fosse hoje, limpamos as feridas da luz
Fosse ontem fosse hoje, expomos nosso calcanhar de Aquiles
Fosse ontem fosse hoje, coturnos esfolam o chão
Fosse ontem fosse hoje, chove nos pombais
Fosse ontem fosse hoje, o veneno alimenta as víboras
Fosse ontem fosse hoje, respiramos.
Fosse agora e sempre, nosso fôlego recria-se do nada
Fosse agora e sempre, o dia ressurge inteiro.
Fosse muito ou nada, ressurgimos da miséria do mundo
Fosse muito ou nada, cremos na ressurreição.
Recentemente, logo na abertura de um programa de entrevista, a apresentadora fez uma pergunta ao seu convidado (um arquiteto, se não me engano) formulada mais ou menos nestes termos: “Nesses últimos tempos, o pensamento sobre a existência nunca foi tão necessário...”. Não me lembro o restante da questão, pois logo me peguei refletindo sobre tais palavras.
Com “nesses últimos tempos”, a apresentadora se referia à pandemia de 2020, e “pensar sobre a existência”, a certa tendência de refletir sobre a vida diante do cenário caótico pelo qual o Brasil ainda passa. No entanto, pensar sobre a existência nunca foi necessário; e, nos tempos atuais, pensar sobre a existência nunca foi tão supérfluo.
Lembro-me de quando a pandemia começara a se espalhar pelo Brasil e grande parte dos governos orientavam a permanência de todos em casa, permitindo somente a abertura de serviços essenciais, pulularam vídeos e textos por aí, sugerindo para que as pessoas aproveitassem o momento e refletissem mais sobre a vida; para que pensassem sobre o que era, de fato, essencial ou não e, indiretamente, para que pensassem sobre a existência.
Entretanto, isso foi possível àquele que saberia que no final do mês teria seu salário depositado, que teria o aluguel pago e todas as contas em dia. Enquanto isso, grande parte das pessoas que, junto com a pandemia, perderam sua principal fonte de renda, preocuparam-se mais com as contas a pagar do que com existencialismos. Com isso, creio que aqueles que se preocuparam com as contas para pagar vivenciaram de maneira mais plena uma experiência existencial, do que uns poucos, isolados em seus apartamentos, gravando lives e exibindo suas estantes de livros, louvando a prática de ioga e alimentação saudável, tiveram.
O filósofo Miguel de Unamuno, nas páginas iniciais de sua opera magna, O sentimento trágico da vida, argumenta na mesma direção. O homem começou a se preocupar com a existência a partir do momento em que sua sobrevivência estava garantida. Somente é possível ser existencialista quando se tem um teto, contas em dia e barriga cheia, do contrário, o instinto da sobrevivência fala mais alto. Portanto, ser existencialista no Brasil é ostentação; discutir a pobreza, a desigualdade e a inclusão de diferentes vozes no campo cultural, também. Isso não é ruim; ao contrário, é excelente ostentar discussões filosóficas, principalmente em um país que cumpriu o básico e permite seus habitantes ostentarem inteligência e toda a educação que receberam.
Não quero fazer apologia à pobreza ou desconstruir paradigmas. Ao contrário, espero que um dia o Brasil seja o centro de criadores de paradigmas: de pensadores da existência, de poetas que saibam fazer poesia, de músicos que saibam o que são notas musicais. Isso pressupõe um país que conquistou o básico: saúde, educação e segurança. Acreditarei em alguma reforma educacional quando o pedagogo disser que “essa teoria foi criada no Brasil e funcionou tão bem que será adotada em escolas da Finlandia”, não o contrário. Mas, por ora, a sobrevivência, fala mais alto: discutimos pronomes neutros enquanto a maioria esmagadora da população não consegue interpretar um texto ou nem sequer sabe o que são pronomes e sua aplicação.
