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Quarta-feira, 28/8/2024
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O jardim da maldade

Tudo começou com um convite.

“Quer ir à exposição comigo? Todo mundo está comentando, passou na televisão várias vezes. Seria ótimo ir com você. Pode me ajudar a entender um pouco!”

Gabriela, há muitos anos secretária na firma onde eu trabalhava como advogada, sabia que eu fizera uns cursos de história da arte, moderna e contemporânea. Tinha interesse e curiosidade por essas formas de arte, mas a falta de conhecimento deixava-a meio perdida. Aceitei o convite e fomos, sábado pela tarde.

A exposição, organizada em ordem cronológica, começava com modernos. Matisse, Picasso, alguns Cézanne. Nada muito chocante, as pessoas no século XXI já se acostumaram com coisas como o nariz verde da senhora Matisse, o olho torto da modelo de Picasso. Tentei transmitir meu pouco conhecimento, discursando sobre como Cézanne havia reinventado o espaço. Gabriela me olhava com desconfiança.

Continuamos a andar e chegamos à arte contemporânea. Objetos substituíam telas, outras formas de expressão tomavam lugar da pintura. Gabriela entusiasmou-se. Como um urinol poderia estar num museu?

O salão era enorme, ao terminar de percorrê-lo aleguei cansaço. Fomos para a lanchonete tomar café com pão de queijo e trocar impressões. Um rapaz alto e bonito, vestido simplesmente com camiseta de algodão e calças largas, aproximou-se de nossa mesa. Cabelos mais compridos que o usual, penugem de barba cobrindo-lhe o rosto, enfeitado por único brinco de prata na orelha direita. Pediu para sentar-se conosco (não havia mesas disponíveis) e logo entrou na conversa, apresentando-se como Felipe. Ficou claro desde o início que seu nível de conhecimento artístico era muito superior ao meu, o que indicava um profissional. Discorreu com grande erudição sobre as obras que tínhamos visto. Gabriela fitava-o com brilho nos olhos.

“Você é artista ou professor?” perguntou.

“Nem um nem outro. Ou quem sabe as duas coisas?” desconversou com uma risada.

Logo em seguida, porém, sua expressão ficou séria e desanimada.

“Trabalho há muito tempo numa obra. Mas não consigo terminar, falta alguma coisa, uma parte importante, nem eu mesmo sei o que é.”

A conversa continuou entre os dois, que pareciam ignorar minha presença. Finalmente, levantei-me.

“Gente, vamos ver o resto. O museu não demora a fechar.”

Felipe nos acompanhou. Esculturas de luz, móbiles enormes, arte povera, vídeos, fotografia, arte kitsch, ele tinha muito a dizer sobre tudo que víamos. Gabriela olhava-o em êxtase. Minha pessoa esquecida, enquanto os dois caminhavam e conversavam animados em voz baixa, fui ficando para trás.

O museu fechou. Na porta, despedimo-nos os três. Peguei um táxi sozinha, Gabriela e Felipe andaram juntos na calçada. Uma sensação desagradável incomodava-me. O que teria visto em Gabriela um homem culto e bonito como Felipe? Singela e sem requinte, pouco conhecimento das artes plásticas, era estranho que ficasse tão atraído. Logo me censurei por estes pensamentos. Seria inveja, ciúme, preconceito? Bem mais velha que minha amiga, talvez não quisesse enxergar o encanto da juventude.

Passaram-se algumas semanas. Encontrava Gabriela no trabalho, que parecia sempre muito feliz, risonha e cheia de energia. Tinha vontade de perguntar-lhe sobre Felipe, se o tinha visto depois do dia no museu, mas a discrição impedia-me de fazê-lo. Afinal, não éramos tão íntimas.

Um dia, Gabriela não veio trabalhar. Mais outro, e outro ainda. Do escritório, telefonamos para a família, com quem ela morava. Preocupados, haviam procurado em toda parte, notificado a polícia. Nada da moça aparecer.

Passadas duas semanas, resolvi visitar a família. O pai, tenso e a mãe chorosa não tinham ainda nenhuma pista. Conversei demoradamente; perguntei sobre amigos, parentes, nenhum sabia de Gabriela. Estava me despedindo, quando notei sobre o aparador na entrada um cartão com o nome Felipe, seguido de endereço no Horto Florestal.

