Poucos filmes ficaram no imaginário do Século 20 como “Casablanca” (1942). Comumente, atribui-se esse feito à história de amor que ele conta, adornada pela famosíssima música “As Time Goes By”. Canção que aqueles que amam o filme, agora, devem estar cantarolando.
É verdade que grande parte do sucesso do filme também está em seu cenário político, a II Guerra Mundial , e, por ser realizado nesse período, aumenta ainda mais o motivo para que a obra de Michael Curtiz (para alguns, um dos mais injustiçados diretores de todos os tempos) permaneça na história.
Sempre teremos “Casablanca”, claro, mas sempre teremos política, paixão e poder. A história e o cinema sempre demonstraram isso.
Frame do Filme
Esses três elementos formam o núcleo do filme que mostra a intriga do amor de Rick ( Humphey Bogart ) e Ilsa ( Ingrid Bergman ), dentro da intriga “menor”, a guerra entre nazistas e aliados, reproduzida em miniatura no clube noturno Rick’s Café.
É no clube do norte-americano Rick que se localizam os eventos principais, porque é lá que estão soldados, mulheres, comerciantes, políticos, todos em busca de seus interesses, e um dos maiores desses interesses é escapar da cidade marroquina.
Escapar não só porque Hitler avançava em muitas frentes, mas, porque, Casablanca, sob o domínio francês até então, após a invasão da França pela Alemanha, a partir de 1940, estaria sob o Governo de Vichy , um governo submetido aos nazistas.
Esse cenário poderia ser, por si só, um conjunto perfeito para um filme de sucesso. Mas, Roger Ebert , um dos maiores críticos de cinema de todos os tempos, vencedor do Pulitzer, dá, em um texto de 1996, como já se disse, uma das chaves para o sucesso dessa obra.
Ebert diz que o que diferencia Casablanca de um dos fundamentos do cinema, a identificação, é que no filme de 1942, os personagens apaixonados de Rick e Ilsa têm tudo para seguir a trajetória do par romântico e do final feliz. Mas essa promessa e sua realização, com a qual nos projetamos e identificamos, não se cumpre, em prol de um valor maior.
Frame do filme
O casal se reencontra no Rick’s Café após um período intenso de amor em Paris e uma separação dolorosa, provocada pelos acontecimentos da Guerra. Mas ela surge com outro homem, Victor Laszlo (Paul Henreid), na verdade, seu marido e um dos líderes da resistência aos alemães e por quem, mesmo antes de Paris, ela devotava admiração.
Rick foi um ex-comerciante de armas para os inimigos dos nazistas e ex-combatente contra os nazis em guerras anteriores. Depois da perda do amor, torna-se, como a sina do amante ferido (ele acredita que Ilsa o abandonou, em uma fuga, na estação de trem em Paris), cinicamente niilista e diz não acreditar mais em política e ser apenas o dono de um clube.
A famosa cena da música que marca o filme, em que Rick se depara, inesperadamente, com Ilsa em seu clube, na qual a câmera, em close, mostra o espanto dele e o rosto, onde lágrimas suavemente surgem resplandecente, dela, une um passado doloroso dentro de um presente, em guerra, que se arruína.
A célebre frase de Ilsa, ainda em Paris, “o mundo todo desmoronando e escolhemos essa hora para nos apaixonar”, talvez, faça ainda mais sentido, naquele momento de reencontro.
A identificação pelo espectador com essa paixão é inevitável. Mas, como afirma Ebert, somente ela não daria, especialmente no final do filme, a noção do valor que a escolha política de Rick, a escolha de deixar Ilsa seguir com Laszlo, dá ao abdicar de sua paixão.
Ao contrário do que possa parecer, a inexistência do final feliz clássico em favor de uma razão maior – sim, Rick diz, no diálogo final, não ser muito bom em ser nobre – potencializa, pelo contexto histórico e político, pelo poder repressor e pela tentativa de um poder de libertação, essa força da identificação e da projeção.
É ele quem, na cena mais explicitamente política, porque simula, entre cânticos, o conflito em curso, autoriza a Marselhesa, o hino francês, a ser tocado contra os brados dos soldados nazistas, em seu clube. Há em Rick uma nobreza, como quase em tudo no filme, dissimulada.
