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Sábado, 18/11/2023
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Adão não pediu desculpas

Depois de aceitar a maçã e quebrar as regras para a permanência no Paraíso, Adão não pediu desculpas. A lambança já havia sido feita e não ia adiantar nada mesmo, pensou.
Acabou de comer a fruta, lambeu os beiços e foi aproveitar aquela maravilha toda. Até então, não tinha a menor ideia do sabor dos pecados. A maçã foi uma desatenção.
Eva até que era bem jeitosa e apesar de não saber cozinhar nem passar, tinha outras habilidades muito mais instigantes.
A cobra foi substituída por outras semelhanças, e logo arrumaram um cachorro para dar o alarme se algum outro bicho quisesse comer a patroa ou o patrão. Ninguém iria comer a Eva ou o Adão assim, de bobeira. Qualquer tentativa e o Fido, o primeiro com esse nome, fazia um escândalo colossal, quando não resolvia a parada sozinho com suas poderosas mandíbulas. Adão já tinha, igualmente, percebido a necessidade de um porrete, de bom tamanho, para ajudar na defesa da casa.
E assim começou a aventura. Comida farta, água corrente, temperatura amena e brisa leve de vez em quando,chuvas delicadas nas palmeiras gentis e os abacates, sempre acariciados por Eva, faziam parte da dieta. Bananas, pêssegos, peras, mangas alternadas com os abacates, enfim, a maçã estava meio de lado, mas sempre presente nas ementas diárias. Foi a primeira a ser lambida, foi a primeira a ser mordida, aquelas coisas.
Já bem velho, Adão recebeu a visita de um anjo, Oficial de justiça, com uma intimação para comparecer ao portão do céu ir pedir desculpas, e ficar um pouco melhor na foto, mas sem nenhuma chance de voltar ao começo. Paraíso exclusivo, sem barulho, sem sol ou lua, ou água corrente, paisagens, etc, nunca mais.Haveria até a possibilidade de sublimação, por raios meteorológicos, da Eva, a causadora de toda a alteração no projeto.
Adão deu uma olhada no documento, não entendeu nada pois não sabia nem precisava ler coisa nenhuma, pediu para o anjo explicar o que estava acontecendo e bateu com a porta na cara do ente alado, depois de vociferar em brados: (uma novidade. Os primeiros brados proferidos )
-Não vou pedir desculpas! Fiquei sem uma costela, tirada a frio, sem anestesia, comecei a dar umas topadas e machuquei o pé e os joelhos, várias vezes até aprender a andar no chão daqui, tenho que levar o cachorro para passear, mesmo com todo esse espaço, para que ele não acabe me estranhando, ou resolva ir viver suas próprias fantasias e deixe a caverna sem guarda à noite. A Eva tem épocas que parece que está vazando, fica triste, não quer brincar de esconde-esconde,reclama bastante.Mas está melhor assim do que a chatice de ficar olhando para nada, escutando nada, saboreando nada e só, tipo estátua em jardim de milionário.
Sai fora.
O anjo guardou a petição, foi embora, reportou o acontecido para o seu chefe e foi tomar uma boa ducha para espantar aquelas vibrações profanas.
Aí, foram libertados o Tempo, o Acaso e a Fatalidade.
Mas desculpas… Não, ele não pediu.

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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
18/11/2023 às 10h02

 
No meu tempo

A nostalgia do freguês da cadeira ao lado, quase mereceu uma resposta. Mas preferi escutar silente, entreolhando o fígaro pelo espelho e a revista que me dera para assuntar, enquanto aparava o que sobrou dos meus cabelos.
O assunto era a qualidade de vida e o tema recorrente o calor siderúrgico que anda tirando o sossego de todos. Velhos ou moços ressentidos sem poupar adjetivos nem sempre gentis, para a natureza, o governo, a prefeitura, os pobres, os ricos, enfim, culpando a todos.
A moda é reclamar das “mudanças climáticas”, causadas pela mão dos homens, que desmatam, se reproduzem como marsupiais ou não cuidam dos seus entornos, da sua área, do espaço que ocupam neste mundão de D’us.
Conversa de salão de barbeiro sempre contempla as atualidades da vida em geral. O clima tem sido destaque. O outro freguês estava imerso na ilusão de que seu passado foi melhor do que o presente no qual todos vivemos, e que os jovens jamais terão a possibilidade de usufruir das saudosas delícias.
Fiquei pensando: Onda de calor? Aqui nunca foi novidade
No meu tempo...
O transporte sempre foi coletivo, para a maior parte da população. Automóveis e motocicletas atravancando-se como piolhos, é coisa quase que recente. Ficou fácil adquirir um carro ou uma motocicleta em dezenas de prestações, e reclamar da falta de lugar para estacionar ou do preço do combustível.
No meu tempo, ah no meu tempo…
Bonde, ônibus, trem, lotação. O táxi sempre foi para poucos ou para necessidades especiais. Era coisa de gente com um troquinho a mais no bolso. Até aí, sem novidades. Nas horas de movimento todos os meios ficavam entupidos de gente, pendurada até do lado de fora, caso dos bondes. Os assentos eram, originalmente, duros! Madeira! Só com a vinda dos ônibus americanos, na década de 1950, é que o estofamento apareceu.
E o ar condicionado? Seria considerado doido quem imaginasse, um dia, ônibus obrigados a ter ar condicionado em todas as linhas, fossem os bairros menos bonitos ou ricos.
No meu tempo, nem hospital tinha refrigeração mecânica como hoje.
Ar condicionado em agência de banco, só em algumas poucas e bancos estrangeiros. Ar condicionado em cinema! Ora, ora, pouquíssimos tinham tal oferta.
No meu tempo, as salas de aula em colégios pagos ou públicos, tinham janelas. E ponto final.
Merenda escolar gratuita nas escolas públicas? Nunca vi. A cantina, vendia refrigerantes e sanduíches para quem pudesse pagar. Os alunos levavam merenda para comer na hora do recreio. E ninguém ficava fazendo barulho, reclamando, agitando por conta disso.
Vale-transporte, vale refeição, semana de cinco dias. Pura ficção. Os bancos funcionavam aos sábados, até ao meio-dia.
Que “meu tempo” era esse?
Imagine ser possível trabalhar com um sapato de pano, um tênis. Só praticantes do Tênis, elegante "sport”, usavam o tal calçado. Acabada a partida, trocavam o uniforme, incluindo aí os sapatos.
No meu tempo não havia tolerância com a descompostura ao trajar-se para ir trabalhar. Paletó e calça era a roupa-padrão para homens não miseráveis. Um traje discreto, mais barato ou médio, mais caro, sob medida, etc. variando com a categoria de quem o estivesse usando. Uniformes profissionais para militares, policiais e alguns profissionais específicos.
No meu tempo, quem podia usava cambraia de linho, tropical pitex, shantung de seda. Quem não podia usava outros tecidos menos nobres. Mas sempre de paletó, camisa de abotoar, mangas compridas, e gravata! As mulheres caprichavam nos modelos, costumes, sapatos, bolsas e carteiras…
Ah, no meu tempo…
Um calor senegalês, um transporte terrível, um desconforto brutal que ninguém notava.
Era assim naquele tempo… Muito pior? Nem sim nem não. Era apenas “naquele tempo”. Daí a entender que as coisas pioraram a ponto de lamentar-se por tudo, há um oceano de argumentos e verdades menores a considerar.
No meu tempo ninguém reclamava o que não conhecia. A liberdade, a racionalidade, a mudança nos hábitos e costumes, a comunicação hiperveloz, que nos mostra o mundo inteiro com todos os seus continentes, suas cores, suas gentes, seus absurdos e suas maravilhas.
Ainda bem que estamos testemunhando os novos tempos. É o que temos que fazer.Testemunhar enquanto for nosso destino.
No meu tempo… Oooops. Meu tempo é agora.


