Médico, louco ou poeta,
profissões ou adjetivos
cada qual com seus motivos
um pouquinho sempre tem.
Quem não conhece o remédio
que mitiga vários males?
Quem, por conta de momentos na vida,
muito louco nunca foi?
E poeta?
Todos nós somos um pouco,
seja o canto bonito, feio ou rouco.
Curando loucuras ou cantando doçuras
somos simples criaturas
boas, más,santas,impuras
por vezes, figurões
por outras, pobres figuras...
Por abordar, ao mesmo tempo com sutiliza e crueza, a temática da obesidade, “A baleia” ("The Whale"), filme do final de 2022, de Darren Aronofsky, estrelado por Brendan Fraser, merece ser visto.
Charlie (Fraser) é um professor que ministra aulas online para jovens postulantes a escritores. Ele se tornou um homem obeso e recluso depois da perda de seu companheiro que tirou a própria vida.
Antes de mergulhar em sua melancolia pela perda do amor, Charlie abandonou sua mulher e a filha pequena. É a filha, uma adolescente, traumatizada pelo abandono do pai, que serve como ponte para sua busca para a redenção.
Como se pode ver, não é apenas a temática da obesidade que está em jogo no longa. Estão também a paixão, a perda do indivíduo amado e a desestruturação familiar.
Uma das artes do filme. Fonte: https://media.fstatic.com
Principalmente está nele algo que me interessa filosoficamente, a ideia, enfocada no filme, de que existem indivíduos que não querem salvar a si mesmos, mas buscam um tipo de salvação no que ainda podem fazer por outros.
Não é nem apenas a ideia de um mergulho sem volta, nem a ideia de que esse mergulho será menos doloroso se dele resultar algo bom.
Está entre essas duas coisas, e essa é uma das forças do filme, tratar dessas temáticas no limiar entre a dor, a aceitação de si, a compaixão para com o outro e o mergulho para o fim.
A representação desses temas em “A baleia” está quase sempre, apesar de um efeito estético pouco original no fim do filme, em uma fina linha d'água, equilibrando-se. Linha que facilmente no cinema, como Hollywood Hollywood já demonstrou, pode cair no estereótipo e na pieguice.
Sim, é um tema difícil que o espaço aqui não permite aprofundamento. Mas parte desse motivo temático está representado nas figuras dos personagens que tentam “salvar” o protagonista.
Charlie, sua filha e amiga. Fonte: https://www.diariocinema.com.br/
Como o garoto de outra cidade, que fugiu da casa dos pais e que vai na porta de Charlie oferecer uma salvação religiosa, e que o descrente professor repele.
Ou sua amiga, uma enfermeira que está sempre ao seu lado e tenta ajudá-lo. Ele aceita os curativos momentâneos, mas se nega a procurar estancar a dor no peito que o impele a essa pulsão de vida e morte.
Charlie a toda hora não só rechaça a ideia de salvação pela religião e pela medicina, como mergulha “propositalmente” em sua autopunição através da compulsão alimentar.
Dor sentida por fora, pelo corpo que sofre, e que, na verdade, vem, pela perda, de dentro.
A salvação daquele homem, que não consegue andar sem um andador, é fazer a filha caminhar por águas menos turvas que a sua.
Charlie e a filha. Fonte: https://www.lascimmiapensa.com/
Ele deixa uma herança em dinheiro para ela, mas, para ele, tão importante quanto isso, é reconhecer que ela, através de ações valorosas e de seu talento para escrever, possa caminhar com as próprias pernas.
Sim, é um tema difícil, mas, como nos demonstra o filme, tão difícil quanto caminhar é permanecer em pé abdicando de si mesmo e, apesar disso, vislumbrar (para si e em alguém) uma fina linha d'água de esperança, ou uma linha escrita como redenção.
Três cores, vários intervalos de tempo, a orientação fundamental.
Ainda na escola, antes até, quando os mais velhos começavam a nos preparar para o Mundo, as cores do semáforo nos chamavam atenção. Era só encontrar um cruzamento, um ponto de travessia entre os lados da rua, e aquela lanterna sisuda estava ali avisando o momento para continuar o caminho.
Verde, amarelo, vermelho.
Aprendemos a temer no vermelho, a esperar no amarelo e a seguir em frente com o verde. Conforme o lugar, o verde ou o vermelho demoravam mais ou menos.