Dia seguinte, faltei ao trabalho e fui procurar o local anotado. Segui a rua, que se embrenhava na floresta e subia o morro. Finalmente, cheguei ao número do endereço. Atrás do portão e muro, árvores altas e mato espesso impediam a visão do interior. Toquei o botão do interfone. O portão abriu-se e ingressei, deixando o carro estacionado fora.

Ao entrar, assombrei-me com o tamanho do lugar. Jardim enorme, verdadeiro parque, não se podia ver o final. Um caminho de saibro levava para o interior. Em volta, grandes árvores e arbustos cerrados tornavam o ambiente sombrio.

Ao percorrer a estrada, logo percebi tratar-se de local fora do comum. Ao longo do trajeto, no meio a plantas exuberantes, viam-se nichos contendo estranhas intervenções humanas, que se misturavam com a natureza. Esculturas enormes penduradas das árvores, teias de aranha feitas de cordas que se ligavam aos galhos, grandes placas de plástico com múltiplas cores balançando suavemente com a brisa, flores imensas de vidro colorido que formavam canteiros, ossos humanos empilhados. Continuei a andar até avistar casa antiga, um tanto decadente. A porta abriu-se de repente e Felipe apareceu.

“Doutora! Que prazer em vê-la aqui. Veio visitar meu ateliê?”

“Não propriamente”, ia respondendo, interrompida pela fala entusiasmada de meu anfitrião, que me tomou pelo braço e iniciou caminhada por trilhas na mata. A cada obra de arte avistada, parava para dar longas explicações sobre técnicas empregadas e significado do trabalho. Algumas vezes tentei esclarecer o motivo de minha visita, mas Felipe não cessava de falar. Até que bruscamente, ao consultar o relógio, parou e interrompeu o discurso.

“Desculpe, preciso continuar ...”

Olhou-me fixamente:

“Sabe aquela obra que não conseguia acabar? Sua amiga Gabriela me ajudou. Está pronta”.

Correu em direção à casa. Tentei segui-lo, mas quando cheguei já havia entrado e fechado a porta. Bati com força várias vezes, sem resposta. Iniciei o caminho de volta. Desorientada, no entanto, perdi o rumo e embrenhei-me cada vez mais pelas trilhas do bosque. A estranheza das intervenções artísticas aumentava meu desconforto. Uma imensa mão humana com três dedos cortados, de grande realismo, causou-me arrepios. Na mata, cada vez mais espessa, intestinos pendiam das árvores e confundiam-se com cipós. A certa altura, deparei-me com monstro que misturava características de animal quadrúpede com grande bico de pássaro e cabelos humanos. A perfeição técnica desta concepção dava a impressão de um ser vivo. Ao fitá-lo intensamente, pareceu-me que o monstro se movia.

Tomada pelo medo, continuei a andar, à procura da saída. De repente, atrás de um arbusto com folhagem espessa, pareceu-me avistar o rosto de Gabriela. Gritei de surpresa e entusiasmo, mas a imagem desvaneceu-se. Rodei nos calcanhares e percorri o caminho inverso nas trilhas, mas nada vi. Desanimada e exausta, sentei-me sobre um tronco caído e abaixei a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos.

Quando olhei novamente em volta, Gabriela estava sentada a meu lado. Parecia satisfeita e fitava-me rindo.

“Gabriela! O que você está fazendo aqui? Venha pra casa, estão todos preocupados.”

Tentei segurar-lhe o braço, mas ela já desaparecera. Continuei a andar, cada vez mais confusa. Entrava por trilha que não dava em lugar nenhum, tentava penetrar no mato, tropeçava. De repente, pareceu-me ver Gabriela no alto de uma colina, coberta por uma túnica verde que brilhava fosforescente. Acenou-me e logo em seguida se dissipou.

Resolvi esquecer minha amiga e concentrar-me em sair daquele lugar. Ao deparar com uma mangueira enorme, avistei Gabriela de novo, sentada num dos galhos baixos. Desta vez, chamou-me pelo nome. Não dei atenção e continuei a andar, até que uma voz atrás de mim assustou-me. Era Felipe.