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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
17/11/2023 às 11h01

 
Caixa da Invisibilidade ou Pasme (depois do Enem)





Isso não é defesa nem resposta. É uma tentativa. Não sei bem de quê. É sobre como as pessoas são eternamente pessoas. Existe uma caixa de invisibilidade que todos os montadores de caixas dizem conhecer. As pessoas são em essência montadores de caixas. Coisa simples é montar uma caixa. Até capenga não deixa de ser caixa. Então todos somos montadores e colocamos o que não vemos. São pedaços das coisas que não sabemos e mesmo assim colecionamos como sabedoria.

Abrimos essa caixa e dizemos:
__ Usa isso. É assim que você tem que ser.

E esse naco de objeto cai no seu rosto, perna, orelha, o que for… e te apaga um pouco. Primeiro porque a caixa é de outra pessoa e segundo, foi jogado. Se você não aceita, logo um crime vem acoplado com outro pedaço de plaquinha invisível com o dizer “dei a solução, você que não quis” é dolo eventual.

É preciso parar os coaches de como tratar a mim e pasme, coaches com instruções de como tratar a expectativa do outro. Ninguém que dá conselhos NUNCA veio ver como é. Só ouve e carimba com “sei como é”. Não, não amigui, não sabe como é.

E se for para comprovar com a razão do outro é melhor nem explicar. Porque cansa.

E vocês não vão acreditar! A pessoa aconselhada possui uma própria vida. Engraçado né? Ela tem opiniões. Muito embora ela abra mão até, olha bem “até” das opiniões, abre mão de várias horas de sono, dos passeios, inclusive paga conta que nem dela é! Ela não (nononinono) não pode fazer nem dizer o que der na telha só porque está triste ou nervosa… porque ela é a mulher invisível, lembra? Vamos colocar na mesa. Isso: a mulher invisível que mesmo assim continua sendo uma pessoa, pasme nº2: uma individualidade.

Todas essas conclusões do que uma mulher (aqui já no manisfesto feminista) que sustenta uma casa, vida com dinheiro, trabalho e cuidados, escuta o que a vai tornando invisível:

__ É só você me chamar que te ajudo. (aí você chama mas no dia a “ajudante” arrumou algo para fazer, e, faltando 15 minutos para você poder ir no @#$% qualquer, tu - tu porque tô ficando pistola- recebe um zap que tal coisa visível aconteceu na vida dela). Isso é uma toalhada invisível que passou raspando na sua bunda.

__ Tem um chá de casca de brioche com camomila e folha de árvore das cheias do Araguaia que se ferver por 35 segundos e coar no pano molhado com essência de menta faz bem para (acrescente depressão, joelho inchado, qualquer coisa). Vou trazer e você faz, viu?. (agora tacaram o pano de prato invisível no seu nariz).

__ Vou na sua casa pra a gente conversar, tá bom? (esta é uma rasteira com uma enxada da invisibilidade que arranca o seu pé, filhinhis, ninguém quer conversar, a mulher quer dormir, criatura! Quer ler, tomar banho, ver TV. Não vai, amor, não vai sem essa frase ter sido dita pelo menos três vezes pela mulher invisível.

Tem mais, muito mais. Mas o grande poder da invisibilidade jaz no predicativo de precisar ser quem A CAIXA DO OUTRO determina que você precisa ser. A mulher já anda sem pé, manca, sem pedaço de bunda, sem nariz, na sua PRÓPRIA CASA e tem que dar conta da casa, do idoso, da limpeza, das compras, do dinheiro e… ainda o Gran espetáculo: tem que ser COMO os outros ACHAM que deve ser.

Nenhuma mulher invisível tá usando droga. Nenhuma mulher invisível abandonou quem quer que seja. Nenhuma mulher invisível quer mal a ninguém. Deixa ela em paz. Deixa ser a louca da limpeza. Deixa as regras com ela da casa dela que ela paga o IPTU a luz água internet.

Não tente emendar o que tá acontecendo.

Aqui trato na essência da palavra Mulher, isso, essa que queimou o sutiã em 1960. Não disse abusadora, aproveitadora, malfeitora, mal tratadora, eu disse MULHER e coloquei a adjetivo INVISÍVEL…

Só tem uma coisa que a mulher invisível não faz, amiguini… É abrir sua caixa e jogar peças da sabedoria no outro. Isso é o super poder de quem se torna ou está se tornando invisível.


Imagem: https://obutecodanet.ig.com.br/

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Postado por Blog de Aden Leonardo Camargos
13/11/2023 às 13h41

 
CHUVA

Eduardo abriu a porta de casa, esfregou a sola dos sapatos no tapete da soleira, sacudiu o guarda-chuva do lado de fora e entrou. Depois de pousar o guarda-chuva aberto no chão para secar, suspirou aliviado. Que bom ter conseguido chegar sem maiores incidentes, pensou. Chuva desse porte no Rio de Janeiro é sempre sinal de perigo. Não é à toa que a prefeitura colocou a cidade em alerta. Dirigiu-se à cozinha da pequena casa de vila e procurou a garrafa de cachaça, aberta na véspera. Estou bem necessitado de uns goles, depois dessa viagem de ônibus de duas horas, espadanando água das poças. Motorista bom, podia não ter chegado até aqui, com as ruas esburacadas desse subúrbio. Mas chegou.

A bebida forte esquentou-o por dentro e trouxe uma sensação de alento. Sentou no sofá e ligou a televisão, preparando-se para assistir o jogo decisivo para o título do campeonato carioca. Depois dos habituais comerciais, porém, o locutor anunciou: jogo cancelado. A chuva havia deixado o gramado impraticável.

Eduardo tentou afogar a decepção com mais meio copo de cachaça. Remoeu a crescente irritação desfilando na mente as inúmeras desculpas e explicações para o excesso de chuvas ocorrido nos últimos meses. Meteorologistas e outros cientistas das mais variadas especialidades eram chamados aos canais de TV para oferecerem suas versões para o fenômeno. La Niña, dizia um deles. Errado, dizia outro, trata-se com certeza de El Niño. Aquecimento global, afirmava um terceiro. Efeito estufa. A água do mar esquentara e isso criava muito mais nuvens, pela evaporação. O fato é que não se entendiam e a chuva continuava.

Telefonou para o celular da namorada Sueli, que atendeu mal-humorada. Estava presa numa estação do BRT, o ônibus não chegava e a água continuava a subir. Combinaram um encontro no dia seguinte, se o tempo melhorasse. Com mais nada para fazer, foi dormir, ouvindo o pingar monótono pela janela.

Acordou tarde no dia seguinte, era sábado. A chuva amainara, e algumas nesgas de céu azul podiam ser vistas entre nuvens cinzentas. Mais animado, programou-se para uma ida ao supermercado. Na semana anterior fora impedido de ir devido à forte chuva. Havia inclusive rumores de desabastecimento, estradas danificadas pelas enxurradas impediam a chegada de mercadorias. Paciência, compraria o que encontrasse.

A empreitada revelou-se quase heroica, horas de espera pelo ônibus, passagem por ruas alagadas com água até os joelhos. Afinal, conseguiu voltar para casa com alguns poucos produtos essenciais, café, arroz, macarrão, nada de perecíveis. Não encontrara tampouco cachaça, que pena, a sua estava no fim. A chuva havia recomeçado com força, e ele chegou em casa encharcado.

Depois de um banho quente, ligou a televisão. O noticiário estava cheio de imagens de deslizamentos de morros, casas construídas em locais de risco desabando. Bombeiros cavavam a lama à procura de mortos. Deprimido, desligou e tentou falar com Sueli. Atendeu a secretária eletrônica. Foi para a cozinha, preparou macarrão, e comeu com uma lata de sardinhas que ainda encontrou no armário.