O amarelo sempre alertou para a necessidade de aumentar o cuidado e a atenção com o próximo passo.
Ainda contidos pela mão do pai, avó, mãe ou alguém mais velho e responsável, ficávamos esperando o momento para seguir. Nessas horas a lição era sempre repetida: “Só se atravessa com o sinal fechado para os carros”. Se estava no amarelo, esperava-se o ciclo seguinte.
Às vezes, uma confusão entre o vermelho para os pedestres e verde para os carros e vice-versa, obrigava a um rápido raciocínio para entender um cruzamento múltiplo, um semáforo moderno, mas a lógica sempre prevaleceu.
A lição que se aprende com os semáforos é mais que uma simples regra de segurança urbana. É uma norma pétrea para toda a vida. Só avançar em segurança e depois de avaliar os riscos, vantagens e desvantagens, possíveis lucros ou irreparáveis perdas.
Não desprezar nunca os lampejos do amarelo. Nunca tomar decisões sem avaliar bem a situação. Controlar as emoções sejam felizes ou não. Jamais colocar os pés fora da calçada antes de olhar para os dois lados. Não se deixar levar pela mão de alguma companhia afoita, algum parceiro ou parceira sem avaliar, por si mesmo, quais serão os resultados da pressa ou da cautela.
Quando o vermelho aparece, não há dúvida quanto ao fracasso do rumo escolhido. Quando o verde libera o caminho chegou a hora de prosseguir.
A vida vai ser toda sinalizada com as três cores. Entretanto, o amarelo é o principal aviso.
No começo, quando as emoções têm sabores mais fortes, os desafios lançam sombra sobre os lampejos do amarelo e o vermelho parece seduzir sem maldade. O bom senso é a única alternativa ao abstrato que é a sorte. Há quem diga que não existe sorte. Opiniões, divagações, filosofia. Mas, nascer é um fato de domínio da sorte.
O atavismo, a geografia e a economia não são suficientes para validar ou não uma vida.
Valeu a pena? Está valendo?
O amarelo em determinado momento começa a piscar.
Olha-se para um lado e para o outro, não vem nada. Nenhum perigo.
Voltamos para o semáforo virtual da consciência, da mente e do pensamento.
Ah, o amarelo parece que entrou em pânico. Apaga-se completamente e logo após tomado o fôlego, volta a insistir em sinais ritmados, talvez um código Morse, uma frequência do futuro, aquele que fica além do muro.
Quantos caminhos ainda a percorrer? Valerá a pena ou será mais uma atribulação, um baú de tranqueiras que ficará para alguém descartar? Uma pilha de livros,um porta-retrato a ser esvaziado, uma ausência que virou um brinde?
Ah, o amarelo anda sinalizando. É hora de prestar muita atenção.
O titulo sugere uma cena medieval, um castigo pavoroso imposto a seres humanos cujos crimes abomináveis, precisavam ser punidos com requintes de maldade absurda. Não bastava a simples execução, por si só execrável, mas a retribuição da barbárie com muito mais barbárie?
Não é bem assim. Não se trata disso.
Trata-se do desmembramento de uma biblioteca, ou melhor, dos já minguados despojos de uma, outrora, pequena mas muito querida biblioteca.
Desde criança, convivi com estantes cheias de livros de diferentes assuntos. Dúzias, centenas, pilhas acumuladas por falta de lugar. Não fui um exemplo de aluno. Os livros escolares nunca tiveram a importância que seus parentes, aqueles colecionados lidos, relidos, guardados com carinho e reverência que o meu avô tinha com os dele. Mesmo assim, aproveitei bastante aquela biblioteca variada. Enciclopédias, livros de arte com ilustrações primorosas, livros antigos, raros, estes poucos. Romances, poesia, clássicos, enfim, Jules Verne, Pitigrilli, Platão, Suetônio, Bilac, Alberto de Oliveira, Machado de Assis, Conan Doyle.
A vida seguiu, saí de casa bem jovem, me casei, meu avô morreu e recebi aquele patrimônio fantástico, maravilhoso, um tanto volumoso, para minha alegria e responsabilidade. Não foi fácil.
Meu pai também era um acumulador de livros. Curioso e cuidadoso, reuniu umas duas centenas de livros bem cuidados, encapados, limpos e com anotações em separado. A hora dele também chegou e mais um bom lote de maravilhosos livros abrigou-se comigo.