Frame do filme
Lá já está esse processo de identificação (sem falarmos no poder, no charme e no aspecto sarcástico dos protagonistas) que nos faz querermos ser, ao som de “As Time Goes By”, tocada ao piano por Sam ( Dooley Wilson ), Rick e Ilsa.
Mas nos atinge mais ainda porque nessa obra, que ainda permanecerá por muito tempo, como na vida e no cinema, sempre teremos política, paixão e poder.
Essas dimensões estão sintetizadas em três momentos especiais. No final, quando o Capitão Renault (Claude Rains) joga, com desprezo, uma garrafa com a marca Vichy no lixo, simbolizando, talvez dissimuladamente, o início do fim de sua subserviência com aquele poder.
E, em seguida, quando ele, na cena final, caminha amigavelmente com Rick, o que profetiza (lembremos, o filme é de 1942), ironicamente (porque o capitão é, como Vichy, um colaboracionista dos nazis) a libertação da França pelos aliados, em 1944.
Política, paixão e poder. Esses aspectos do humano e do filme, já estão presentes na cena na qual, na iminência da invasão de Paris, Ilsa e Rick vão à janela e ela ouve um estrondo. Então ela pergunta, “Isso foi um canhão? Ou é meu coração batendo?”
Atualmente não mais permito que a armadilha da saudade distraia a minha atenção. O que foi bom, super, ótimo, etc., teve o seu tempo.
As lembranças são boas. Saudades nem tanto.
Lembranças são fotos virtuais de bons momentos guardadas na mente. Não guardo os maus. Saudade é sofrer por qualquer lembrança.
Tenho ótimas lembranças, algumas transformadas em histórias verbais, sempre presentes quando pertinentes. Outras motivam reflexões e avisos para que algo não venha a se repetir.
Tenho lembranças de verdadeiras façanhas prazerosas, mirabolantes, inacreditáveis, bizarras, eletrizantes e singulares, outras menos emocionantes, mas igualmente gratificantes. O resto cancelei, eliminei, apaguei na medida do possível. Agora é um dia de cada vez.
Recomendo a todos amigos, independente da idade ou experiência de vida, reduzir o passado a poucas, pouquíssimas lembranças e não fazer grandes planos. O Acaso e a Fatalidade vão colocar as luzes no destino de cada um, sem avisar, sem respeitar, sem amor ou piedade.
Deixe a fila andar
Afinal, de quem é a culpa?
A lenda nos dá conta que Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, na verdade por Hefesto, a mando do Chefão, abriu uma caixa, que na versão original era um jarro com uma tampa, libertando todos os males até então desconhecidos pela humanidade. A mitologia grega é formidável em seu conteúdo. Deuses, semi-deuses, titãs, heróis, vilões, ingênuos, patifes, maravilhosos e maravilhosas em narrativas e cenários diversos. Uma leitura muito divertida.
Os autores gregos, Homero, Hesíodo, e outros brilham até hoje.
As explicações desde as origens do Universo e suas criaturas, até o registro dos momentos históricos, batalhas, conquistas, fenômenos climáticos, místicos, enfim, toda a obra dos grandes mestres, continua ajudando aos contemporâneos donos do saber, a explicar, interpretar ou fabular sôbre o grande mistério da vida.
Mas, além do Paraíso, perdido por conta da desobediência do casal primevo, uma das explicações para os sofrimentos e atribulações da humanidade é a pobre Pandora que levou a culpa pela dispersão de toda as mazelas do Mundo, ao abrir o tal jarro, ou caixa sem saber o que ali estava guardado. Ainda assim, conseguiu manter a esperança, como prêmio de consolação.
A coincidência entre Eva e Pandora, mulheres, mostra o lado misógino das narrativas, sempre atribuindo à fêmea a culpa pelos infortúnios, sofrimentos e tristezas da vida.
Que horror!
A mulher, fonte da vida, retratada como vetor do mal.
Mas, de quem seria a culpa por todas as coisas adversas, ruins, tristes, negativas, que trazem dor e pranto durante as nossas andanças pelo Paraíso?
O que é que permite a um ser pensante, decidir , tomar partido, escolher, definir, agir ou não em determinada situação?
O que levou Eva a provar do fruto proibido e o compartilhar com Adão, assim como Pandora a destampar o jarro e liberar as mazelas, foi ele!
Vamos perceber que o fruto proibido assim como o jarro destampado são masculinos. Mas ele quem? O que? O masculino, o macho, o poderoso, o decisivo livre arbítrio. Comum aos dois gêneros, é o que decide.