O barulho da chuva forte continuava pela tarde. Tentou passar o tempo relendo um livro policial de sua coleção; no entanto, não conseguiu concentrar-se. Lá pelas cinco horas, ouviu a campainha tocar. Depois de espiar pelo olho mágico, abriu a porta: era Sueli. Encharcada, o cabelo e as roupas pingavam água. O vento carregou meu guarda-chuva, explicou. Abraçaram-se forte, um aperto prolongado. Estavam ficando com medo.

Não havia muito a fazer a não ser olhar a chuva pela janela ou ver televisão. A programação normal dos canais era constantemente interrompida por notícias das enchentes. Não só as comunidades carentes estavam sendo prejudicadas: bairros abastados da cidade também sofriam as consequências das chuvas. A lagoa transbordara e inundara as ruas vizinhas; garagens de prédios de luxo ficaram alagadas, carros flutuavam dentro. A ressaca avançara pelas avenidas da orla marítima, que se encheram de espuma do mar.

Eduardo e Sueli ficaram em casa, não havia como sair mais. Cozinhavam os poucos alimentos que ainda restavam, ouviam o barulho da água caindo e das trovoadas. Sueli, religiosa, colocou uma pequena imagem de Nossa Senhora de Aparecida, que trazia sempre na bolsa, numa prateleira da estante. Postava-se em frente e orava, as mãos em prece. Vem rezar também, Dudu, chamava. Agora, só se Deus ajudar. O namorado, cético, resistia.

Passaram assim o fim de semana. Segunda feira, desistiram de ir trabalhar, não havia ônibus mesmo. A TV transmitia também notícias de canais internacionais. Parece que o mundo todo estava sendo afetado pelas chuvas. As ruas de Nova York estavam inundadas; o rio Mississipi transbordara e alagara as cidades e planície ao redor. Na Europa, rios transbordavam, morros desabavam. Em lugar algum havia sinais de estiagem, a chuva só engrossava. As autoridades pediam calma, mas não conseguiam atender aos milhões de desabrigados.

Lá pelo meio da semana, quando assistiam televisão no começo da noite, ouviram um estrondo e todas as luzes se apagaram. Deve ser a subestação de eletricidade que explodiu, calculou Eduardo. A vizinhança toda ficou no escuro, e agora, também, sem informação.

Pouco depois, ouviram um barulho forte de correnteza, parecia que a rua tinha virado um rio caudaloso. Perceberam que a água começava a entrar por debaixo da porta.

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Postado por Blog de Diana Guenzburger
19/9/2023 às 17h51

 
DECISÃO

Camila sentou no banco da praça e ficou abanando-se com a revista que carregava. O calor era intenso. Isso não impedia que as crianças brincassem entusiasmadas nos balanços, gangorras e pula-pula, junto com outros meninos e meninas de idades semelhantes. Impressionante a energia, pensou, nada os faz se cansarem. Frequentemente encontrava outras mães, ou mesmo babás, com quem podia conversar e passar o tempo, enquanto acompanhava os filhos. Hoje, no entanto, não havia ninguém conhecido. Aproveitou a solidão para mergulhar nos pensamentos, tentando colocar alguma ordem no caos que reinava em sua mente.

Casou-se cedo, com festa em clube, damas de honra e bolo enorme enfeitado. Conhecera o noivo numa reunião de trabalho. Muito mais velho do que ela, era gerente da empresa, e pareceu encantado em conversar com a jovem ingênua, bonitinha mas simples, que parecia pedir proteção. Convidou-a para jantar num restaurante da moda e daí saíram mais vezes. Apresentou-a à família.

Numa noite de verão, no bar da varanda de um hotel à beira-mar, abriu-se com ela. Era divorciado e não tivera filhos. Sentia-se só e a solidão lhe pesava. Sua maior felicidade, confessou, seria tê-la como esposa. Esperava que a diferença de idades, e seus cabelos já grisalhos nas têmporas, não impedissem sua união.

Camila, um pouco confusa com a rapidez dos acontecimentos, não respondeu logo. Mas tudo conspirava para que aceitasse. Os pais dele, radiantes com a possibilidade de terem uma jovem nora e, talvez, netos; sua família, encantados em vê-la ao lado de um homem maduro com bela carreira, que poderia oferecer-lhe segurança e tranquilidade. As amigas e colegas, que declaravam morrer de inveja da sorte que ela tinha. Afinal, acabou aceitando e o casamento realizou-se.

No começo, tudo aconteceu como previsto. Camila gostou muito de ter a própria casa e sentia-se feliz. O marido insistiu para que abandonasse o emprego, não precisavam do dinheiro. Mas ela foi firme e continuou trabalhando. Logo ficou grávida e vieram dois filhos lindos, menino e menina, um atrás do outro. Descobriu que trabalhar fora e criar filhos ao mesmo tempo era duro; mas as avós ajudavam, e a vida corria tranquila. A moça, no entanto, nos poucos momentos em que se encontrava sozinha, sentia um vazio, falta de alguma coisa que ela mesma não sabia o que era.

Resolveu fazer um curso, isso iria fazê-la ganhar conhecimentos e, ao mesmo tempo, distraí-la dos pensamentos negativos. Escolheu História da Arte, assunto que a fascinava, e matriculou-se na Escola do Parque Lage. Lugar cheio de artistas trabalhando, que expunham suas obras nos corredores; o próprio casarão antigo de pedras cinzentas emanava uma atmosfera mágica, onde parecia que tudo poderia acontecer. O professor de Arte Contemporânea era jovem como ela. Mais baixo que a média dos homens, tinha cabelos bem pretos encaracolados e charme de artista pobre. Ainda por cima, grande talento de comunicador, o que tornava suas aulas fascinantes. Camila chegava cedo e não faltava nunca.

No intervalo de uma exposição, encontraram-se no café da Escola. Tímida, Camila ousou aproximar-se e fazer perguntas sobre o expressionismo abstrato, que a intrigava. Estabeleceu-se um diálogo animado. Os encontros no café tornaram-se uma rotina, e revelaram grande afinidade de gostos e valores. Além disso, a atração física que sentiam um pelo outro era visível, quase palpável. Um braço que tocava o outro, olhares que se cruzavam, tudo era óbvio, mas nada era dito.

A Escola organizou uma grande excursão a Inhotim, museu fantástico de arte contemporânea a céu aberto, em Minas Gerais. Camila conseguiu ir, apesar dos protestos do marido. Quem cuidaria das crianças? Eram só cinco dias, ele podia fazer isso, junto com a babá. Por que ela queria viajar sem o marido? O que a família iria dizer? Não seja antiquado, os tempos mudaram, não tinha nada de mais, outras senhoras também iam.

Chegando em Belo Horizonte, o grupo foi para um hotel, combinando de encontrarem-se cedo para a primeira visita ao parque. O local era deslumbrante, as obras de arte espalhadas entre palmeiras enormes e vegetação exuberante. O grupo acompanhava o guia, outro professor da Escola; a certa altura, Camila distraiu-se com uma instalação de acrílico vermelho e foi ficando para trás. Percebendo, tentava apressar o passo para juntar-se aos outros, quando notou a presença ao lado de seu jovem professor. Pegou-a pelo braço; uma touceira de bambu ao longo do caminho fez o resto. Seus corpos se tocaram com sofreguidão. De volta ao hotel, encontraram-se num quarto, onde o desejo mútuo se consumiu. A paixão avassaladora dominou aluna e professor durante todo o resto da viagem.