Aos oitenta anos não há mais aquela energia bibliófila no ar. O pessoal é moderno, prático, pragmático,sei lá. Em conversas cordiais,percebemos que: - “agora tem tudo na Internet” é só procurar e está lá! E os livros eletrônicos, que maravilha. Pode-se ler pelo handy, ou celular, ou cellphone.
Olho para a estante entulhada de cultura, história, conhecimento, diversão, passado, momentos, saudade. Pego um livro antigo e vejo um ex-libris do meu avô. Pego um outro e lá está um ex-libris do meu pai. Lembro quando aprendi o que era um ex-libris. Para quem não sabe, ora, vá na Internet, lá tem tudo.
Não tenho mais como manter as pilhas de livros. Não tenho mais como armazenar, avaramente todo o saber ali acumulado e não absorvido. Preciso começar a lançar a carga ao mar. Preciso aliviar o peso das futuras sobras da vida. Preciso me desapegar do passado.
Separei alguns volumes para descarte. Leia-se como descarte, doação, “presente”, abertura de espaço. Fiz uma pilha no corredor, tirei alguns, botei outros.
Do sofá onde estou sentado fiquei observando.Que tristeza. Livros não morrem. São eternos. Livros são assassinados sem dar um pio. São maltratados, insultados, agredidos, segregados, esquartejados sem serem mortos primeiro. Uma página desmembrada, arrancada, solta, com uma poesia ou prosa continua transmitindo emoção ou nacos de cultura. Um Bilac do princípio do século passado, velho, encardido, meio mambembe pelo tempo de vida, assim como nós, está cheio de maravilhas. Um Machado de Assis velhinho, com as capas da brochura quase caindo, provoca as mesmas sensações de uma edição mais recente.
Um livro não morre. Quando a gente aprende amá-los, a conviver com eles, a sentir sua alegria ao serem consultados e lidos por prazer, a perceber o ato lúdico de folhear, reler, até escrever uma dedicatória, fica muito difícil racionalizar a dissolução de uma biblioteca.
Esquartejar sem matar. Dissolver uma relação , muitas vezes ciumenta, com esses amigos perenes pode parecer uma bobagem. Um exagero, quem sabe.
Não importa.
Livros são imortais até que a ignorância, a estupidez, o modismo ou, infelizmente, a necessidade, mude os cânones da existência.
Pesar sem luto.
Adeus amigos
Um dia ela apareceu.
Vinha voltando da praça,
a moça da casa ao lado,
sorridente e faceira,
trazendo pela coleira
o seu cachorro engraçado.
Perguntei qual era a raça
do companheiro peludo.
-É inglês, manso de tudo,
respondeu cheia de graça.
-Quantos anos ele tem?
Estiquei mais a conversa.
E ela, sem demonstrar pressa,
foi contando quase tudo
da vida daquele cão
brincalhão e abelhudo.
-Então qual é o seu nome?
Continuei perguntando.
E ela foi comentando
como era seu amigo.
- Faz tempo que está comigo,
fica sempre ao meu lado,
continuou a falar.
Depois, foi embora sorrindo
e eu fiquei a pensar,
o quanto bom que seria
se a gente pudesse, um dia,
um cachorro peludo ser.
Com uma princesa viver,
ao contrario desta vida
que não nos deixa escolher
o que melhor nos parece.
Ser um lindo animalzinho,
um cachorro bom, mimado
e ficar sempre pertinho
de alguma mulher-menina,
com um sorriso traquina
e o olhar encantado,
assim como aquela moça
que mora na casa ao lado.
Não, não é um texto sobre fofoca, mas poderia ser. Não sei se já viram o teaser do filme "Barbie", , a ser lançado em 2023. No anúncio, a boneca mais famosa do mundo faz uma paródia/pastiche do clássico "2001 - uma odisseia no espaço" (1968), do diretor norte-americano Stanley Kubrick.
As reações foram as mais diversas e revelam muito do espírito cultural contemporâneo.
Sites e comentadores disseram ser "épico", "fantástico", "genial", outros viram "homenagem", "referência", "imitação".
Mas não paremos por aí. Alguns foram além do vídeo e comentaram que acharam o filme de Kubrick chato e, para não dizer que se está sem embasamento, incluíram "Cidadão Kane" (1941), um filme de um tal de Orson Wells, na mesma categoria.