Existe um abismo entre pensar e viver. Sei que a frase é piegas. Por isso falei, linhas acima, que os indivíduos que se preocupam com as contas atrasadas vivem o existencialismo sem saber o que é isso: sentem na pele a dor e o peso do que significa sobreviver, enquanto que apresentadores de televisão pensam existencialismo ou, no máximo, se preocupam com isso, mas não vivem e, portanto, não sabem ou se esqueceram do que é isso na realidade.
Conhecer sistemas de pensamentos filosófico é sedutor. Dominar seus conceitos e acumular conhecimento abstrato, também. E não posso desmerecer o trabalho que é elaborá-los, assim como compreendê-los. No entanto, ser um erudito da existência é mais fácil do que viver a existência; por isso, permito-me a desconfiança em relação ao teórico, ao menos nesse tema. Ademais, um pensamento filosófico existencialista não necessariamente garante um enfrentamento da existência. Não raro, o resultado prático é o oposto: tal sistema de abstração serve mais como fuga do que enfrentamento.
É o que Nelson Rodrigues falava sobre a “esquerda caviar”, isto é, gente que discute a pobreza enquanto toma vinho chileno durante um jantar em algum bairro nobre do centro urbano. É fácil ser desapegado quando se tem o que desapegar. O que também não justifica a truculência e ignorância do que hoje chamo de a “direita churrasqueira”.
Por essas e outras, reitero os versos de Alberto Caiero: “... Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor. / Mas abre os olhos e vê o sol, / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas”. Se o pensamento sobre a existência nunca foi tão necessário, então pergunte àquele que vive a existência, seja lá o que isso signifique.
Acabou de estrear na Netflix o filme "Uma Garota de Muita Sorte" com Mila Kunis no papel título e uma história baseada em fatos reais que se inspira também no romance "Luckiest Girl Alive" da autora Jessica Knoll. Assim, a película aborda uma trama pontual ao falar de violência sexual, mas ela também possui um segundo enredo muito importante falando de aceitação.
Desse modo, entre as atitudes sempre incômodas e sufocantes pra adequação e demarcação de território da protagonista, fica a pergunta - O que você é capaz de fazer pra ganhar a aceitação de alguém? Quanto está disposta a ceder pra que o seu meio te aceite de forma incondicional? E quando isso é abordado, trata-se não apenas da sociedade em geral, mas também das pessoas que estão ao seu lado, te orientando, criando, se relacionando diariamente. Muitas delas com opiniões e crenças delimitantes que são instauradas na mente desde a infância e acreditam ser para o seu bem.
E de modo geral, não é só a tal "garota de sorte" que faz isso pra sobreviver, mas todos nós em diferentes proporções, cedendo em pequenos gestos e atitudes, por demasiados interesses até que seja um modo de sobrevivência e autodefesa contra seus "oponentes sociais". É claro que se não haver acordo e consenso, a vida não segue, e o que imperará será o egoísmo lancinante de uma praça de guerra, porém é preciso saber mediar pra que não percamos nossa identidade em busca de uma imagem desejada do que os outros vejam, mas que em nada reflete na sua personalidade.
A vibe aqui é daquelas comédias românticas do começo dos anos 2000, que sim adorávamos, porém se tratava sempre de uma protagonista estereotipada de inseguranças que toda vez acabava inventado uma personagem pra conquistar - o cara ideal cheio de defeitos - e ainda amargava um perrengue no final, se passando por mentirosa, quando o tal cara descobria que novamente "a garota de sorte" não era bem como ele imaginava. E incrivelmente, eles acabavam juntos, deixando a impressão de aprovação das suas ações.
Com base nisso, numa época em que a vida está avançando tão rapidamente e tem nos machucado tanto, chego a conclusão que independentemente dos desafios apresentados na sua rotina, este é o tempo da liberdade de escolhas, sejam elas grandes ou pequenas pra não deixar passar um trabalho, ou viagem dos sonhos, uma ação que agregue resultados inesperados, ou ainda, uma experiência motivadora. Tudo porque alguém achou melhor você não seguir por esse caminho, ou porque não quer magoar nem desafiar o outro subindo de cargo ou tendo maior destaque. Dessa forma, desde que não prejudique nem faça mal a ninguém, principalmente a você, vale a tentativa.