Acertar ou errar, perder ou ganhar, progredir, ou estagnar, regredir, encolher. Em todas ocasiões, o Juiz interno, endógeno, soberano, sutil ou cruel será sempre o responsável.
O livre arbítrio é o filho mais velho do destino de cada um. É o pai do remorso, da tristeza, da culpa, do amargor, da infelicidade ou do Sucesso.
A culpa dos males do Mundo?
O poder divino de decidir o próprio rumo.
(é jarro e não caixa, nas versões primitivas do mito)
Você lê o livro de contos, “Eu já morri” (2022), de Edyr Augusto, imaginando, eu já disse isso sobre outro livro, que ele está em sua janela olhando o que acontece lá embaixo e, ao mesmo tempo, debruçado sobre os cadernos de jornais de um mundo submerso em violência, sexo, amor, morte e irracionalidade.
De anjos natimortos, rufiões românticos, chacinas, até ameaças terroristas, toda a sorte de violência está exposta nessas linhas. São mundos de fronteiras e zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.
Se os caminhos da Rua Riachuelo e suas imediações são um dos principais trajetos desse livro, eles não são únicos e, até quando Augusto sai da Amazônia, a violência permanece, mesmo em uma cidade do outro lado do mundo, nas mesmas linhas.
Mundos de zonas físicas, (a “Zona da rua Riachuelo”, por exemplo), espaços da cidade e fronteiras do espírito. Mundos unidos entre o desejo e o instinto, entre afetos frágeis e algum devaneio de salvação, entre culturas em conflito e o amor, entre almas arruinadas e a vã busca de uma centelha de redenção.
”Eros e Psique” (17871793), de Antonio Canova. Os caminhos ”desviantes” do amor. Fonte: https://hdelartebach.wordpress.com/2017/02/15/escultura-de-eros-y-psique/
O primeiro conto do livro, “Anjo”, nos dá uma demonstração desse vitral composto em múltiplas vivências. Ele traz a temática da prostituição na “periferia” (Bairro da Matinha, descreve o autor), relacionando-a com o sentimento que muitos adolescentes nutririam por essas mulheres que pareceriam mais livres e imponentes e, por isso mesmo, mais misteriosas e desejadas.
É o sexo e sua descoberta, uma temática que é central dessa literatura, o tema que se mistura a esse incontornável mundo de proibição e desejo, no qual, nessa paisagem de barracos, se erguem verdadeiras barreiras entre excitação e indecisão.
Barreiras em madeira e sentimento, representadas na figura do garoto apaixonado por sua musa decadente e que, nela, se perde. Sentimento condensado na verossimilhança da descrição do ambiente “periférico” e na bela frase do autor, dita pelo menino, “mergulhei naquela mulher Amazônia sem passagem de volta”.
É da mesma cepa, um dos mais bem construídos contos do livro, “Caraxué”. Firmino, um guardador de carro das imediações da Riachuelo, evangélico e casado, se apaixona por uma prostituta, Dodora. O desejo é uma busca e é, também, alguma (in)completude de si.
Mas a busca, nesse mundo, nessa literatura, pode ser apenas um trajeto momentâneo para a queda. Rufião desiludido, apaixonado, em trono, destronado. “Caraxué”.
Bairro do Comércio em Belém, um dos cenários do livro. Foto: Angelo Cavalcante
Alguns elementos recorrentes da literatura de Edyr Augusto retornam nesse livro e, novamente, parece que estamos lendo alguma história que ouvimos de algum familiar, de um amigo, de um motorista de aplicativo que comentam as notícias do dia. Uma história soprada em nossos ouvidos e captada pela literatura.
É o caso do conto “Fale, garoto”. Leo é um ex-bon vivant que luta para não retornar à vida de festas, drogas e mulheres. Leo se debate entre ter uma vida rotineira e o desejo que o empurra para, talvez, o que ele realmente é.
Nesse retorno aos temas, locais e zonas do escritor paraense, é simbólico o conto “Motel Firenze”. Em um motel da cidade, um crime ocorre. Uma família da elite regional tenta encobrir o ocorrido. Um “playboy” está no centro dos fatos. A polícia e os governantes são corruptos e a imprensa escala sua busca diária pelo grotesco.