A boneca gigante, agora humana na figura de Margot Robbie , que surge no filme é a síntese daquilo que as culturas pop e pós-moderna, fazem de "melhor".
Fonte: reprodução
É claro que pode parecer apenas uma brincadeira com um clássico, mas, não nos enganemos, há uma estratégia nesse procedimento.
Não sejamos "apocalípticos", nem "integrados". A cultura contemporânea tem como uma das características esse reaproveitamento de suas próprias fontes, imagens, conteúdos.
Esse reaproveitamento se dá como citação de conteúdos presentes (essa é a palavra) em nosso imaginário, atualizando-os, citando-os, necessariamente, presentificando-os (aí está a justificativa daquela palavra).
Fonte reprodução
Esses procedimentos são inerentes a essa cultura, cada vez mais imagética, cada vez mais diante de nossos olhos e cada vez mais, estruturalmente (palavra demasiadamente clássica), fugaz.
Parte dessa fugacidade tende a criar uma percepção do mundo atual que se vê sempre em busca de um obsoletismo da imagem e, ao mesmo tempo, que busca, no palácio das memórias da literatura, da televisão e do cinema do Século 20 algo em que, quando necessário, se agarrar.
É uma nostalgia às avessas. Ao mesmo tempo que rememora um passado exemplar (um clássico) faz dele uma montagem reconhecível, como troça e como promoção. Não o renega, pelo contrário, se abraça a ele, como Andy Warhol "abraça" Marilyn.
Daí compreendermos (e, sejamos sinceros, bote compreensão nisso) que Kubrick e Wells, para essa nova forma de percepção e consumo, pareçam chatos. E entendermos que as cores de "Barbie", que vão cintilar, explodir a tela ano que vem, pareçam tão esperadas.
O próprio twitter oficial que representa Kubrick, compreendendo o processo produtivo atual, afirmou, na frase clássica, "dizem que a imitação é a forma mais sincera de homenagem. Até a Barbie é fã do Kubrick".
Não façamos, sobre o teaser, uma grita de puristas (apocalípticos), não adiantará; nem brademos a sua genialidade (integrados), será inútil.
Os dois polos, na definição de Dwight Macdonald , da inventividade do highbrow (alta cultura) e da diluição do lowbrow (cultura de massa) já, há muito, se encontram, se entrecruzam, se relacionam.
A relação entre Barbie e Kubrick também pode ser compreendida através de uma expressão atual, "shippar", até bem pouco tempo uma moda (nada mais fugaz) nas redes sociais.
A expressão derivaria da palavra "relationship" (relacionamento) que era utilizada por fazedores de "fan fiction", narrativas ficcionais feitas por fãs que fantasiavam e desejavam nessas histórias relacionamentos, muitas vezes improváveis, entre personagens, por exemplo, do cinema, já conhecidos.
They say imitation is the sincerest form of flattery!
A expressão "shippar" é o anseio ou a criação de uniões, prováveis ou não, e pelas quais se torce, se vibra.
O cortejar da boneca (do filme) sobre o diretor (seu cinema), poderia ser pensado desse modo. Ele cria um tipo de relação aparentemente incomum, mas ela é resolvida (dissolvida?) pelas estratégias do mercado atual das imagens.
Não seria à toa que os elogios a essa fusão highbrow / lowbrow são mais efusivos que suas críticas.
Poderia parecer improvável que "2001" se cruzasse com um filme sobre uma boneca. Mas olhemos além dos sintomas e talvez percebamos que isso faz parte de nossa odisseia da ficção contemporânea. É, se quisermos, um epifenômeno de nossa condição.
O monólito insondável do filme de 1968, que surge em vários lugares e que provoca as mais diversas indagações, pode agora ser, sem problema, uma loira totalmente sondável, em traje de praia.
O monólito de 2001. Fonte: reprodução
Pegue uma pipoca, reconheça a referência, sorria ou se enraiveça com ela. Não importa. O teaser anuncia que a boneca e o diretor não são uma "fan fiction". Não há mais pedras no caminho.
Para alguns, Kubrick está se revirando no túmulo; para outros, entre ele e Barbie há uma relação.
Poucos filmes ficaram no imaginário do Século 20 como “Casablanca” (1942). Comumente, atribui-se esse feito à história de amor que ele conta, adornada pela famosíssima música “As Time Goes By”. Canção que aqueles que amam o filme, agora, devem estar cantarolando.