“Não é admirável, Doutora? Transformei Gabriela na obra de arte completa. Está em toda parte. Em qualquer tempo. É impossível deixar de vê-la, ou fugir dela. Também é eterna, nada a destrói. Atingi a perfeição artística, ninguém vai poder me superar.”

Olhei-o com espanto e horror.

“Quero ir embora, onde fica o portão de saída?”

Felipe pareceu não me ouvir.

Tentei me afastar, segurou-me pelo braço. Procurei desvencilhar-me, ao mesmo tempo não pude deixar de sentir seu cheiro de homem, misturado com suave e atraente perfume masculino. Aproximou-me dele e roçou meu braço levemente. Um arrepio de prazer percorreu-me o corpo. Apertou meus seios contra seu peito e deslizou a mão pelas minhas costas. Enfraquecida, suspirei, derrotada.

“Tenho um projeto pra você também,” murmurou ao meu ouvido. “Outra obra de arte. Vamos começar?”

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Postado por Blog de Diana Guenzburger
28/8/2024 às 19h41

 
Cortando despesas

Quando o orçamento individual ou familiar, de alguém que tenha mínimo juízo, sinaliza o limite para as despesas, o cartão fica guardado, o "rotativo" nunca é acionado, o "limite especial" nem é considerado. As vontades, desejos, sonhos, consumos de impulso e outros demônios, permanecem imobilizados pelo bom senso.
-Se não tenho ou, não terei em breve (dinheiro, recursos financeiros, renda garantida) não gasto, não compro, não me encalacro! Espero a hora.
Se algum acontecimento ou motivo indiscutível, surge fora do orçamento ( uma doença, um acidente, evento casual) e força as linhas, a primeira medida é CORTAR AS DESPESAS menos importantes: os chocolates, as boas garrafas, a roupa nova ou de moda, os passeios, shows, concertos, viagens, enfim, absolutamente tudo que seja possível cortar.
Os cuidados com despesas do governo, poderiam seguir o mesmo critério. Gastar sem a prodigalidade endêmica e secular que o noticiário registra e mostra em fotos e na tv.
As viagens , as "comitivas" , a turma do abre-portas, carrega- maletas, segura guarda-chuvas, dá noticias favoráveis, tira boas fotos, os áulicos, baba ovos, bajuladores antigos, até alguns "Iscariotes," engordam as contas de gastos inúteis sem qualquer pudor.
Uma importante figura carregou seu guarda costas em viagem internacional, o qual, recebeu pródigas diárias.
A quantidade de viagens internacionais que as inclitas figuras do Areópago caboclo, realizam mensal e anualmente, sob as mais "importantes" justificativas, é espantosa. Acrescente se aí a horda de parlapatões que vão para lá e para cá , representando isso e aquilo, recebendo comendas e badulaques que tais, etc. etc. Bem, aqui estão de fora os penduricalhos espantosos sobre os proventos. É ajuda pra morar, comprar combustível, vestir se , e tome polca...
Um ano sem gastar com a "perfumaria" , ou mesmo com a suspensão das folhas de pagamento, de quem não depende de salário para viver, já seria suficiente pra lembrar que não se deve gastar mais do que se arrecada, se ganha... Aquelas coisas.Sonhar, não custa nada.
Economizar, usar a bolsa da Viúva com respeito e consciência de que o que é do Povo, da Pátria, da nação, tem dono: O País!
Chega de conversa fiada! Corta a despesa com os Cortesões. Em pouco tempo vai sobrar para os projetos . Um milhão aqui, dez ali, 50 acolá, todo mês e no fim do ano tem churrasco na laje dos palácios.

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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
24/6/2024 às 14h13

 
O mais longo dos dias, 80 anos do Dia D




“Na madrugada de 6 de junho, dezoito mil paraquedistas britânicos e americanos saltavam sobre a Normandia, ocupando pontes importantes e destruindo linhas de comunicação alemãs. Às 6h30, desembarcaram as primeiras tropas – forças americanas, que desceram na praia de Utah com seus tanques anfíbios. Menos de uma hora depois, às 7h25, os primeiros soldados britânicos chegavam às praias Gold e Sword, seguidos, na praia Juno, por 2.400 canadenses apoiados por 76 tanques anfíbios. Às 10h15, a notícia desses desembarques era levada a Rommel, que se encontrava na Alemanha. Rommel voou imediatamente para a França, recebendo instruções de Hitler para, até a meia-noite, ‘devolver ao mar’ os invasores” (Martin Gilbert. “A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo”).