* * *

De volta à realidade do cotidiano, os pensamentos de Camila oscilavam entre a nova e avassaladora felicidade alcançada e seus deveres de mãe e esposa. Nunca havia sentido uma paixão dessas por um homem, e parecia perdida. Na cama com o marido, comparava o sexo burocrático e rotineiro com as horas de paixão que passara com o amante, em que cada experiência fora um êxtase. Mais tarde, recriminava-se por ser uma esposa infiel.

O marido parecia intuir alguma coisa, e observava-a de longe, intrigado. Pensava que não poderia jamais viver sem a mulher e os filhos, que conseguira tão tarde na vida. Tentou agradá-la, com presentes e elogios. Um dia, anunciou.

“Camila, vi como você gostou de viajar e conhecer coisas novas. Por isso, resolvi que vamos a Paris, cidade cheia de arte e outras maravilhas.”

Mostrou-lhe as passagens, classe executiva. Mas Camila não se entusiasmou.

“Vamos deixar pra mais tarde, está bem? Daqui a uns anos... Por enquanto, as crianças são muito pequenas. Não tenho vontade de deixar elas sozinhas.”

Enquanto isso, os encontros furtivos com o professor de arte continuavam. Encontravam-se depois das aulas no bosque do Parque Lage, no lusco-fusco, e seguiam para o pequeno apartamento conjugado do jovem. A paixão e o desejo aumentavam, mas junto com isso, também o remorso.

Um dia, o namorado anunciou uma novidade.

“Vou para São Paulo. Fui convidado para dar cursos no museu de Arte Moderna. Emprego mesmo! Uma oportunidade incrível.”

Parou de falar, e fixou o olhar nos olhos de Camila. Após alguns minutos imóvel, disse:

“Vem comigo.”

“E meus filhos?”

“Traz eles também.”

A moça ficou atônita, e foi-se embora sem responder. Em casa, abriu a janela do quarto e apoiou os cotovelos no parapeito, pensando, pensando. Religiosa, pediu ajuda ao Senhor para dar-lhe sabedoria e tomar a decisão correta. Era jovem, ainda. Teria direito de ser feliz? Mas abandonar o marido, que era tão bom com ela....

As horas passavam, não decidia o que fazer. Largar tudo e seguir o amante? Ou ficar com o homem bom que a acolhera como esposa?



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Postado por Blog de Diana Guenzburger
30/8/2023 às 14h06

 
AMULETO

Waldir morava em um prédio velho de Botafogo, que dava para morro coberto por árvores frondosas. Essa vista para a natureza exuberante fora um dos principais motivos para a escolha do imóvel, quando finalmente teve condições financeiras favoráveis para comprar casa própria. A princípio, ele e sua mulher Durvalina ficaram extasiados com o que viam. Além de micos e macacos-prego, pássaros variados habitavam a mata, incluindo tucanos de bico preto e peito laranja. Entre as várias espécies, os bem-te-vis eram os favoritos do idoso casal. Amarelos e pretos, eram os primeiros a acordá-los pela manhã, com seus gritos estridentes desde o nascer do sol. Rolinhas, sabiás, pardais, andorinhas, maritacas e até ocasionais jacutingas, pretas e pesadonas, alegravam a paisagem. Muitos construíam ninhos nos galhos das árvores em frente, ouvindo-se os piados dos filhotes, saudando a aproximação dos pais trazendo alimento.

Recentemente, porém, as coisas começaram a mudar. Já não havia tantos pássaros e os ninhos escassearam. Em compensação, um novo habitante da floresta começou a surgir: o urubu. A princípio, eram poucos e voavam alto, em círculo, por cima do morro. Durvalina olhava pela janela, intrigada e apreensiva. O que será que atraía estas aves agourentas? Não gostava deles, e não entendia sua aproximação. Que soubesse, não havia lixo nem carniça naquele local. Chegou a imaginar teorias tenebrosas sobre corpos de pessoas assassinadas, jogados no alto do morro pelos bandidos que habitavam a favela próxima. Isso certamente atrairia as aves de rapina, que gostam de carniça. Mas, não: se fosse isso, o fato já teria sido descoberto pela polícia.

E o mistério continuava. O número de urubus foi aumentando, voando cada vez mais baixo. O casal morava no quinto andar, e as aves tiravam rasantes pela altura das janelas do apartamento. Pousavam em galhos próximos e abriam as grandes asas, para secar ao sol. Eram inteiramente negros, com exceção das beiras das asas, onde se viam penas brancas.

Durvalina começou a sentir-se inquieta, e ultimamente evitava olhar pela janela. O que era antes um grande prazer, agora estava assustando-a. Mostrou as aves para o marido, que deu de ombros. “É um pássaro como outro qualquer. Você anda vendo fantasmas.” Mas a velha senhora não acreditava. Desde criança, sua mãe lhe havia dito que urubu era uma ave de mau agouro. Quando apareciam perto, nada de bom poderia acontecer.

Insistiu com o marido sobre o assunto, mas Waldir rebateu, desta vez irritado. Pois não sabia ela que o urubu era considerado um benfeitor da natureza? Era um pássaro-lixeiro, que limpava o mundo do lixo e da carniça espalhados pelos humanos, principalmente nas grandes cidades. Li isso na internet, declarou ele, com certo desprezo pela ignorância da mulher. Mas ela não se convenceu.

Um domingo, Durvalina estava lendo o jornal numa poltrona da sala, de fronte para a janela. Ao olhar para a frente, viu que um grande urubu pousara em galho curvo de uma árvore próxima. Estava quieto, com as asas arriadas, e parecia olhar para ela. A mulher sentiu um arrepio pelo corpo, mas tentou continuar a leitura. No entanto, não conseguiu concentrar-se e olhou em frente outra vez. O animal não se movera e continuava a encará-la.

Levantou-se, interrompendo a leitura. Dias depois, a mesma cena repetiu-se, quando estava lendo um livro. Depois da terceira ou quarta vez, resolveu-se.

“Preciso tomar uma providência”, raciocinou Durvalina. “Ou vou esperar acontecer uma desgraça? Não, isso nunca.”

Foi para o quarto, e começou a abrir gavetas do seu guarda-roupas. Não era uma pessoa organizada, e anos de negligência haviam resultado em uma grande bagunça, papéis velhos acumulados, roupas gastas amarfanhadas misturadas com novas. Levou várias horas vasculhando as gavetas, até encontrar o que procurava.

Levantou-se, segurando nos dedos o cordão de ouro, com a cruz de pequenos brilhantes pendurada. Tinha pertencido à sua mãe, e, antes disso, à avó e à bisavó. A mãe lhe dera de presente quando fez quinze anos, com a recomendação:

“Guarde isso com cuidado, viu, minha filha? Vai lhe proteger, como protegeu a mim, sua avó, bisavó, e todas antes delas. Na verdade, ninguém sabe quem foi a primeira dona, nem quando foi fabricado. Toda vez que você se sentir ameaçada, use esse cordão. Ele vai te resguardar!”

Durvalina prendeu o cordão em volta do pescoço, e logo sentiu-se melhor. Quero ver o que o urubu vai fazer agora, pensou. De fato, quando se punha a ler na poltrona de frente à janela, não viu mais a ave agourenta. Além disso, parecia-lhe que, agora, havia menos desses pássaros rondando o prédio.

Suspirou aliviada, e voltou a olhar pela janela, admirando a mata. Pouca gente, nesta cidade poluída e congestionada, tem o privilégio que nós temos de viver tão próximos à natureza, ponderava. Quando tinha esses pensamentos, porém, lembrava-se dos urubus e automaticamente levava a mão ao pescoço, apertando a pequena cruz de brilhantes.

O tempo foi passando e nada de notável aconteceu. Os urubus haviam ficado cada vez mais escassos, e somente de vez em quando um ou outro aparecia em volta do morro. Durvalina podia ler tranquilamente em sua poltrona predileta em frente à janela, que nenhuma ave esdrúxula aparecia para espiá-la.