Em os “Éguas” (1998, em reprodução ao lado), os motéis já entrariam como uma das zonas recorrentes nessa escrita, exatamente por representarem o rompimento de fronteiras, nesse lugar onde as proibições se apagam e não se está mais “em casa”. Desejo e violência têm, aí, na literatura, um lugar para chamar de seu.
É um dos livros mais experimentais de Edyr Augusto e é, também, um dos livros mais presos à realidade mais visível. Realidades em lugares diferentes, com a violência matizada dentro de cada experiência das pessoas e suas cidades. São mundos, zonas, fronteiras.
Esse primeiro experimento, mais ousado esteticamente, está em “O amor entre nós”. Dois belenenses que não se conhecem, uma de descendência judaica e, outro, árabe, viajam para Jerusalém.
Eles se envolvem amorosamente com dois nativos de crenças opostas e, ao mesmo tempo, são engolfados pelo conflito árabe-israelense. A dúvida entre seguir suas crenças, o terrorismo e o amor, é a parte principal desse cenário.
Mas esse cenário, nesse que é o conto mais distante da Amazônia de Augusto, é contextualizado pelo autor com várias referências às crenças que atravessam os personagens e exibem seus pontos de vistas, seus prejulgamentos, suas leis e sua impensável união.
O escritor não nos dá uma análise do conflito, ele nos coloca diante de dilemas culturais, sociais e pessoais. Há história, mas há, fundamentalmente, literatura.
A frase, dita pelos belenenses que não entendem aqueles radicalismos daquelas terras distantes, “em Belém não tem disso, tem? Não. Não tem. Mas aqui...”, é a síntese desse mundo de zona de guerra e de - permitam-me a expressão - fronteira do amor. Em meio ao ódio, à dissimulação e ao caos.
O segundo experimento nesse livro não é tão novo assim. Na verdade, o contista, como se sabe, tem, na aproximação da sua literatura com a realidade amazônica, um dos seus fundamentos.
Livro de contos do autor que tem a Amazônia urbana como tema. Fonte: reprodução
Mas ele fará isso de modo muito mais documental - talvez, como em nenhum momento anterior - em dois contos, “O nosso amor não pode morrer” e o conto que dá título ao livro, “Eu já morri”.
O primeiro, faz alusão à chacina ocorrida no Bairro do Guamá, em Belém do Pará, em 2019, na qual, em um bar, onze pessoas foram mortas. Amplamente coberto pela imprensa, o autor transfigura o fato já no seu título, fazendo uma referência a uma famosa música do cancioneiro paraense (“Ao pôr do sol”), transfiguração que se seguirá nos nomes dos personagens, no enredo e na narração. No pôr do sol de Augusto, “na vizinhança, ninguém viu, ninguém ouviu nada. Era domingo, estavam dormindo. Às duas da tarde? Foi. A sesta”.
No segundo conto, a alusão é a outro famoso caso ocorrido no Estado do Pará, na cidade de Abaetetuba, no qual uma menor foi presa em uma cela com mais de 20 homens. Lá, por 26 dias, ela fora brutalmente violentada. No conto, ela se chama Janalice, mesmo nome da personagem de “Pssica” (2015) que sofre, também, vários tipos de violência.
Edyr Augusto repete, em muitos casos, os personagens em seus livros. Sejam os mesmos personagens, ou que se assemelham. Mas, nesse caso, talvez, ao criar a aproximação entre a menor de Abaetetuba e a Janalice de “Pssica”, ele queira nos dizer, pela semelhança dos acontecimentos, que ambas são parte de um mesmo mundo, de uma mesma decrepitude, de um mesmo roteiro.
Edyr Augusto homenageado na Feira Pan-Amazônica do livro de 2022. Foto: Maíra Belfort
Recentemente, o autor disse que existem antigos personagens que ficam atrás dele, em sua consciência, como fantasmas, a quererem mais um lugar nos seus livros. Eles diriam algo como, “olhe para mim, não esqueça de mim”. Nesse livro, eles voltam.
Mas não estão sozinhos. Vários novos personagens surgem. Com esses recém-chegados, a violência dará as mãos ao sexo; a desilusão se cobrirá de esperança e, resignadamente, cairá. Como no conto, de mesmo título, “Todos têm seu dia”. Eles deverão, no futuro, assombrar o escritor.
Se essas figuras, na realidade e no jornalismo, parecem sempre ser esquecidas, como fantasmas, cabe à literatura trazê-las para novos mundos, novas fronteiras, novas zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.