Winston Churchill não estava convencido do ataque à Normandia. Ele não queria que as perdas sofridas na Primeira Guerra se repetissem diante das casamatas e fortificações alemães nas praias francesas.

A cautela era justificada, mas a operação Overlord, nome da operação do Dia D , se tornaria um dos momentos mais importantes da grande virada durante a Segunda Guerra Mundial .

Mas esse dia não começou na madrugada de 6 de junho, ele foi meticulosamente preparado e detalhado dentro do teatro de operações da Guerra.


Navios que desembarcaram na praia de Omaha na maré baixa durante os primeiros dias da invasão aliada, em meados de junho de 1944. Fonte: https://pt.wikipedia.org/


Os aliados treinaram as estratégias e possíveis adversidades, empregaram técnicas de despistamento para enganar os alemães sobre a data e o local de desembarque e avaliaram as condições climáticas e das marés periodicamente.

Tudo isso nos é contato pelo próprio Churchill (“Memórias da Segunda Guerra Mundial”), por historiadores, pela literatura e pelo cinema.

O Dia D é objeto não apenas de um decisivo momento da história, mas se tornou uma das representações mais presentes nas imagens do Século XX, e continuará sendo.

O grande monumento cinematográfico desse tema ainda é o filme “O mais longo dos dias”, de 1962 (Dir. Andrew Marton, Bernhard Wicki, Ken Annakin). Uma das produções que mais bem representam os acontecimentos históricos daqueles dias.

Vemos desde o começo da película a preocupação de generais, comandantes e soldados com a data para a invasão e a angústia diante dos adiamentos.


Cena do filme. Fonte: https://www.jestersreviews.com/reviews/3960


É preciso lembrar que naquele período, nos conta o relato histórico, já há muito se falava sobre a necessidade de abrir uma frente de ataque na Europa pelos aliados . Stalin havia insistido nessa possibilidade e o tema se tornaria parte do acordo da Conferência de Teerã , em 1943, com o governante soviético.

O próprio Stalin enviaria um telegrama, em resposta a uma mensagem de Churchill que dizia que a operação começara bem, elogiando a iniciativa aliada e prometendo lançar as forças russas na parte Oriental da Europa.

Essas correspondências entre os dois líderes revelam um pouco do que representou a operação.

Mas nem Stalin, nem Churchill (a ausência do primeiro primeiro-ministro inglês, que vivia rezando pela entrada dos EUA na Guerra, é incompreensível), surgem no filme.

Na produção norte-americana o foco é muito maior na participação estadunidense, do que nos desdobramentos das negociações políticas dos aliados.


Os soberbos e descrentes oficiais alemães. Fonte: https://www.wearemoviegeeks.com/


Mas o generalato alemão surge. E surge espelhando a história de que no dia da invasão Hitler estava empanturrado de remédios para dormir e de que ninguém deveria incomodá-lo.

Mas também surge na arrogância dos generais que acreditavam, em parte pelo despistamento aliado, que a invasão aconteceria em outro momento e outro lugar.

Para eles, entrar pela Normandia seria não apenas uma insensatez estratégica, mas um risco diante da instabilidade do tempo, com muitas nuvens, chuva e marés variando, naqueles dias.

Mas Eisenhower, o comandante das forças aliadas, bateria o martelo e definia o Dia D e a Hora H.


Um LCVP (Landing Craft, Vehicle, Personnel) do USS Samuel Chase , tripulado pela Guarda Costeira dos EUA , desembarca tropas da Companhia A, 16ª Infantaria , 1ª Divisão de Infantaria (a Big Red One) caminhando para a seção Fox Green da Praia de Omaha. Fonte: https://pt.wikipedia.org/


No filme, os alemães não apenas parecem descrentes com as informações que chegam em mensagens em códigos sobre a invasão, mas fazem troça delas, jogando cartas, bebendo, e, mesmo diante da visão dos navios às portas da Normandia, não parecem dar crédito ao que iria acontecer.