Resta a conclusão de que no final, nenhuma dessas atitudes importa e que a maioria delas não passará de abnegações dos pequenos prazeres que poderiam levar a inesperados e gratos caminhos. Sendo assim, quando for o momento, imponha sua vontade, e sim muitas vezes será doloroso e difícil, porém você estará cortando com isso toda uma trilha de decisões erradas acumuladas e talvez uma vida de plástico.
E tudo bem errar e recomeçar, desde que seja de uma maneira autêntica e minimamente apaixonada, pois só assim sobrarão muito mais forças para colher os resultados, sejam bons ou não.
Acredito que a frase mais impactante do filme foi a da chefe da garota, que resume tudo o que poderia ser discutido sobre aceitação - "Basta dizer o que você quer, não o que todos os outros querem, aí você consegue"! - #chefesensata
Então, é isso! Eu já disse o que queria, acho que você também deveria, pra nós duas conseguirmos algo de bom. Seja uma carreira, uma relação saudável, a realização de um sonho secreto ou um simples dia de paz, sossego e sinceridade na vida... E analise bem, não queira, no fim das contas, ser somente uma garota de muita sorte.
“Baby, the rain must fall” (“Baby, a chuva deve cair”) é o famoso título da crítica de Pauline Kael ao filme “Blade Runner”, de 1982. Kael, uma das maiores críticas de cinema, foi implacável. Para o bem, mas, principalmente, para o mal. Não é juízo de valor, é o papel da crítica. Ok, é juízo de valor.
Mas um juízo que se baseava no que, naquele momento, para a escritora, o filme lhe dava. Ao mesmo tempo, para ela, marcando um lugar na história do cinema, graças ao seu visual, e, pelos seus erros narrativos (estudiosos chamam diegese), não tendo nada a oferecer para o público.
Se Kael pode ter sido, para muitos, injusta em seu julgamento, em um ponto ela acerta em cheio. A principal ideia do filme, pouco explorada para ela, é que os replicantes, os androides que se rebelam, se tornaram mais humanos que os habitantes daquele novo mundo.
Frame do filme
Isso, agora, não parece novidade, e muitos ainda tomam essa opinião como sendo sua e original. Mas sacar isso, naquela época, quando a ficção científica era deslumbrada com o futuro, era muita coisa. Na verdade, ainda é, não sejamos pretenciosos, baby.
A história de um mundo futuro no qual uma empresa produzia seres autômatos para servirem aos seus propósitos e que, ao tomarem consciência e adquirirem sentimentos, se rebelam contra seus criadores, ainda é uma das obras mais comentadas, discutidas, referenciadas não apenas do cinema, mas da cultura.
E, talvez, o seja, justamente por essa indelével relação que mantemos com a máquina. Adoração e medo. São esses os sentimentos que afloram em Deckard (Harrison Ford), o caçador de androides sentimental.
Frame do filme
São esses os sentimentos que nos arrebatam em relação à figura daquilo que nos parecia separado de nós, por que nós, ao contrário da maquinaria, não somos bonecos (é como um dos policiais se refere aos replicantes) de uma linha de montagem.
Mas, é também, justamente esse automatismo um dos fascínios da máquina. Ela nos parece eficiente, precisa, inequivocadamente, responsiva.
Pelo menos assim era, até “Blade runner” colocar de modo arrebatador Roy (Rutger Hauer), o líder replicante, derramando lágrimas enquanto a chuva cai.
Esse antigo confronto, que se tornou o motivo principal da ficção científica, foi potencializado pelo filme de Ridley Scott . Posteriormente, seria diluído em muita produção, com a mesma temática, de péssima qualidade.