Um sábado, a velha senhora, como de hábito, foi à feira do bairro comprar peixe e verduras. Arrastava atrás de si o carrinho de lona colorido, que estava leve, mas ficaria bem mais pesado quando cheio com as compras. Era um dia bonito de sol, sem nuvens, e Durvalina sentia-se alegre e satisfeita. Percorreu vagarosamente toda a feira, que afinal não era muito grande, e decidiu-se por um robalo fresquinho, bananas e algumas folhagens para salada, como alface e agrião. Estava voltando para casa, abrindo caminho entre a multidão que a essas alturas bloqueava a rua das barracas, quando sentiu um empurrão de alguém, que batera com força em seu ombro. Virou-se para trás indignada e viu um adolescente, a cabeça coberta por um capuz que lhe escondia também boa parte do rosto. Pediu desculpas em voz baixa, parecendo envergonhado.

Continuou a caminhada para casa, esforçando-se para não dar maior importância ao incidente. Quando chegou, logo esqueceu-se do ocorrido, na faina de guardar as compras feitas. Tudo arrumado na geladeira, voltou-se para a área de serviço, onde a aguardava uma cesta cheia de roupa suja, para lavar na máquina. Ao olhar para a janela, porém, levou um tremendo susto e seu coração disparou.

Um grande urubu encontrava-se pousado no parapeito, as asas meio abertas mostrando as penas brancas nas pontas. Olhava para ela, balançando a cabeça de um lado para outro.

Apavorada, Durvalina levou automaticamente a mão ao pescoço, em busca do amuleto protetor. O cordão havia se rompido e a pequena cruz de brilhantes desaparecera.



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Postado por Blog de Diana Guenzburger
30/8/2023 às 13h35

 
Oppenheimer: política, dever e culpa






“Originalmente lançada para explodir a cerca de 500 metros de altitude, a primeira bomba provocou efetivamente um clarão, um flash nuclear [...], clarão do qual a luz se infiltrou em todos os locais, nas residências e até nos porões, deixando sua impressão nas pedras. O mesmo ocorreu com as roupas e os corpos, pois o desenho dos quimonos tatuou a pele das vítimas”. (Paul Virilio. “Guerra e cinema”, 1984).




Ainda existem dúvidas se Robert Oppenheimer passava ou não informações do Projeto Manhattan para os russos. E parece que essa é a grande preocupação do filme de Christopher Nolan e seu “Oppenheimer” .

O prometeu norte-americano teria sido um patriota arrependido de ser o “destruidor de mundos”, ou suas ligações com a esquerda da época apontavam para um traidor?

Nolan não deixa dúvidas. Seu filme procura provar que aquele genial sujeito franzino foi ao mesmo tempo um homem de sua época que cumpria seu dever e, depois, um sujeito destroçado por algum sentimento moral.

É provável que a intenção central do filme tenha sido essa. Porque se você vai ao cinema à procura de um show de imagens sobre o poder de destruição atômica que assombrou o mundo em 1945, refaça seu espírito. Isso não existe nesse filme.


Fonte: https://filmow.com/


Estamos aqui diante de um fenômeno não incomum do cinema. A expectativa de que teremos uma pirotecnia que repetiria as trucagens, frases de efeito e plots inesperados que tanto marcaram a obra do diretor britânico.

Mas esse não foi o objetivo de “Oppenheimer”. É certamente o filme histórico de Nolan mais preso à realidade, digamos. Ou pelo menos à realidade à qual o longa-metragem toma.

Mais do que “Dunkirk” (2017) no qual ainda podemos ver algumas das famosas confluências temporais no ritmo de vai e vem que tanto encantaram os espectadores.

Se você quer ter um fundo mais prático para verificar essa “base de realidade”, veja o documentário “To end all war: Oppenheimer & the atomic bomb” (2023).

Nele, além de vários depoimentos, temos as falas dos autores, Kai Bird e Martin J. Sherwin, do livro no qual o filme se baseia, “Oppenheimer: o triunfo e a tragédia do Prometeu americano” (2006), e a participação do próprio Nolan. Depois de ver essa “prova de realidade” você poderá compreender melhor a ficção.



E compreenderá não porque ela é difícil, mas porque as disrupções temporais, tão caras à trajetória do diretor, que mostram o passado do protagonista, seu tempo já no projeto da bomba e sua posterior inquisição pela política norte-americana, confundem um pouco o espectador não habituado ao tema.

É certo que se a ideia do filme era representar Oppenheimer (Cillian Murphy) em suas contradições ele vai bem. Mas fica-se com a impressão de que um momento histórico tão decisivo da história da humanidade poderia ter uma representação melhor.

Por exemplo, a Conferência de Potsdam, que definiu as diretrizes da administração da Alemanha, assim como outros acordos com os países envolvidos na II Guerra, desaparece. Ela surge unicamente em um telefonema do General Leslies Grooves (Matt Damon) para o presidente norte-americano, Harry Truman (Gary Oldman).


Conferência de Potsdam. Stalin, Truman e Churchill. Fonte: Wikimedia commons


Como se sabe, essa carta na mão foi decisiva para os interesses dos Estados Unidos, exatamente porque o teste da bomba realizado com sucesso na região desértica de White Sands se dá um dia antes, 16 de julho de 1945, do início da reunião em Potsdam. Com essa informação, Truman poderia barganhar mais poder diante de Stalin .

Tudo bem, é ficção e o foco talvez não fosse esse. Mas em outros momentos tão importantes daquele período, resta ao espectador ou buscar por sua memória, ou fazer conjecturas diante da quantidade de informação que poderia dar, ainda mais, um fundo de realidade mais compreensível. Em estética isso se chama verossimilhança.

Essa capacidade de representação mais convincente, persuasiva, que pode ser tomada como realmente algo possível, no filme, por vezes, se prende muito mais a algumas representações quase obrigatoriamente clichês.

A atuação de Cillian Murphy está longe de ser um desastre, evidentemente. Mas em quase todo filme Oppenheimer, um homem com tamanho poder, parece que vai se quebrar não por uma explosão, mas apenas por um vento que balança os lençóis de um varal no deserto (vendo o filme você vai entender essa metáfora).

Talvez Oppenheimer não coubesse na ideia caricata que muitas vezes cientistas (malucos com cabelos em pé, baseados na imagem midiática de Einstein ) são mostrados por Hollywood.


As partes escuras mostram as marcas deixadas pelas roupas que esta vítima usava durante o clarão que causou queimaduras na pele . Fonte: Wikipedia commons


É verdade também que os depoimentos históricos demonstram que o nível de tensão, provocado por um tipo e uma quantidade de trabalho extenuantes, não poderia fazer sempre sujeitos vívidos, nem sujeitos que ignorassem por completo o que estava sendo construído.

Era impossível ignorar o que estava sendo construído. Mas mesmo as justificativas pelo fim da guerra, entoadas de modo vacilante pelo físico, não atingem na narrativa seu propósito de convencimento. E não creio que o filme teve vontade de, em algum momento, abordar essa questão com profundidade.

Edward Teller (no filme, Benny Safdie), o pai da bomba de hidrogênio, que na narrativa implora o apoio de Oppenheimer para continuar as pesquisas com a bomba H , demonstraria sua angústia sobre o projeto.

Max Hastings , em “Inferno: o mundo em guerra 1939-1945” (2011), transcreve um trecho de uma das cartas do pesquisador a um colega: “não tenho a menor esperança de limpar minha consciência. As coisas nas quais estamos trabalhando agora são tão terríveis que nenhuma quantidade de protestos ou de justificativas políticas salvará nossas almas”.