É verdade que grande parte do sucesso do filme também está em seu cenário político, a II Guerra Mundial , e, por ser realizado nesse período, aumenta ainda mais o motivo para que a obra de Michael Curtiz (para alguns, um dos mais injustiçados diretores de todos os tempos) permaneça na história.
Sempre teremos “Casablanca”, claro, mas sempre teremos política, paixão e poder. A história e o cinema sempre demonstraram isso.
Frame do Filme
Esses três elementos formam o núcleo do filme que mostra a intriga do amor de Rick ( Humphey Bogart ) e Ilsa ( Ingrid Bergman ), dentro da intriga “menor”, a guerra entre nazistas e aliados, reproduzida em miniatura no clube noturno Rick’s Café.
É no clube do norte-americano Rick que se localizam os eventos principais, porque é lá que estão soldados, mulheres, comerciantes, políticos, todos em busca de seus interesses, e um dos maiores desses interesses é escapar da cidade marroquina.
Escapar não só porque Hitler avançava em muitas frentes, mas, porque, Casablanca, sob o domínio francês até então, após a invasão da França pela Alemanha, a partir de 1940, estaria sob o Governo de Vichy , um governo submetido aos nazistas.
Esse cenário poderia ser, por si só, um conjunto perfeito para um filme de sucesso. Mas, Roger Ebert , um dos maiores críticos de cinema de todos os tempos, vencedor do Pulitzer, dá, em um texto de 1996, como já se disse, uma das chaves para o sucesso dessa obra.
Ebert diz que o que diferencia Casablanca de um dos fundamentos do cinema, a identificação, é que no filme de 1942, os personagens apaixonados de Rick e Ilsa têm tudo para seguir a trajetória do par romântico e do final feliz. Mas essa promessa e sua realização, com a qual nos projetamos e identificamos, não se cumpre, em prol de um valor maior.
Frame do filme
O casal se reencontra no Rick’s Café após um período intenso de amor em Paris e uma separação dolorosa, provocada pelos acontecimentos da Guerra. Mas ela surge com outro homem, Victor Laszlo (Paul Henreid), na verdade, seu marido e um dos líderes da resistência aos alemães e por quem, mesmo antes de Paris, ela devotava admiração.
Rick foi um ex-comerciante de armas para os inimigos dos nazistas e ex-combatente contra os nazis em guerras anteriores. Depois da perda do amor, torna-se, como a sina do amante ferido (ele acredita que Ilsa o abandonou, em uma fuga, na estação de trem em Paris), cinicamente niilista e diz não acreditar mais em política e ser apenas o dono de um clube.
A famosa cena da música que marca o filme, em que Rick se depara, inesperadamente, com Ilsa em seu clube, na qual a câmera, em close, mostra o espanto dele e o rosto, onde lágrimas suavemente surgem resplandecente, dela, une um passado doloroso dentro de um presente, em guerra, que se arruína.
A célebre frase de Ilsa, ainda em Paris, “o mundo todo desmoronando e escolhemos essa hora para nos apaixonar”, talvez, faça ainda mais sentido, naquele momento de reencontro.
A identificação pelo espectador com essa paixão é inevitável. Mas, como afirma Ebert, somente ela não daria, especialmente no final do filme, a noção do valor que a escolha política de Rick, a escolha de deixar Ilsa seguir com Laszlo, dá ao abdicar de sua paixão.
Ao contrário do que possa parecer, a inexistência do final feliz clássico em favor de uma razão maior – sim, Rick diz, no diálogo final, não ser muito bom em ser nobre – potencializa, pelo contexto histórico e político, pelo poder repressor e pela tentativa de um poder de libertação, essa força da identificação e da projeção.
É ele quem, na cena mais explicitamente política, porque simula, entre cânticos, o conflito em curso, autoriza a Marselhesa, o hino francês, a ser tocado contra os brados dos soldados nazistas, em seu clube. Há em Rick uma nobreza, como quase em tudo no filme, dissimulada.
Frame do filme
Lá já está esse processo de identificação (sem falarmos no poder, no charme e no aspecto sarcástico dos protagonistas) que nos faz querermos ser, ao som de “As Time Goes By”, tocada ao piano por Sam ( Dooley Wilson ), Rick e Ilsa.