Se há um tema de fundo a tirarmos desse filme, e que me parece o seu “teor de verdade”, é esse. Não o sentimentalismo da máquina, mas o confronto de uma humanidade buscada.
Nesse sentido, na mesma linha de Pauline Kael, Francisco Rüdiger, em “Cibercultura e pós-humanismo”, afirma: “a valorização da liberdade de expressão e movimento, a curiosidade corajosa, o conhecimento das paixões, o cultivo dos sentimentos parecem ter se tornado patrimônio característico dos androides, mais humanos que seus criadores, em todos os sentidos”. Alexa deve estar feliz.
Esse antigo embate talvez, cada vez mais, esteja diante de nós. Os replicantes, a figura do autômato, como já escrevi em outro momento (“Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita”), tem, também, esse poder de nos suscitar o estranhamento, justamente por encarnar o desconhecido. Não por acaso, o tememos.
Frame do filme
Mas, se o final do filme, no corte do diretor, essa ideia é um pouco rompida, quando o caçador foge com sua presa, na primeira versão, o final, odiado pela maioria dos cinéfilos (sic), uma imposição dos produtores, faz com que eles apareçam sobrevoando uma paisagem árcade, como um casal feliz.
Por ironia, hoje, esses finais parecem estar lado a lado em nosso mundo contemporâneo. Insípido e vivaz. “Se você gostou deixe um like”, se não, ignore.
De certo modo, estamos, ainda, naquela cidade que não para de chover e na qual tudo parece, ao mesmo tempo, reluzente e frio, decadente e futurístico, maquinalmente humano.
Você pode gostar ou não. Ok, é juízo de valor, então, baby, a chuva deve cair.
Apesar da paisagem enfarruscada com o céu encabulado em sua vestimenta cinzenta de nuvens e buracos mostrando o desejado azul, a Primavera chegou aqui na varanda do vigésimo andar.
As fragatas, pontuais, mantém a rota para algum lugar lá no fundão da baía. Passam bem na minha frente e, conforme a direção do vento, fazem manobras elegantes e harmoniosas, afastando-se das paredes dos edifícios. Em algumas ocasiões vemos seus olhos amarelos com o centro negro, dando a impressão que nos observam, enquanto voam livremente.
No piso alguns vasos com diversas plantas esperam a rega matinal. Na maior parte do tempo o céu, indecorosamente despido, permite um escândalo de luz e calor. O Sol levanta de mansinho e vai inundando toda a face do prédio, aquecendo, matando os fungos, espantando a tristeza, e chamando a todos para uma caminhada lá embaixo na calçada em direção a praia, logo ali, duas quadras e pronto.
O mar que, aqui de cima vejo distante, além da vizinhança, fica muito mais bonito, quando estamos ali na beira.Mas não dá para reclamar.
Consigo ir além das fragatas, gaivotas, andorinhas, e mais algumas outras aves, até urubus bem lá nos confins das alturas. A vista alcança o horizonte com as serras à esquerda, da Mantiqueira, e em frente a do mar, e seu harmonioso conjunto de curvas acima e abaixo, sinalizando a região de Petrópolis, já na serra os Órgãos. O Dedo de Deus é o destaque.
Volto o olhar para o interior da varanda. Está na hora de tratar do bebedouro dos beija-flores, compartilhado com cambaxirras, sanhaços e até um desavisado bem-te-vi. A passarada acorda cedo e já pousa na rede de segurança ou revoa nervosa, como se cobrasse o café da manhã.
Esfrego a cara para espantar o restinho de sono, abro bem os olhos e desperto para a Primavera. Sim! é hoje! Começa a primavera. Para complicar um pouco, tem um tal equinócio que vai acontecer amanhã, dia 23 de setembro. Mas essa é outra conversa.
Olho para o vaso da primeira Amarilis a florescer. Esperou o dia certo, foi crescendo, crescendo e agora, pela manhã, começa o espetáculo maravilhoso da abertura da primeira flor. Serão quatro. Amanhã teremos mais uma e outra a caminho, até completar o quarteto. Está conosco há dezessete anos e nunca deixou de nos presentear com suas flores. Um bom sinal.