Já durante algum tempo os aliados dispunham da decifração da máquina Enigma alemã (parte de um sistema de deciframento que se chamou Ultra), o que facilitaria muito suas estratégias.

Eles sabiam dos movimentos dos nazistas e sabiam do seu erro tático, erro do próprio Hitler, em acreditar em uma outra invasão.

A esses erros táticos se somam, como o filme rapidamente demonstra, a insistência de Hitler em manter dispersas suas forças e a exigência da permanência do exército até o último homem – decisões com as quais parte de seus generais, incluindo Rommel, não concordava -, posições que aumentaram as desvantagens do Reich.

O historiador Martin Gilbert narra que os alemães, ainda no dia nove de junho, acreditavam que a invasão se daria em Pas de Calais e de que isso seria confirmado pela lenta progressão das tropas aliadas.

“Essa mensagem foi decifrada na Grã-Bretanha em 10 de junho. As falsas operações não apenas forneciam um escudo protetor aos exércitos aliados como seus responsáveis sabiam que as farsas tinham bons resultados”. Diz ele.

O jogo de táticas de decifração, escutas e espiões, tão importante para as estratégias de ambos os lados, surge mais do lado nazista que tateia no filme em busca da decodificação das mensagens do ataque.

Mas, do lado francês, em determinado momento, um modesto senhor se prepara para tomar sua sopa trazida por sua esposa e ouve em um rádio uma mensagem codificada, ele larga a colher e pula de alegria.


Francês celebra ao ouvir a mensagem codificada sobre a invasão aliada. Fonte: youtube.com

Em outro lugar, a resistência francesa reconhece seu código e sai para realizar o descarrilamento de um trem alemão, em uma tática de guerrilha.

Essa caracterização dos franceses não se repete com os protagonistas, o que alguns criticam como uma falha do filme. Teria faltado uma representação mais profunda dos personagens interpretados por ícones, como John Wayne , Robert Mitchum , Henry Fonda e Richard Burton .

Talvez não fosse esse o objetivo, como o é de alguns filmes mais contemporâneos sobre guerra.

Mas a progressão das ações da guerra, a representação das batalhas são seu grande objetivo e seu ponto forte.

Talvez os diretores acreditassem que não coubesse, para um momento tão importante e para um esforço coletivo inédito de nações, primar pelas histórias de cada um dos protagonistas.

A sequência fílmica feita da batalha no vilarejo de Ouistreham, sem dúvida, está na história da filmografia de guerra.



Ela é realizada do alto (parece ser de um balão), mas é lenta e acompanha o movimento de ataque e contra-ataque dos soldados correndo pelas ruas, atirando e buscando proteção, e dá ao espectador uma visão subjetiva inesquecível dos acontecimentos.

Não há como não lembrar, pelo caos ali instalado, da famosa sequência de “Nascido para matar”, de Stanley Kubrick (1987), na qual os soldados tentam avançar em um pequeno espaço de uma cidade, mas são continuamente alvejados por um único atirador que derruba, em câmera lenta, cada um dos que tentam atravessar aquelas ruínas.



Temos também as sequências da praia de Omaha, onde a batalha foi mais dura, na qual a câmera faz um traveling lateral do alto durante o movimento do desembarque e avanço dos soldados e, depois, dois aviões alemães são mostrados, em tomadas aéreas de dentro das aeronaves, atingindo as linhas militares que tentavam correr pela areia.

Essas técnicas que se tornariam comuns em filmes mais recentes, não eram tão comuns ainda naquela época, especialmente porque não se tratam apenas de trucagens com cromaqui, ou, como depois se convencionou fazer, por trucagens do computador.


The Longest Day, 1962. (Photo Credit: yodasimpson / MovieStillsDB). Fonte: https://www.warhistoryonline.com/world-war-ii/the-longest-day-facts.html


A excelência dessas imagens está em mostrar esse realismo que não quer ser apenas sentimental, às vezes piegas em filmes de guerra, mas um realismo que busca até mesmo uma certa reconstituição dos fatos em sua representação.