Os efeitos da bomba sobre as cidades japonesas não surgem, em imagens, em nenhum momento do filme. O foco é a expressão de Oppenheimer ao ver um conjunto de slides mostrados por um grupo de ativistas descrevendo a tragédia.

O pai da bomba está desolado. Em um auditório, no qual ele é recebido de modo eufórico com pessoas gritando Oppie! Oppie! Oppie!, ele ensaia um discurso patriótico. É vacilante. Os rostos das pessoas refletem um clarão, um flash nuclear, e começam a se desintegrar.

Como no mito, Prometeu está acorrentado.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Esse texto foi publicado no Diário online

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Postado por Relivaldo Pinho
10/8/2023 às 20h28

 
Geraldo Boi

De vez em quando, me pedia dinheiro. Não o conhecia, rodava o prédio da Fafich inteiro. Usava um paletó de linho com o colarinho da camisa abotoado. Sempre aparecia com um livro debaixo do braço.

Tirei uma nota da carteira e dei pra ele. Não me interessei em comprar o romance que me ofereceu. Quando se afastou, perguntei ao funcionário da secretaria quem era a figura.

– É um pobre coitado que vive andando pra cima e pra baixo, cada um fala uma coisa, ninguém sabe direito quem ele é, de onde veio.

– Vai ver é agente do DOPS – brinquei.

– Que nada, coitado! Eles dizem que foi seminarista, que sabe grego e latim.

– Ele fala bem.

– É verdade.

– Ele vive de quê?

– Não sei, ouvi falar que ficou tantã porque estudou muito – respondeu o funcionário.

– No seminário?

– No seminário e aqui.

– Aqui também?

– Ele cursou todas as matérias de Letras. Quando chegou no fim do curso o professor de psicologia deu bomba nele. Tentou outras vezes, chegava no fim do ano, pau de novo. Mais um ano, pau, até que desistiu.

– Tá parecendo comigo.

– Parecendo com você, por quê?

– Eu tô brincando. É porque eu tomei pau no psicoteste quando entrei na faculdade.

– Ah!, tô lembrado, você é da turma que entrou com mandado de segurança.

– Sacanagem, né?

– Sacanagem, o quê?

– O professor dar bomba no cara todo ano. Vai ver era perseguição.

– Perseguição nada. O professor de psicologia não deixa de ter razão. Já pensou se um cara desses cisma em ser professor?

– Ele podia ser tradutor.

– Mas se ele não fala coisa com coisa em português, imagina duma língua pra outra!

Uma menina de trás do balcão chamou o funcionário da secretaria.

Sílvia, colega da Tânia chegou, mostrei o cara se afastando, contei da conversa.

– Pois eu já ouvi outra história – disse ela. - Na terra dele, uma menina, paixão platônica, se casou com outro, ele nunca mais foi o mesmo.

Geraldo Boi. Geraldo Boi pros alunos da Fafich. Geraldo Viramundo pro Fernando Sabino, anos mais tarde personagem de O Grande Mentecapto.

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Postado por Blog de Anchieta Rocha
27/7/2023 às 19h17

 
Olá, professor Lúcio Flávio Pinto


Lúcio Flávio Pinto. Fonte https://amazoniareal.com.br/



Um dia, quando entrava no ônibus voltando da faculdade para casa, sentou ao meu lado uma das pessoas que me inspiraram a fazer o curso de jornalismo. Era o jornalista Lúcio Flávio Pinto . Caramba! Tudo tremia e a voz embargou. Saiu um: “olá professor”. Sim, ele era professor na faculdade de comunicação naquela época, mas era muito mais do que isso para muitos de nós, era a ideia de que “um dia quero ser como esse cara”.

Para nós, sempre o ano que marca a passagem de um ritual em nossa vida tende a ser um ano revolucionário.

E 1994 foi mesmo. A banda Nirvana estava no auge, foi o ano de filmes como “Pulp ficton” e “O Profissional” e era ano da segunda eleição presidencial da nova república.

Mas, para mim, quando entrei na faculdade, acima de tudo, foi o ano que conheci pessoalmente Lúcio Flávio.

Eu era um garoto esguio, contaminado pelas ideias e pelos novos (nem tão novos, é verdade) conhecimentos com os quais a universidade e seu mundo adentram na cabeça de um jovem vindo, recentemente, do interior.

Naquela viagem de ônibus, depois de meu cumprimento, ele respondeu educadamente. Tímido, eu pensava.

Como usar palavras, se você acha que pode falar uma besteira logo de cara? Mas, apesar de tudo, a conversa fluiu, na medida do possível.


Capa da 1ª edição do JP. Fonte: https://www.icbsena.com.br/


Ao final, antes dele descer do ônibus, ele me deu um exemplar da primeira edição do “Jornal Pessoal”, a famosa edição com a premiada reportagem sobre o assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles. Eu a tenho até hoje, muito bem guardada, entre meus documentos mais importantes.

Você já percebeu, caro leitor, que este é um texto de homenagem quase irrestrita. E é mesmo. Deve ser. Pessoas que são inspiradoras nunca deixam de povoar nossa imaginação e nossos objetivos. Ser grato ainda é uma honra para com o outro.

A leitura do “Jornal Pessoal” já era uma religião, um rito que se tornou cada vez mais importante e, em não poucos momentos, fonte de pesquisa incorporada aos meus trabalhos. Mas voltemos à faculdade, onde Lúcio lecionava a disciplina história da imprensa. Em uma de suas aulas tivemos (Ah! A juventude é naturalmente pretenciosa) um embate a respeito de um livro.

Mais recentemente, ele lembraria desse fato em um pequeno texto muito generoso a respeito da minha carreira e do meu livro, o “Antropologia e Filosofia”.

Mas se enganam aqueles que pensam que isso tenha sido uma constante em seus comentários sobre o que escrevi.

Antes do seu pequeno texto generoso, Lúcio, sem citar meu nome, desceu a lenha sobre um livro que publiquei, porque nele citava uma influência de seu texto e outra da extinta “Agenda Amazônica” (um de seus empreendimentos jornalísticos) colocada no livro como epígrafe de um capítulo, mas não nas referências.

Para ele, um erro imperdoável, para mim, as outras referências no trabalho citadas, poderiam diminuir o erro. Na época fiquei furioso, pensei escrever uma resposta, mas deixei pra lá, poderia ser coisa só da minha imaginação (não era, tenho certeza agora).

Não saberia enumerar e nem lembrar o quanto, nesses anos de leitura do “Jornal Pessoal”, de seus livros e demais textos, aprendi, incorporei e refleti com suas abordagens e com suas ideias, e o quanto discordei muito de vários de seus argumentos e análises.


Foto: reprodução


No periódico, de política nacional, regional e internacional, líamos e comentávamos com colegas, família, amigos e vizinhos.

Minha edição da última quinzena rodava de mão em mão. Os mais próximos tomaram como hábito e perguntavam: “já tem o JP?”. Tenho certeza que muitos que lerão estas linhas tiveram experiência parecida.

Uma feliz coincidência ocorreria nesses anos. Meu irmão trabalharia com um dos irmãos de Lúcio Flávio em uma instituição. Ele, ao saber de quem se tratava, contou sobre minha leitura constante do Jornal Pessoal.

Alguns dias depois, meu irmão chegou com um enorme envelope de edições do Jornal que fora dada a ele por seu colega de trabalho.

Ainda por esses tempos eu entraria para o mestrado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da UFPA, com um projeto de pesquisa sobre o jornalismo nos livros de Lúcio Flávio. Procuraria ali demonstrar como havia uma história do presente sendo feita nessa obra. Mas, depois, por motivos que aqui não cabem, mudei de tema. Havia pouca coisa na academia sobre seu trabalho e isso é, e sempre foi, um dos incentivos para o que faço; trazer algo incomum para um âmbito (a academia) que ainda não lhe dirigiu o devido olhar.