Mais um motivo para encher o regador, correr para os pés da linda amiga, matar a sua sede, refrescar suas raízes, sorrir e conversar um pouco, agradecendo por sua fiel amizade.
Muito obrigado Amarilis. Sejam bem vindas as tuas flores.
A expectativa de um período de luz e flores está vibrando em cada habitante deste hemisfério. Muitos nem se darão conta , mas a natureza vai fazer o seu trabalho mesmo que agredida, insultada e até distorcida, com represas, desmontes, aterros, devastações e intervenções bélicas por todo mundo.
O planeta vai se regenerando, fechando suas chagas, adaptando as cicatrizes e mutilações, rugindo e trovejando suas dores, reagindo e suportando seus ocupantes sem perder o controle, o rumo, a órbita.
Novamente a esperança de melhores dias, melhores colheitas, mais luz e paz entre as criaturas humanas vai surgindo e crescendo nas mentes e corações. É a vez desse hemisfério sentir a energia sutil do Universo. O Sol mais brilhante, a natureza em festa com mais flores, mais alegria.Mais cores, mais amores.
Vamos novamente!
Vamos acreditar no amor, na harmonia, na alegria, no BEM, na indiferença do Universo as iniquidades de parte dos humanos, e aproveitar a Primavera, a luz do sol e as cores mais vivas neste momento.
Quem sabe até aprender a viver e seguir em estado permanente de Primavera.
Cabeças explodindo, sexo compulsivo, corporações corruptas, heróis psicopatas, mocinhos indecisos. Tudo isso esfregado na cara do espectador, sem nenhuma condescendência. “The Boys”, a série da Amazon Prime, quer exatamente isso; chocar pela imagem, conquistar pelo grotesco, persuadir pela subversão.
Não que isso já não tenha sido feito no cinema, quadrinhos ou, até mesmo, em séries. Mas, nesse caso, a junção de imagens gratuitamente violentas e perversão (no sentido psicanalítico) é vista através daqueles que deveriam nos salvar.
Talvez, por isso, a série tenha ganhado tanta repercussão. Inverter o sentido do herói, explicitar o sexo pervertidamente, exibir a manipulação das pessoas, são parte dessa narrativa na qual semideuses e mortais compartilham do mesmo mundo midiaticamente degenerado.
Isso é uma parte. Provavelmente, nada disso teria provocado tantos efeitos se esses efeitos não estivessem de acordo com uma estética que, de certo modo, os fundamenta; uma dose cavalar de kitsch , pastiche e imagens que bastam por si mesmas.
O kitsch ( Umberto Eco ) é feito para dar ao espectador um sentimento já pronto, comestível, rapidamente consumível. As sequências e cenas de extrema violência são o principal, mas não o único, exemplo dessa estética na série.
Não por acaso, esses momentos surgem de modo inesperado, “surpreendendo” o espectador que vibra (pelo menos, creio, que é o que acontece com a maioria) com lutas com superpoderes, tripas para fora, cabeças pelos ares, corpos despedaçados.
É a expectativa da audiência sendo recompensada. Aqui, nenhuma centelha de violência deve, repito, deve, ser explicada por uma moral maior, por uma lição edificante, por um sentido enobrecedor como fundamentos principais a serem absorvidos. Splash! Mais uma cabeça se foi.
Nesse caso, nem mesmo a possível confusão com o “midcult”, um estilo que tenta imitar estilos anteriores com alguma grandeza, existe. É verdade que existe a imitação de heróis e temas anteriores, o que pode parecer uma paródia quando os ironiza, como Capitão Pátria /Superman , Soldier Boy /Capitão América , etc.
Mas, o sentido maior, é se aproveitar desses conteúdos anteriores que são reconhecíveis, para fazer uma imitação que, aparentemente, inverte os sentidos dos filmes de heróis, seus comportamentos, moral e objetivos.