Nesse comparação sempre insuficiente entre história e cinema, porque tratam-se de duas realidades diferentes, de formas de contar a história diferente, a não referência da importante batalha da cidade de Caen também é um “esquecimento” do filme.

Caen era estratégica para o avanço da infraestrutura dos aliados e para pôr fim às conexões de transporte dos alemães.

Não dá para mostrar tudo, e nem se pode. O cinema tem seu papel no imaginário, mas ele não é a história tal como de fato ocorreu. Nem a histografia é.

Para alguns, o filme pode parecer ufanista demais, mas o que ele e a história demonstraram é que o terror nazista não podia se enfrentado nem pelo exército de um homem só, nem pela figura de um tolo herói que por acaso estava ali.


Sgt./Lt. John H. Fuller (Jeffrey Hunter) tenta ajudar um amigo desfalecido. Fonte: https://wp.jeffreyhunter.net/films/the-longest-day/


Não havia espaços para tergiversar.

Em outro contexto de suas “Memórias”, Churchill, na Normandia, após o Dia D, escreve para o presidente Roosevelt elogiando o poderio das forças aliadas.

Diz ele: “O senhor usou a palavra ‘estupendo’ num dos primeiros telegramas que me enviou. Devo admitir que o que vi só pode ser descrito por essa palavra, e penso que seus oficiais também concordariam ”.

É evidente que Churchill queria dar alguma boa-nova para seu aliado, mas ele sabia, como cunhou em uma de suas famosas frases, que “os problemas da vitória são mais agradáveis que os problemas da derrota, mas não menos difíceis”.


David Campbell (Richard Burton). Fonte: https://www.warhistoryonline.com/featured/56-movie-mistakes-the-longest-day.html


Na penúltima sequência de “O mais longo dos dias”, o aviador David Campbell (Richard Burton) está gravemente ferido encostado em uma casa, depois de um matar um combatente alemão, cujo corpo está à sua frente.

Um soldado norte-americano o encontra, lhe dá um cigarro e senta ao seu lado. Campbell diz a ele, “engraçado, não? Ele está morto; eu, aleijado; você, perdido. É sempre assim. Digo, a guerra”.



Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

[email protected]

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Esse texto foi publicado em Relivaldo Pinho

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Postado por Relivaldo Pinho
12/6/2024 à 01h58

 
Paes Loureiro, poesia é quando a linguagem sonha


Paes Loureiro. Divulgação.



Nas “Obras Reunidas” (2000), de João de Jesus Paes Loureiro , o livro “O ser aberto” (1990) abre com uma citação de John Keats. “Foi só uma visão ou um sonho acordado?”, é a frase retirada de “Ode a um rouxinol”, poema de 1819, dois anos antes do romântico e lendário poeta inglês morrer, aos 25 anos.

Paes Loureiro sabe o valor de uma epígrafe. Seus trabalhos são repletos delas. Ele sabe seu papel de chave de leitura e compreensão de um texto, sua função de abertura e, ao mesmo tempo, de síntese.

Pode não parecer (nada é o que parece nessa poesia, mas tudo se revela exatamente com as aparências) mas os versos que compõem o “Ser aberto” e que são reapresentados agora em “Barcarolas: uma arte poética” estão muito próximos dessa faceta da epígrafe.

Não porque são poemas curtos ou poucos (10 poemas com 16 versos cada), mas porque são densos, guardam enigmas e, ao mesmo tempo, revelam um mundo.

O mundo nesse “Barcarolas” é da criação. Da criação do mundo pelo ser amazônico e da criação da poesia pelo artista.

O mundo é da canoa que dá significação ao homem e do homem, quem sem ele, ela, a barcarola, não existira.


”Barcarolas”, de Paes Loureiro e Nina Matos. Imagem: Ed. Paka-Tatu


O mundo do caboclo que se limita em sua barca, mas que é com ela que o horizonte se infinita.

O mundo do leme que conjuga com a mão e da mão que guia a escrita.

O mundo das águas sobre as quais a canoa se deita e do poeta que nela se estira.

É esse um dos mundos que há décadas o poeta dedica sua obra literária e teórica. Realidade aparente que guarda o mergulho infindável da fantasia.