Mas nos atinge mais ainda porque nessa obra, que ainda permanecerá por muito tempo, como na vida e no cinema, sempre teremos política, paixão e poder.
Essas dimensões estão sintetizadas em três momentos especiais. No final, quando o Capitão Renault (Claude Rains) joga, com desprezo, uma garrafa com a marca Vichy no lixo, simbolizando, talvez dissimuladamente, o início do fim de sua subserviência com aquele poder.
E, em seguida, quando ele, na cena final, caminha amigavelmente com Rick, o que profetiza (lembremos, o filme é de 1942), ironicamente (porque o capitão é, como Vichy, um colaboracionista dos nazis) a libertação da França pelos aliados, em 1944.
Política, paixão e poder. Esses aspectos do humano e do filme, já estão presentes na cena na qual, na iminência da invasão de Paris, Ilsa e Rick vão à janela e ela ouve um estrondo. Então ela pergunta, “Isso foi um canhão? Ou é meu coração batendo?”
Atualmente não mais permito que a armadilha da saudade distraia a minha atenção. O que foi bom, super, ótimo, etc., teve o seu tempo.
As lembranças são boas. Saudades nem tanto.
Lembranças são fotos virtuais de bons momentos guardadas na mente. Não guardo os maus. Saudade é sofrer por qualquer lembrança.
Tenho ótimas lembranças, algumas transformadas em histórias verbais, sempre presentes quando pertinentes. Outras motivam reflexões e avisos para que algo não venha a se repetir.
Tenho lembranças de verdadeiras façanhas prazerosas, mirabolantes, inacreditáveis, bizarras, eletrizantes e singulares, outras menos emocionantes, mas igualmente gratificantes. O resto cancelei, eliminei, apaguei na medida do possível. Agora é um dia de cada vez.
Recomendo a todos amigos, independente da idade ou experiência de vida, reduzir o passado a poucas, pouquíssimas lembranças e não fazer grandes planos. O Acaso e a Fatalidade vão colocar as luzes no destino de cada um, sem avisar, sem respeitar, sem amor ou piedade.
Deixe a fila andar
Afinal, de quem é a culpa?
A lenda nos dá conta que Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, na verdade por Hefesto, a mando do Chefão, abriu uma caixa, que na versão original era um jarro com uma tampa, libertando todos os males até então desconhecidos pela humanidade. A mitologia grega é formidável em seu conteúdo. Deuses, semi-deuses, titãs, heróis, vilões, ingênuos, patifes, maravilhosos e maravilhosas em narrativas e cenários diversos. Uma leitura muito divertida.
Os autores gregos, Homero, Hesíodo, e outros brilham até hoje.
As explicações desde as origens do Universo e suas criaturas, até o registro dos momentos históricos, batalhas, conquistas, fenômenos climáticos, místicos, enfim, toda a obra dos grandes mestres, continua ajudando aos contemporâneos donos do saber, a explicar, interpretar ou fabular sôbre o grande mistério da vida.
Mas, além do Paraíso, perdido por conta da desobediência do casal primevo, uma das explicações para os sofrimentos e atribulações da humanidade é a pobre Pandora que levou a culpa pela dispersão de toda as mazelas do Mundo, ao abrir o tal jarro, ou caixa sem saber o que ali estava guardado. Ainda assim, conseguiu manter a esperança, como prêmio de consolação.
A coincidência entre Eva e Pandora, mulheres, mostra o lado misógino das narrativas, sempre atribuindo à fêmea a culpa pelos infortúnios, sofrimentos e tristezas da vida.
Que horror!
A mulher, fonte da vida, retratada como vetor do mal.
Mas, de quem seria a culpa por todas as coisas adversas, ruins, tristes, negativas, que trazem dor e pranto durante as nossas andanças pelo Paraíso?
O que é que permite a um ser pensante, decidir , tomar partido, escolher, definir, agir ou não em determinada situação?
O que levou Eva a provar do fruto proibido e o compartilhar com Adão, assim como Pandora a destampar o jarro e liberar as mazelas, foi ele!
Vamos perceber que o fruto proibido assim como o jarro destampado são masculinos. Mas ele quem? O que? O masculino, o macho, o poderoso, o decisivo livre arbítrio. Comum aos dois gêneros, é o que decide.