Mas essa intenção quase desaparece por completo quando predominam a ideia das corporações malvadas, as imagens impactantes, o terror confeccionado, o sexo como choque e piada.
Sim, como choque e piada. Em “The Boys” o sexo, a perversão, nada tem a ver com uma crítica satírica profunda à condição humana (ou super-humana (sic)). Nada tem a ver com o sexo, tão decisivo, por exemplo, no cinema de Buñuel .
Na série, a perversão é exibida pela perversão. Imagem pela imagem. Expectativa e compensação. Exibição pela exibição. Não é à toa que ela se dá, principalmente, entre os super-humanos. Talvez porque, os “super”, como são chamados, corrompidos pelo poder, descem do seu olimpo, tornando-se, em seus “defeitos”, humanos.
E, no mesmo sentido, os humanos, querendo “ascender”, aspirem os poderes dos “super”, como uma obrigação de combater os maus heróis, mas também (vejam a alegria do frágil Hughie ao ter um super poder) como êxtase e compensação de si mesmos.
Você deve estar se questionando: mas a série não se propõe a fazer uma discussão profunda sobre esses temas, é entretenimento!
Exatamente. Daí ela poder ser considerada uma das manifestações da nossa contemporaneidade. A imagem, em si, domina a sensação. Ela não precisa estar ligada a uma justificativa ou a um propósito crítico.
Por isso o sexo é surreal, mas um “surrealismo sem inconsciente” (Fredric Jameson ). As imagens sobrepostas, descontextualizadas e as colagens da arte surrealista tinham um propósito; tornar menos familiar nossa compreensão das coisas.
Em “The Boys” a familiaridade exagerada das imagens não se propõe a isso. Não precisa. É o sentimento mastigável, a violência exacerbada e o sexo como choque programado que dão, aos Boys, o sentido. Sentido?
Aprender a desenhar foi uma das mais agradáveis atividades em toda a minha vida. E já se vão algumas dezenas de anos.
Até onde a memória alcança, o ato de rabiscar, buscando formar representações das coisas imaginadas ou à minha volta, sempre foi facilitado por meu avô, amigo desde as horas mais remotas do meu lembrar, ali pelos seis anos. Ainda tenho guardadas garatujas daquela época. Foram colecionadas e deixadas em meio a outros papéis muito mais importantes, organizados em pastas e envelopes.
Um barco, uma "paisagem", um automóvel. Um perfil de um índio com o cocar foi repetido diversas vezes, assim como um veleiro, copiado de uma estampa.
O lápis comum, os lápis de cor, os blocos e folhas de papel sempre andaram por perto. Mais tarde e mais habilidoso, fui apresentado a caneta de desenho com tinta nanquim. Aí a coisa demorou bastante.
Um amigo muito próximo do vovô era desenhista profissional. Trabalhava no Ministério da Guerra, ali do lado da Central do Brasil. Era o chefe da seção da cartografia. Dele ganhei o meu primeiro lápis Turquoise HB. Que presentaço. Era sextavado, tinha cor azul, um "lamborguini" enquanto material de desenho. Só profissionais usavam aquele instrumento sagrado. A primeira vez que o visitamos, fiquei maravilhado. As pranchetas tal como púlpitos sagrados, os bancos altos, a luz natural inundando tudo. Voltamos lá várias vezes, com intervalos muito maiores do que eu gostaria que fosse, mas era um lugar de trabalho. Também o visitávamos em sua casa. Aí fiquei sabendo que ele era professor. Em seu atelier e escritório mais uma novidade ao alcance das mãos: cavaletes de pintura. Um, grande e outro menor, com o banquinho em frente. E como tinha coisa! Paletas, tubos de tinta,uma prancheta encostada e de frente para a janela, um jaleco pendurado num cabide, por sua vez enganchado numa estante de livros… Tudo meio arrumado, meio tumultuado, meio sei lá o que…
Nunca parei de desenhar. Sempre garatujando, rabiscando, tentando fazer melhor.