Não há como desconsiderar, nessa trajetória de leitura, a parte cultural, que sempre finalizava as páginas do JP (e ainda presente, seu jornal está online).

Naqueles idos dos anos 90 e 2000 fazia ainda mais sentido porque ainda éramos muito verdes sobre escritores, cientistas, música. Quase tudo era incorporado como novo.

Quando ele publicou a série de livros sobre sua famosa coleção de jornais antigos de Belém, “Memória do cotidiano”, materiais que ele já havia começado a incorporar na “Agenda Amazônica”, aquilo foi um bálsamo sobre o desconhecimento dos textos e das imagens sobre a cidade.


Livro da série editada por Lúcio Flávio. Fonte: Estante virtual


Dizia-se antigamente, (ainda se diz?) e não era pejorativo, pelo menos não como é hoje, que jornalista tem um conhecimento genérico, fala de tudo um pouco. Mas o jornalismo de Lúcio escapava (e escapa) muito dessa generalidade. Na maioria das vezes, a sua generalidade era substanciada com uma profunda erudição sobre vários assuntos.

Seu conhecimento empírico sobre a realidade amazônica, conhecimento que poucos de nós temos, sempre foi profícuo, não pela demonstração de acumulação de informação, mas por aquilo que é próprio àquele que nutre esperanças de uma nova compreensão sobre o lugar, o compartilhamento do saber, a contextualização da região no mundo.

Hoje já poderia dizer que alguns desses assuntos, para mim, são temas de aprofundamento, mas naquele momento, tomávamos quase tudo como “verdade”.

Mais recentemente, soubera que Lúcio estava doente, mas, então, pouco tempo depois, soube que ele estava fazendo uma palestra em uma das faculdades que trabalhei.


Site sobre a Cabanagem , realizado por Lúcio Flávio


Fui direto ao local. Ele em pé falando e a plateia atônita, como sempre. Sem titubear, atravessei todo o corredor central do auditório, interrompi sua fala e lhe dei um abraço caloroso.

Li, há alguns dias, um texto seu dizendo que ele vai se aposentar da atividade “jornalística pública diária”, devido à sua condição de saúde. Diz que vai se dedicar a outros projetos que ainda o permitem produzir.

Desejo-lhe toda saúde e que ele continue escrevendo, produzindo (ele está no instagram, https://www.instagram.com/lucioflaviopintoonline/). Que continuemos aprendendo, nos formando e não concordando (sim, discordar ainda é uma atividade que enobrece o conhecimento) com seus textos e ideias. Seu jornalismo já, há muito, é parte da realidade.

Agora, estou sentado novamente naquele ônibus, em 1994. Mas desta vez, antes de Lúcio Flávio sair, tomo coragem e aperto sua mão, dizendo firmemente: obrigado, mestre!



Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Esse texto foi publicado em relivaldopinho.wordpress.com

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Postado por Relivaldo Pinho
18/7/2023 às 19h01

 
Jazz: 10 músicas para começar II


Billie Holiday cantando no Storyville club, Boston, em Outubro 29, 1955. Foto de Mel Levine. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Billie_Holiday.png



No último domingo, dia 30 de abril, foi celebrado o Dia Internacional do Jazz . Aproveito a ocasião para seguir com uma lista de músicas do gênero musical, iniciada no texto anterior “Dia internacional do Jazz: 10 músicas para sentir”. Quem sabe, caro leitor, essas músicas, entre uma forte balada, ou uma música suave e terna, interrompam um pouco o dia a dia. Justamente porque precisamos seguir em frente, é que devemos sentir a música, o resto “não significa nada” (“It Don’t Mean A Thing”).

“It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing)” é o título de um hino jazzístico composto por Duke Ellington e gravado em 1932. É um dos símbolos do dançante estilo “swing” e representa toda variabilidade do músico norte-americano.



Em uma cena do filme “Cotton Clube” (1984), de Francis Ford Coppola, no backstage do clube os músicos comentam que “The Duke” estará presente. Esse era o apelido de Ellington que se apresentou por vários anos no lendário clube de Nova Iorque.

A excitação com a notícia não era para menos, Ellington já era considerado um dos maiores músicos do deu tempo e tomado como um “nobre”, por sua elegância e genialidade, no mainstream do jazz.

Há muitas versões de “It Don’t Mean A Thing”. Se você quiser pegar o espírito da força do swing dessa música, ouça a gravação ao vivo de Ella Fitzgerald e Ellington no álbum “Ella and Duke at the Cote D'Azur”, de 1967. Há algo parecido na apresentação dos dois, disponível em vídeo, no Ed Sullivan Show em 1965.

Vamos baixar um pouquinho o tom e nos deixarmos levar pela maviosa voz de Dinah Washington na famosíssima “What Difference A day Makes”, de 1959. Lenta, compassada, a letra de Stanley Adams é uma declaração ao ser amado e à beleza da vida que retorna e afasta o que antes parecia lúgubre e que dissipa a chuva, a tristeza e a solidão.



É uma enorme injustiça limitar Dinha Washington a essa canção, suas interpretações são repletas de uma densidade melódica raramente vista em outras cantoras do gênero. Em “What Difference...” isso surge, mas é uma parte do que se pode deleitar com o talento de Washington.

Uma curiosidade (não gosto de curiosidades, mas aqui é uma certa justiça), a música original, quase sempre esquecida quando mencionada a versão em inglês, é “Cuando Vuelva a tu Lado”, de 1934, da compositora espanhola María Grever .

Após ouvir a versão de Dinah espero que você perceba “que diferença um dia faz” (“What Difference A day Makes”), ou como se diz em bom português, “que bom que você voltou”.

Sigamos com a pujança de Lee Morgan e perceba como o trompete é capaz de fazer variar as emoções, enfatizando-as, espaçando-as, condensando-as. É o que “Sidewinder”, de 1964, com sua marcante base de piano, nos dá no álbum de mesmo nome.

Álbum considerado umas das gravações seminais do jazz (veja, por exemplo, a explosão rítmica da faixa “Totem pole”). O disco tem a inigualável companhia de Joe Henderson no Sax e é um dos orgulhos da histórica gravadora Blue Note. O sucesso foi estrondoso à época.



Lee Morgan foi um músico prodígio não só pela idade que começou a gravar com grandes nomes como John Coltrane, mas por demonstrar as suas linhas melódicas tocadas com um perfeccionismo só comparado a outros monstros como Clifford Brown (sua grande influência).

Seguindo a sina do jazz, Morgan após um período de crise pessoal, e depois do sucesso da música de 1964, morreria aos 33 anos, vítima de um tiro disparado por sua mulher no intervalo de um show, em 1972. Mas ele continua no compasso inesquecível dessa música e no panteão do estilo com esse álbum.

Como não seguimos uma sequência de importância neste texto, Charlie Parker chega para “bagunçar” a festa. Isso mesmo, nenhum outro músico foi tão importante na modificação melódica do sax e, também, do jazz do que Parker.



Essa revolução que originou o estilo Bebop se tornará icônica na célebre música “Billie's Bounce”, de 1945. Ela possui o fraseado que ele imprime nas músicas de mesmo estilo como “Koko” (verdadeira expressão, com todas suas modificações harmônicas, da revolução do Bebop).

Quase todos conhecem a história do mitológico Parker, mas se você, sendo amante ou não de jazz, quiser ter uma versão em filme da vida do músico, veja o longa-metragem “Bird” (1988), de Clint Eastwood , uma bela representação da história das quedas e glórias de Bird (como Parker era conhecido).

Naquele momento o Bebop vinha, com um olimpo de músicos como Miles Davis (então com 19 anos), Dizzy Gillespie, Bud Powell, ocupar o lugar do ritmo Swing e das Big bands .