Fosse ontem fosse hoje, choramos pelo dia que sangra
Fosse ontem fosse hoje, limpamos as feridas da luz
Fosse ontem fosse hoje, expomos nosso calcanhar de Aquiles
Fosse ontem fosse hoje, coturnos esfolam o chão
Fosse ontem fosse hoje, chove nos pombais
Fosse ontem fosse hoje, o veneno alimenta as víboras
Fosse ontem fosse hoje, respiramos.
Fosse agora e sempre, nosso fôlego recria-se do nada
Fosse agora e sempre, o dia ressurge inteiro.
Fosse muito ou nada, ressurgimos da miséria do mundo
Fosse muito ou nada, cremos na ressurreição.
Recentemente, logo na abertura de um programa de entrevista, a apresentadora fez uma pergunta ao seu convidado (um arquiteto, se não me engano) formulada mais ou menos nestes termos: “Nesses últimos tempos, o pensamento sobre a existência nunca foi tão necessário...”. Não me lembro o restante da questão, pois logo me peguei refletindo sobre tais palavras.
Com “nesses últimos tempos”, a apresentadora se referia à pandemia de 2020, e “pensar sobre a existência”, a certa tendência de refletir sobre a vida diante do cenário caótico pelo qual o Brasil ainda passa. No entanto, pensar sobre a existência nunca foi necessário; e, nos tempos atuais, pensar sobre a existência nunca foi tão supérfluo.
Lembro-me de quando a pandemia começara a se espalhar pelo Brasil e grande parte dos governos orientavam a permanência de todos em casa, permitindo somente a abertura de serviços essenciais, pulularam vídeos e textos por aí, sugerindo para que as pessoas aproveitassem o momento e refletissem mais sobre a vida; para que pensassem sobre o que era, de fato, essencial ou não e, indiretamente, para que pensassem sobre a existência.
Entretanto, isso foi possível àquele que saberia que no final do mês teria seu salário depositado, que teria o aluguel pago e todas as contas em dia. Enquanto isso, grande parte das pessoas que, junto com a pandemia, perderam sua principal fonte de renda, preocuparam-se mais com as contas a pagar do que com existencialismos. Com isso, creio que aqueles que se preocuparam com as contas para pagar vivenciaram de maneira mais plena uma experiência existencial, do que uns poucos, isolados em seus apartamentos, gravando lives e exibindo suas estantes de livros, louvando a prática de ioga e alimentação saudável, tiveram.
O filósofo Miguel de Unamuno, nas páginas iniciais de sua opera magna, O sentimento trágico da vida, argumenta na mesma direção. O homem começou a se preocupar com a existência a partir do momento em que sua sobrevivência estava garantida. Somente é possível ser existencialista quando se tem um teto, contas em dia e barriga cheia, do contrário, o instinto da sobrevivência fala mais alto. Portanto, ser existencialista no Brasil é ostentação; discutir a pobreza, a desigualdade e a inclusão de diferentes vozes no campo cultural, também. Isso não é ruim; ao contrário, é excelente ostentar discussões filosóficas, principalmente em um país que cumpriu o básico e permite seus habitantes ostentarem inteligência e toda a educação que receberam.
Não quero fazer apologia à pobreza ou desconstruir paradigmas. Ao contrário, espero que um dia o Brasil seja o centro de criadores de paradigmas: de pensadores da existência, de poetas que saibam fazer poesia, de músicos que saibam o que são notas musicais. Isso pressupõe um país que conquistou o básico: saúde, educação e segurança. Acreditarei em alguma reforma educacional quando o pedagogo disser que “essa teoria foi criada no Brasil e funcionou tão bem que será adotada em escolas da Finlandia”, não o contrário. Mas, por ora, a sobrevivência, fala mais alto: discutimos pronomes neutros enquanto a maioria esmagadora da população não consegue interpretar um texto ou nem sequer sabe o que são pronomes e sua aplicação.
Existe um abismo entre pensar e viver. Sei que a frase é piegas. Por isso falei, linhas acima, que os indivíduos que se preocupam com as contas atrasadas vivem o existencialismo sem saber o que é isso: sentem na pele a dor e o peso do que significa sobreviver, enquanto que apresentadores de televisão pensam existencialismo ou, no máximo, se preocupam com isso, mas não vivem e, portanto, não sabem ou se esqueceram do que é isso na realidade.