A vida foi acelerando e dispersando bons focos, agrupando quimeras e idéias, distraindo o olhar com borboletas imaginadas em fantásticas aventuras e perigosas experiências. Assim fui, tocando, literalmente, num conjunto musical de pós adolescentes poucos adultos, onde eu tinha quinze anos e o segundo mais velho dezenove… Toda semana tinha baile. Rendia um troco muito bem vindo. Semanas com dois bailes, um sábado e uma domingueira. E na segunda feira, o colégio, o ginasial e suas matérias, inclusive música, latim, desenho…
E voltamos para o desenho. Aquilo era muito aborrecido. O professor estava cumprindo a tabela da própria vida. Era desinteressado, sem carisma, sem pulso para segurar um magote de moleques patifes, que não prestavam atenção aos desenhos geométricos ou decorativos,a fazer em cadernos quadriculados, imitando ladrilhos de banheiro.Não aprendi nada. Mas, fazia a minha parte e sempre tirei boas notas na matéria, apesar do comportamento menos que recomendável.
Adulto, casado e com filhos, trabalhando em Banco, descobri uma associação de Artistas, onde eram oferecidos cursos de desenho e pintura artística. Conversei com a minha inspiração maior, meu anjo da guarda, minha luz até hoje e contei do meu interesse em frequentar as aulas daquela sociedade. Ela concordou imediatamente. Incentivou com entusiasmo. Duas vezes por semana, após o trabalho de verdade.
Fui apresentado aos modelos em gesso, para copiar sob a orientação de um artista experimentado, paciente e competente. Fiquei entusiasmado. Demorou até que aprendesse a usar o carvão no lugar do lápis. O esfuminho, a escovinha, no lugar da borracha. A minha pretensa habilidade se descobria grosseira, primitiva, desarrumada, insolente. Eu precisava aprender a ver! a enxergar, a sentir os espaços, as proporções, a luz! Estava tudo ali na minha frente. Era só prestar a atenção.
O primeiro desenho estufou o meu peito de alegria e orgulho. Estava muito parecido com o busto de gesso que a turma estava copiando, retocando, aperfeiçoando, escovando e esfumando o carvão sobre o papel.
Finalmente, chegou o dia que eu esperava em total silêncio.
Depois de estar mais ou menos enturmado com os frequentadores da sociedade, todos boêmios, cervejeiros, um tanto bregueiros e bem mais velhos, fui convidado a "encontrar o pessoal", num domingo, numa esquina do centro antigo da cidade do Rio de Janeiro. Eram uns quatro pintores de verdade, fazendo perspectivas com fachadas das igrejas históricas.
Você pinta?
Quero aprender, respondi.
Tem material?
Naquela altura, imagine só um cavalete de campo, uma caixa completa, com a paleta, as tintas, o solvente e os trapos. Nem pensar.
Material?
Uma risada coletiva e simpática, liberou a minha pergunta de uma resposta.
-Tudo bem, não deixa de aparecer lá.
E eu fui, ainda sem o tal material, no fim da rua do Ouvidor, quase na Praça XV. Cheguei pouco depois deles, mas a tempo de perceber a responsabilidade com o que estavam fazendo. Fui cumprimentando todo mundo e olhando com atenção quase que alucinada, para o que estava acontecendo. Um para lá, outro para ali, um terceiro mais para trás, enfim, todos buscando o melhor ângulo para começar o trabalho.
A primeira lição estava começando.
O traçado, o horizonte, o ponto de fuga. Assim começou. No dia seguinte eu tinha uma caixa pequena, de estudante. Pincéis, uma espátula, uma paleta,tubos de tinta, os potes para o óleo e o solvente. Os trapos, peguei em casa. O cavalete, até hoje segue conservado, baleado, meio jururu, mas firme.