Acertar ou errar, perder ou ganhar, progredir, ou estagnar, regredir, encolher. Em todas ocasiões, o Juiz interno, endógeno, soberano, sutil ou cruel será sempre o responsável.
O livre arbítrio é o filho mais velho do destino de cada um. É o pai do remorso, da tristeza, da culpa, do amargor, da infelicidade ou do Sucesso.
A culpa dos males do Mundo?
O poder divino de decidir o próprio rumo.
(é jarro e não caixa, nas versões primitivas do mito)
Você lê o livro de contos, “Eu já morri” (2022), de Edyr Augusto, imaginando, eu já disse isso sobre outro livro, que ele está em sua janela olhando o que acontece lá embaixo e, ao mesmo tempo, debruçado sobre os cadernos de jornais de um mundo submerso em violência, sexo, amor, morte e irracionalidade.
De anjos natimortos, rufiões românticos, chacinas, até ameaças terroristas, toda a sorte de violência está exposta nessas linhas. São mundos de fronteiras e zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.
Se os caminhos da Rua Riachuelo e suas imediações são um dos principais trajetos desse livro, eles não são únicos e, até quando Augusto sai da Amazônia, a violência permanece, mesmo em uma cidade do outro lado do mundo, nas mesmas linhas.
Mundos de zonas físicas, (a “Zona da rua Riachuelo”, por exemplo), espaços da cidade e fronteiras do espírito. Mundos unidos entre o desejo e o instinto, entre afetos frágeis e algum devaneio de salvação, entre culturas em conflito e o amor, entre almas arruinadas e a vã busca de uma centelha de redenção.
”Eros e Psique” (17871793), de Antonio Canova. Os caminhos ”desviantes” do amor. Fonte: https://hdelartebach.wordpress.com/2017/02/15/escultura-de-eros-y-psique/
O primeiro conto do livro, “Anjo”, nos dá uma demonstração desse vitral composto em múltiplas vivências. Ele traz a temática da prostituição na “periferia” (Bairro da Matinha, descreve o autor), relacionando-a com o sentimento que muitos adolescentes nutririam por essas mulheres que pareceriam mais livres e imponentes e, por isso mesmo, mais misteriosas e desejadas.
É o sexo e sua descoberta, uma temática que é central dessa literatura, o tema que se mistura a esse incontornável mundo de proibição e desejo, no qual, nessa paisagem de barracos, se erguem verdadeiras barreiras entre excitação e indecisão.
Barreiras em madeira e sentimento, representadas na figura do garoto apaixonado por sua musa decadente e que, nela, se perde. Sentimento condensado na verossimilhança da descrição do ambiente “periférico” e na bela frase do autor, dita pelo menino, “mergulhei naquela mulher Amazônia sem passagem de volta”.
É da mesma cepa, um dos mais bem construídos contos do livro, “Caraxué”. Firmino, um guardador de carro das imediações da Riachuelo, evangélico e casado, se apaixona por uma prostituta, Dodora. O desejo é uma busca e é, também, alguma (in)completude de si.
Mas a busca, nesse mundo, nessa literatura, pode ser apenas um trajeto momentâneo para a queda. Rufião desiludido, apaixonado, em trono, destronado. “Caraxué”.
Bairro do Comércio em Belém, um dos cenários do livro. Foto: Angelo Cavalcante
Alguns elementos recorrentes da literatura de Edyr Augusto retornam nesse livro e, novamente, parece que estamos lendo alguma história que ouvimos de algum familiar, de um amigo, de um motorista de aplicativo que comentam as notícias do dia. Uma história soprada em nossos ouvidos e captada pela literatura.
É o caso do conto “Fale, garoto”. Leo é um ex-bon vivant que luta para não retornar à vida de festas, drogas e mulheres. Leo se debate entre ter uma vida rotineira e o desejo que o empurra para, talvez, o que ele realmente é.
Nesse retorno aos temas, locais e zonas do escritor paraense, é simbólico o conto “Motel Firenze”. Em um motel da cidade, um crime ocorre. Uma família da elite regional tenta encobrir o ocorrido. Um “playboy” está no centro dos fatos. A polícia e os governantes são corruptos e a imprensa escala sua busca diária pelo grotesco.
Em os “Éguas” (1998, em reprodução ao lado), os motéis já entrariam como uma das zonas recorrentes nessa escrita, exatamente por representarem o rompimento de fronteiras, nesse lugar onde as proibições se apagam e não se está mais “em casa”. Desejo e violência têm, aí, na literatura, um lugar para chamar de seu.