Conhecer sistemas de pensamentos filosófico é sedutor. Dominar seus conceitos e acumular conhecimento abstrato, também. E não posso desmerecer o trabalho que é elaborá-los, assim como compreendê-los. No entanto, ser um erudito da existência é mais fácil do que viver a existência; por isso, permito-me a desconfiança em relação ao teórico, ao menos nesse tema. Ademais, um pensamento filosófico existencialista não necessariamente garante um enfrentamento da existência. Não raro, o resultado prático é o oposto: tal sistema de abstração serve mais como fuga do que enfrentamento.
É o que Nelson Rodrigues falava sobre a “esquerda caviar”, isto é, gente que discute a pobreza enquanto toma vinho chileno durante um jantar em algum bairro nobre do centro urbano. É fácil ser desapegado quando se tem o que desapegar. O que também não justifica a truculência e ignorância do que hoje chamo de a “direita churrasqueira”.
Por essas e outras, reitero os versos de Alberto Caiero: “... Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor. / Mas abre os olhos e vê o sol, / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas”. Se o pensamento sobre a existência nunca foi tão necessário, então pergunte àquele que vive a existência, seja lá o que isso signifique.
Acabou de estrear na Netflix o filme "Uma Garota de Muita Sorte" com Mila Kunis no papel título e uma história baseada em fatos reais que se inspira também no romance "Luckiest Girl Alive" da autora Jessica Knoll. Assim, a película aborda uma trama pontual ao falar de violência sexual, mas ela também possui um segundo enredo muito importante falando de aceitação.
Desse modo, entre as atitudes sempre incômodas e sufocantes pra adequação e demarcação de território da protagonista, fica a pergunta - O que você é capaz de fazer pra ganhar a aceitação de alguém? Quanto está disposta a ceder pra que o seu meio te aceite de forma incondicional? E quando isso é abordado, trata-se não apenas da sociedade em geral, mas também das pessoas que estão ao seu lado, te orientando, criando, se relacionando diariamente. Muitas delas com opiniões e crenças delimitantes que são instauradas na mente desde a infância e acreditam ser para o seu bem.
E de modo geral, não é só a tal "garota de sorte" que faz isso pra sobreviver, mas todos nós em diferentes proporções, cedendo em pequenos gestos e atitudes, por demasiados interesses até que seja um modo de sobrevivência e autodefesa contra seus "oponentes sociais". É claro que se não haver acordo e consenso, a vida não segue, e o que imperará será o egoísmo lancinante de uma praça de guerra, porém é preciso saber mediar pra que não percamos nossa identidade em busca de uma imagem desejada do que os outros vejam, mas que em nada reflete na sua personalidade.
A vibe aqui é daquelas comédias românticas do começo dos anos 2000, que sim adorávamos, porém se tratava sempre de uma protagonista estereotipada de inseguranças que toda vez acabava inventado uma personagem pra conquistar - o cara ideal cheio de defeitos - e ainda amargava um perrengue no final, se passando por mentirosa, quando o tal cara descobria que novamente "a garota de sorte" não era bem como ele imaginava. E incrivelmente, eles acabavam juntos, deixando a impressão de aprovação das suas ações.
Com base nisso, numa época em que a vida está avançando tão rapidamente e tem nos machucado tanto, chego a conclusão que independentemente dos desafios apresentados na sua rotina, este é o tempo da liberdade de escolhas, sejam elas grandes ou pequenas pra não deixar passar um trabalho, ou viagem dos sonhos, uma ação que agregue resultados inesperados, ou ainda, uma experiência motivadora. Tudo porque alguém achou melhor você não seguir por esse caminho, ou porque não quer magoar nem desafiar o outro subindo de cargo ou tendo maior destaque. Dessa forma, desde que não prejudique nem faça mal a ninguém, principalmente a você, vale a tentativa.
Resta a conclusão de que no final, nenhuma dessas atitudes importa e que a maioria delas não passará de abnegações dos pequenos prazeres que poderiam levar a inesperados e gratos caminhos. Sendo assim, quando for o momento, imponha sua vontade, e sim muitas vezes será doloroso e difícil, porém você estará cortando com isso toda uma trilha de decisões erradas acumuladas e talvez uma vida de plástico.