Comecei a acompanhar aqueles mestres amigos. Fui aprendendo a ver as ruas, as casas, as fachadas, os monumentos, as árvores, as calçadas. Depois fui aprender a pintar mato, florestas, lagoas, praias, Nunca deixei que a mediocridade me abandonasse. Nunca atingi a maioridade em desenho, pintura, música…
Sigo tentando achar o verdadeiro ponto de fuga para estabelecer a melhor perspectiva, o melhor ângulo da mais tranquila paisagem, da natureza mais gentil.
As fachadas sempre aparecem para ocupar um espaço de destaque. Os caminhos têm curvas e elevações para atrapalhar a minha incipiente técnica. A melhor descoberta foi aquela do horizonte duplo para se colocar algum corpo ou objeto flutuando no espaço.
Acho que a morte tem dois horizontes, mas somente um ponto de fuga.
“Qual um sonho dantesco as sombras voam ...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!” Castro Alves
Noite e dia inundando a cidade
nos atormenta o aluvião da perda,
a sede da morte bebe nosso sangue
e seu bafio invade-nos as casas e narinas.
Noutras bandas, esfacelados os seixos da vida
que se perde nas matas sem horizonte,
implumes, os pássaros emudecem
diante da terra espoliada.
Alucinação? Tenho febre?
“Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura ... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!”
Quem será o algoz?
Que não é sombra nem ficção?
E se esconde atrás da arma?
De quem pode ser a fúria?
Do que não é corvo nem micróbio?
E se deleita diante dos mortos?
Quem serão os muitos cabeças?
Que passam a boiada e se anunciam?
E abrem as portas do inferno?
“Dizei-me vós, Senhor Deus!
Tanto horror perante os céus?!”
Ignorando o cadáver dos justos,
dizimados os nativos, os animais,
as divindades, a selva e os rios,
o cadafalso rasteja aos pés do poder.
Mas em meu texto renascem plumas
em cada palavra e em nossos atos
vencendo a tormenta de fogo.
Delírio? Delírio? Ó, delírio!
O que me responderás?
Veloz veloz, veloz, em meu onirismo,
cauda de arara azul, escamas de folhas,
canto de uirapuru, trajeto condoreiro,
benfazejo peixe solar ilumina o mundo.
Seduzida pela visão, pergunto ao encantado
se a esperança, inseto e sentimento,
pode ganhar forma imaginária.
E renascer tal forma real.
Brasis afora e adentro,
adormeço numa rede.
Plantando a régia vitória dos cocares
um Quarup universal cantará para sempre
o nome dos nossos mortos.
Nas aldeias, eles renascerão com o sol.
E iniciarão os humanos
nos rituais da vida.
Num sonho coletivo os peixes voam ...
Bandos de asas canções entoam!
Na selva germinam rios e paz.
Eu voltava para casa caminhando e um reflexo luziu na calçada, passos a frente. Imaginei um diamante caído de alguma venturosa orelha e seu brinco, um brilhante suicida arrojando-se para fora do encastoamento do anel. A ganância atreveu-se em cutucar a minha mente. Apertei os três passos de distância enquanto o brilho desaparecia com a mudança da posição do olhar. Cheguei perto, encima do alvo e lá estava a coitada. Uma lantejoula. Entre desapontado e autocritico, dei uma discreta e desdenhosa risada, debochei daquele destino infame, e lembrei dos meus tempos de garçom de cabaré, do barulho infernal, do cenário padrão, das colegas entrando rapidamente, as lantejoulas das roupas das coristas, o porteiro vestido como um general da banda. Segui o meu caminho, penalizado com o destino daquela pobre lantejoula. Poderia ter sido atada a uma imponente roupa de privilégios. Poderia estar num traje qualquer em qualquer degrau da escala da vida, desde os que podem mais e choram menos até aos que nem chorar podem. E estava ali, aproveitando um raio de sol perdido na calçada. Fiz uma discreta reverência com a cabeça, e nem parei para conferir. Era uma lantejoula indigente, sem terra, sem teto, sem amor, sem futuro....