É um dos livros mais experimentais de Edyr Augusto e é, também, um dos livros mais presos à realidade mais visível. Realidades em lugares diferentes, com a violência matizada dentro de cada experiência das pessoas e suas cidades. São mundos, zonas, fronteiras.
Esse primeiro experimento, mais ousado esteticamente, está em “O amor entre nós”. Dois belenenses que não se conhecem, uma de descendência judaica e, outro, árabe, viajam para Jerusalém.
Eles se envolvem amorosamente com dois nativos de crenças opostas e, ao mesmo tempo, são engolfados pelo conflito árabe-israelense. A dúvida entre seguir suas crenças, o terrorismo e o amor, é a parte principal desse cenário.
Mas esse cenário, nesse que é o conto mais distante da Amazônia de Augusto, é contextualizado pelo autor com várias referências às crenças que atravessam os personagens e exibem seus pontos de vistas, seus prejulgamentos, suas leis e sua impensável união.
O escritor não nos dá uma análise do conflito, ele nos coloca diante de dilemas culturais, sociais e pessoais. Há história, mas há, fundamentalmente, literatura.
A frase, dita pelos belenenses que não entendem aqueles radicalismos daquelas terras distantes, “em Belém não tem disso, tem? Não. Não tem. Mas aqui...”, é a síntese desse mundo de zona de guerra e de - permitam-me a expressão - fronteira do amor. Em meio ao ódio, à dissimulação e ao caos.
O segundo experimento nesse livro não é tão novo assim. Na verdade, o contista, como se sabe, tem, na aproximação da sua literatura com a realidade amazônica, um dos seus fundamentos.
Livro de contos do autor que tem a Amazônia urbana como tema. Fonte: reprodução
Mas ele fará isso de modo muito mais documental - talvez, como em nenhum momento anterior - em dois contos, “O nosso amor não pode morrer” e o conto que dá título ao livro, “Eu já morri”.
O primeiro, faz alusão à chacina ocorrida no Bairro do Guamá, em Belém do Pará, em 2019, na qual, em um bar, onze pessoas foram mortas. Amplamente coberto pela imprensa, o autor transfigura o fato já no seu título, fazendo uma referência a uma famosa música do cancioneiro paraense (“Ao pôr do sol”), transfiguração que se seguirá nos nomes dos personagens, no enredo e na narração. No pôr do sol de Augusto, “na vizinhança, ninguém viu, ninguém ouviu nada. Era domingo, estavam dormindo. Às duas da tarde? Foi. A sesta”.
No segundo conto, a alusão é a outro famoso caso ocorrido no Estado do Pará, na cidade de Abaetetuba, no qual uma menor foi presa em uma cela com mais de 20 homens. Lá, por 26 dias, ela fora brutalmente violentada. No conto, ela se chama Janalice, mesmo nome da personagem de “Pssica” (2015) que sofre, também, vários tipos de violência.
Edyr Augusto repete, em muitos casos, os personagens em seus livros. Sejam os mesmos personagens, ou que se assemelham. Mas, nesse caso, talvez, ao criar a aproximação entre a menor de Abaetetuba e a Janalice de “Pssica”, ele queira nos dizer, pela semelhança dos acontecimentos, que ambas são parte de um mesmo mundo, de uma mesma decrepitude, de um mesmo roteiro.
Edyr Augusto homenageado na Feira Pan-Amazônica do livro de 2022. Foto: Maíra Belfort
Recentemente, o autor disse que existem antigos personagens que ficam atrás dele, em sua consciência, como fantasmas, a quererem mais um lugar nos seus livros. Eles diriam algo como, “olhe para mim, não esqueça de mim”. Nesse livro, eles voltam.
Mas não estão sozinhos. Vários novos personagens surgem. Com esses recém-chegados, a violência dará as mãos ao sexo; a desilusão se cobrirá de esperança e, resignadamente, cairá. Como no conto, de mesmo título, “Todos têm seu dia”. Eles deverão, no futuro, assombrar o escritor.
Se essas figuras, na realidade e no jornalismo, parecem sempre ser esquecidas, como fantasmas, cabe à literatura trazê-las para novos mundos, novas fronteiras, novas zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.