E tudo bem errar e recomeçar, desde que seja de uma maneira autêntica e minimamente apaixonada, pois só assim sobrarão muito mais forças para colher os resultados, sejam bons ou não.
Acredito que a frase mais impactante do filme foi a da chefe da garota, que resume tudo o que poderia ser discutido sobre aceitação - "Basta dizer o que você quer, não o que todos os outros querem, aí você consegue"! - #chefesensata
Então, é isso! Eu já disse o que queria, acho que você também deveria, pra nós duas conseguirmos algo de bom. Seja uma carreira, uma relação saudável, a realização de um sonho secreto ou um simples dia de paz, sossego e sinceridade na vida... E analise bem, não queira, no fim das contas, ser somente uma garota de muita sorte.
“Baby, the rain must fall” (“Baby, a chuva deve cair”) é o famoso título da crítica de Pauline Kael ao filme “Blade Runner”, de 1982. Kael, uma das maiores críticas de cinema, foi implacável. Para o bem, mas, principalmente, para o mal. Não é juízo de valor, é o papel da crítica. Ok, é juízo de valor.
Mas um juízo que se baseava no que, naquele momento, para a escritora, o filme lhe dava. Ao mesmo tempo, para ela, marcando um lugar na história do cinema, graças ao seu visual, e, pelos seus erros narrativos (estudiosos chamam diegese), não tendo nada a oferecer para o público.
Se Kael pode ter sido, para muitos, injusta em seu julgamento, em um ponto ela acerta em cheio. A principal ideia do filme, pouco explorada para ela, é que os replicantes, os androides que se rebelam, se tornaram mais humanos que os habitantes daquele novo mundo.
Frame do filme
Isso, agora, não parece novidade, e muitos ainda tomam essa opinião como sendo sua e original. Mas sacar isso, naquela época, quando a ficção científica era deslumbrada com o futuro, era muita coisa. Na verdade, ainda é, não sejamos pretenciosos, baby.
A história de um mundo futuro no qual uma empresa produzia seres autômatos para servirem aos seus propósitos e que, ao tomarem consciência e adquirirem sentimentos, se rebelam contra seus criadores, ainda é uma das obras mais comentadas, discutidas, referenciadas não apenas do cinema, mas da cultura.
E, talvez, o seja, justamente por essa indelével relação que mantemos com a máquina. Adoração e medo. São esses os sentimentos que afloram em Deckard (Harrison Ford), o caçador de androides sentimental.
Frame do filme
São esses os sentimentos que nos arrebatam em relação à figura daquilo que nos parecia separado de nós, por que nós, ao contrário da maquinaria, não somos bonecos (é como um dos policiais se refere aos replicantes) de uma linha de montagem.
Mas, é também, justamente esse automatismo um dos fascínios da máquina. Ela nos parece eficiente, precisa, inequivocadamente, responsiva.
Pelo menos assim era, até “Blade runner” colocar de modo arrebatador Roy (Rutger Hauer), o líder replicante, derramando lágrimas enquanto a chuva cai.
Esse antigo confronto, que se tornou o motivo principal da ficção científica, foi potencializado pelo filme de Ridley Scott . Posteriormente, seria diluído em muita produção, com a mesma temática, de péssima qualidade.
Se há um tema de fundo a tirarmos desse filme, e que me parece o seu “teor de verdade”, é esse. Não o sentimentalismo da máquina, mas o confronto de uma humanidade buscada.
Nesse sentido, na mesma linha de Pauline Kael, Francisco Rüdiger, em “Cibercultura e pós-humanismo”, afirma: “a valorização da liberdade de expressão e movimento, a curiosidade corajosa, o conhecimento das paixões, o cultivo dos sentimentos parecem ter se tornado patrimônio característico dos androides, mais humanos que seus criadores, em todos os sentidos”. Alexa deve estar feliz.
Esse antigo embate talvez, cada vez mais, esteja diante de nós. Os replicantes, a figura do autômato, como já escrevi em outro momento (“Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita”), tem, também, esse poder de nos suscitar o estranhamento, justamente por encarnar o desconhecido. Não por acaso, o tememos.
Frame do filme
Mas, se o final do filme, no corte do diretor, essa ideia é um pouco rompida, quando o caçador foge com sua presa, na primeira versão, o final, odiado pela maioria dos cinéfilos (sic), uma imposição dos produtores, faz com que eles apareçam sobrevoando uma paisagem árcade, como um casal feliz.