Na verdade, ocupar o lugar é um eufemismo, ele veio mesmo foi mudar a história da música.

E mudou. Um dos símbolos da origem dessa mudança é “Night in Tunisia” (1942), do trompetista Dizzy Gillespie .



Um dos standards mais famosos do jazz já demonstrava como ele se modificaria com a introdução de outros estilos musicais, como novas formas rítmicas, mas sem perder a beleza que marca essa forma musical e, especialmente, a calma e expansiva música de Dizzy.

Veja na versão remasterizada gravada com Charlie Parker. Essa exuberância do trompete de Gillespie, a marcação perfeita do ritmo e, ao mesmo tempo, a sua variação, em possibilidades que parecem intermináveis, são algumas das características dessa canção.

“Nigth in Tunisia” é obrigatória em toda jam session de jazz que se preze. E, se você for a um clube onde estiver ocorrendo uma e eles não a tocarem, educadamente, exija-a.

Já escrevi em outra ocasião sobre a importância de João Gilberto nessa história ( “João Gilberto: o mito”). Aqui estamos diante não apenas dos metais (instrumentos de sopro) que tanto caracterizam o jazz, mas da introdução definitiva para esse mundo de um novo ritmo no violão e na inigualável interpretação do músico brasileiro.



Além do sucesso arrebatador no mundo inteiro de “Garota de Ipanema” (uma das canções mais executadas na época e, até hoje, uma das mais regravadas), a bela “Corcovado” ( “Quiet Nights Of Quiet Stars” ), que por aqui, foi até tema de abertura de novela, traz todo o espírito da Bossa nova e conta com um toque magistral do notável saxofonista Stan Getz.

Repito aqui o que escrevi: “Nesse aspecto, sua glória internacional, está ligada à música norte-americana. O álbum "Getz /Gilberto", de 1969, foi um fenômeno em todos os sentidos.

Ele consolidou e expandiu mundialmente a bossa nova. Presente em especiais de TV, em filmes e séries, a música de espírito carioca, se tornaria uma música-mundo.

O pai da bossa nova estaria inserido em um circuito musical inaudito para qualquer outro músico brasileiro, com exceção, à época, e graças à bossa, de Tom Jobim”.

Agora, o exibido (quase sempre com todos os motivos para isso) Miles Davis chega com os óculos escuros, enfunando o peito e dizendo pra todo mundo como se deve conduzir a harmonia.

Davis gera polêmica até hoje, evidentemente. Uns apontam a performance de “Kind of blue” como o seu melhor, outros não se dobram e bradam o icônico “Round About Midnight”, de 1957.



É nesse que temos a música “Round Midnight”, uma das mais executadas quando o tema é noite chuvosa, ruas esfumaçadas, pessoas solitárias e neon piscando nas faixadas de bares.

A música é do homem de dedos que pareciam baquetas, o aclamado pianista Thelonius Monk . Mas entrou mesmo para a galeria das versões incomparáveis, com Miles.

Nela, uma introdução do trompete dominando o espaço, no estilo de Davis, como um som domado, misterioso, introvertido e solitário. Sim, a alusão é a uma figura que está na solidão da noite, da cidade, de si mesma.

Vejam nessa preciosidade que é a versão ao vivo em vídeo com o Quinteto de Miles, em 1967, em Estocolmo.

Ele já era tão grande que desse grupo faziam parte ninguém menos que Wayne Shorter (sax tenor) Herbie Hancock (piano) Ron Carter (baixo) e Tony Williams (bateria).

Aí estão alguns dos maiores músicos de jazz de todos os tempos, variando o tema, com Miles retomando-o com uma finalização quase abrupta após as experiências harmônicas de seus companheiros.

E já que falamos dele, não há como deixar de lado o homem que, para muitos, virou de cabeça para baixo o piano no jazz, Herbie Hancock , o embaixador do Dia Internacional do Jazz e, certamente, um dos mais prolíficos músicos do estilo.



Para se ter uma ideia, alguns connaisseurs, como Vinicius Mesquita, afirmam que sem ele, talvez, o “Acid jazz” (uma fusão do jazz com estilos como o funk, a soul music e o disco), ou até mesmo o Hip hop não teriam existido.

Quer ter uma noção disso? Escute o V.S.O.P (Very Especial Old Product) que cito aqui como forma de, tanto homenagear os membros desse grupo, os mesmos do Quinteto de Miles, com exceção de Freddie Hubbard (trompete), como para percebermos como o estilo mudou no decorrer do tempo e, com ele, os estilos dos músicos.

Essas mudanças de época, de tom, de sentido do jazz estão plasmadas, por exemplo, em “Para Oriente” (1979) do álbum “Live Under the Sky”.

Aí estão os resultados das várias experiências do jazz com outras possibilidades estilísticas, mas notem como o piano pulsante de Hancock salta para fora para acentuar sua dominância da cadência na música. É o embaixador do jazz em seu estado puro.

Pureza é tudo que não mais existe na versão de “Take ‘a’ train” do elogiadíssimo álbum “Study in Brown” (1955) do já mencionado trompetista Clifford Brown e do baterista Max Roach .

Não existe pureza porque a música é de Duke Ellington e, originalmente, é um swing que imita a partida de um trem. Há um vídeo de Ellington do filme “Reveille with Beverly” (1943) no qual sua banda surge dentro de um vagão representando a ideia da música.



Mas na versão de Brown e Roach o trem (a música) não só parece ir mais rápido, mas, principalmente, sua velocidade já não é para dançar, e sim para escutar as possibilidades que o Hard bop trouxe com a maior aceleração dos andamentos que o bebop, proporcionando uma intensidade que terá na assinatura dessa música e desse álbum uma das melhores expressões.

O trem está no começo e no final da canção, mas ele não embala mais as pessoas como em Duke, ele as desperta, sacudindo-as.

Digamos que seja final do dia e você agora pretende estar contemplativo. E, se for para ouvir a canção seguinte, deve. Exatamente porque trata-se, agora, da representação de um sublime, mas de um sublime diferente.

No texto anterior, mencionei Billie Holiday , nesse, a deixarei com vocês na interpretação de uma canção que, não por acaso, é, e deve, ser muito mais do que isso. Sim, senhoras e senhores, trata-se de “Strange Fruit”.



Como mencionei anteriormente ( “Billie Holiday, Strange Fruit e 100 anos do Jazz”), “a música surgiu de um poema de Abel Meeropol sobre os linchamentos de negros que ocorriam nos Estados Unidos após a Guerra Civil. A inspiração teria vindo de uma fotografia de uma dessas atrocidades ocorrida em 1930, em Marion, Indiana. Esse é o tema de Strange Fruit.

Nenhuma versão se aproxima do que Billie fez. Há um vídeo de Holiday, de 1959, em Londres. Vejam. Ali, Billie, em seu derradeiro momento, encarna a música e a música a define.

Ali está, não importa se em sua fase de decadência ou não, diz David Margolick em seu fabuloso livro ‘Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção’, ‘a experiência de ouvir e ver Billie Holiday cantando Strange Fruit: os olhos fechados, a cabeça jogada para trás, a gardênia de sempre atrás da orelha, o batom rubi realçando a pele escura, os dedos estalando de leve, as mãos segurando o microfone como se fosse uma xícara de chá’”.

Como se sabe, o jazz está profundamente ligado a vários contextos históricos decisivos. Espero que quando leia este texto possa aproveitar o máximo possível o que o estilo e as músicas podem proporcionar, e possa fruir, verdadeiramente, os sentidos das canções. Se isto for atingido, o resto “não significa nada” (“It Don’t Mean A Thing”).


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Esse texto foi publicado no Diário online

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Postado por Relivaldo Pinho
22/6/2023 à 00h57

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