Por ironia, hoje, esses finais parecem estar lado a lado em nosso mundo contemporâneo. Insípido e vivaz. “Se você gostou deixe um like”, se não, ignore.
De certo modo, estamos, ainda, naquela cidade que não para de chover e na qual tudo parece, ao mesmo tempo, reluzente e frio, decadente e futurístico, maquinalmente humano.
Você pode gostar ou não. Ok, é juízo de valor, então, baby, a chuva deve cair.
Apesar da paisagem enfarruscada com o céu encabulado em sua vestimenta cinzenta de nuvens e buracos mostrando o desejado azul, a Primavera chegou aqui na varanda do vigésimo andar.
As fragatas, pontuais, mantém a rota para algum lugar lá no fundão da baía. Passam bem na minha frente e, conforme a direção do vento, fazem manobras elegantes e harmoniosas, afastando-se das paredes dos edifícios. Em algumas ocasiões vemos seus olhos amarelos com o centro negro, dando a impressão que nos observam, enquanto voam livremente.
No piso alguns vasos com diversas plantas esperam a rega matinal. Na maior parte do tempo o céu, indecorosamente despido, permite um escândalo de luz e calor. O Sol levanta de mansinho e vai inundando toda a face do prédio, aquecendo, matando os fungos, espantando a tristeza, e chamando a todos para uma caminhada lá embaixo na calçada em direção a praia, logo ali, duas quadras e pronto.
O mar que, aqui de cima vejo distante, além da vizinhança, fica muito mais bonito, quando estamos ali na beira.Mas não dá para reclamar.
Consigo ir além das fragatas, gaivotas, andorinhas, e mais algumas outras aves, até urubus bem lá nos confins das alturas. A vista alcança o horizonte com as serras à esquerda, da Mantiqueira, e em frente a do mar, e seu harmonioso conjunto de curvas acima e abaixo, sinalizando a região de Petrópolis, já na serra os Órgãos. O Dedo de Deus é o destaque.
Volto o olhar para o interior da varanda. Está na hora de tratar do bebedouro dos beija-flores, compartilhado com cambaxirras, sanhaços e até um desavisado bem-te-vi. A passarada acorda cedo e já pousa na rede de segurança ou revoa nervosa, como se cobrasse o café da manhã.
Esfrego a cara para espantar o restinho de sono, abro bem os olhos e desperto para a Primavera. Sim! é hoje! Começa a primavera. Para complicar um pouco, tem um tal equinócio que vai acontecer amanhã, dia 23 de setembro. Mas essa é outra conversa.
Olho para o vaso da primeira Amarilis a florescer. Esperou o dia certo, foi crescendo, crescendo e agora, pela manhã, começa o espetáculo maravilhoso da abertura da primeira flor. Serão quatro. Amanhã teremos mais uma e outra a caminho, até completar o quarteto. Está conosco há dezessete anos e nunca deixou de nos presentear com suas flores. Um bom sinal.
Mais um motivo para encher o regador, correr para os pés da linda amiga, matar a sua sede, refrescar suas raízes, sorrir e conversar um pouco, agradecendo por sua fiel amizade.
Muito obrigado Amarilis. Sejam bem vindas as tuas flores.
A expectativa de um período de luz e flores está vibrando em cada habitante deste hemisfério. Muitos nem se darão conta , mas a natureza vai fazer o seu trabalho mesmo que agredida, insultada e até distorcida, com represas, desmontes, aterros, devastações e intervenções bélicas por todo mundo.
O planeta vai se regenerando, fechando suas chagas, adaptando as cicatrizes e mutilações, rugindo e trovejando suas dores, reagindo e suportando seus ocupantes sem perder o controle, o rumo, a órbita.
Novamente a esperança de melhores dias, melhores colheitas, mais luz e paz entre as criaturas humanas vai surgindo e crescendo nas mentes e corações. É a vez desse hemisfério sentir a energia sutil do Universo. O Sol mais brilhante, a natureza em festa com mais flores, mais alegria.Mais cores, mais amores.
Vamos novamente!
Vamos acreditar no amor, na harmonia, na alegria, no BEM, na indiferença do Universo as iniquidades de parte dos humanos, e aproveitar a Primavera, a luz do sol e as cores mais vivas neste momento.
Quem sabe até aprender a viver e seguir em estado permanente de Primavera.