Aqui, os objetos sempre, como em grande parte da poesia do autor, são mais do que eles mesmos, a canoa é templo e expiação , é caminho e destino, é lida e libido.

Esse é o elemento que atravessa o modo pelo qual o poeta vê a realidade, ele a vê sempre como uma dimensão de um mundo a ser exibido no que ele tem de mais perceptível e mais oculto. O fundamento per si do poético.


Divulgação


Na barcarola simples, repousa uma ode e uma elegia do ser e da escrita. Na navegação do poeta, nenhum verso é suficientemente grandiloquente que possa sintetizar tamanha poesia.

A poesia de um mundo que Paes Loureiro ainda vê com os olhos esperançosos de um romântico insuficiente, como sempre insuficiente é a palavra que o poeta esgrima.

Quando, em 2003, pude publicar o primeiro livro sobre sua obra, esse mundo já há muito estava instaurado em sua arte poética.


Livro sobre a poesia de Paes Loureiro. Foto: Relivaldo Pinho

Depois, no decorrer de outros trabalhos em que sua poesia ou seu trabalho ensaístico me acompanhavam, pude perceber o quanto a percepção desse mundo para Loureiro não era apenas uma escrita.

Mas era, em grande parte, uma forma de olhar e tentar domar a transitoriedade de um mundo que parece não ter um tempo, um lugar, em uma “terra sem males”.

Pode-se pensar muita coisa sobre essa poesia, menos que ela não esteja atrelada a essa visão do Ser que está aí, mas que não vemos.

Quando uma canoa que passa em frente à Estação das Docas e achamos bonito, “compondo a paisagem” dizemos, fotografamos.

A imagem da poesia é de outra percepção e significação. É a busca pelo ethos (sentido) de um mundo naquele objeto movediço e da constatação da poesia como sublime e agônica “Tarefa” (1964).

Diz-se que John Keats, citado por Loureiro, escreveu “Ode a um rouxinol” quando ele absorto se separou de um grupo de pessoas ao contemplar o pássaro cantando.

Mas o texto de Keats não é apenas um elogio ao canto da ave, ele possui uma dimensão forte sobre a fragilidade da existência, sobre a impossibilidade de um paraíso permanente.

Vejamos esses versos de Loureiro em “Barcarola V”:

“A minha canoa vive
além de mim e da morte.
A forma é sua eternidade.
Língua e linguagem. A sorte.

Eu sou, enquanto navego,
de seu ego nave, templo.
A sua razão de ser.
Metáfora do momento.

Oh! Geometria com alma!
Assim é minha canoa...
Boiúna boiando. Vago
lume vago que flutua.

O que ficará de nós,
além do nada que é nosso:
madeira, quilhas e ossos
cabelo, poeira e verso?”

Como se vê, esses versos estão longe de uma visão inocente sobre a existência. Não estou comparando literaturas e motivos diferentes, estou exibindo o que é próprio da poesia, estou, para lembrar Mário Faustino , exibindo “madeira, quilhas e ossos”.


Divulgação

Essa revisitação à sua obra nesse “Barcarolas” tem uma contribuição que em nada é um complemento, mas se transforma em sua verdadeira substância, são os trabalhos da artista visual Nina Matos.

Se você, caro leitor, tiver a oportunidade de ler esse livro, tenha a oportunidade de vê-lo. É esse seu sentido.

Os trabalhos de Nina Matos atravessam esses poemas, condensam horizontes, expandem a poesia, fazem uma bricolagem da percepção.

São cartografias da percepção, cartografias para se perder.

São também epígrafes, como essa poesia de Loureiro, na qual o mundo está sintetizado na imagem e aberto para sua compreensão.

Ao ler esses poemas, como Keats, talvez você possa se perguntar “foi só uma visão ou um sonho acordado?”

Não é esse um dos sentidos da poesia? Para trazer um dos versos desse livro, poesia é quando a linguagem sonha.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Esse texto foi publicado no Diário online e em Relivaldo Pinho

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Postado por Relivaldo Pinho
4/6/2024 às 17h59

 
O Cachorro e a maleta

À primeira vista, parecia tratar-se de um abandono ou, na melhor versão, um esquecimento. Hipótese improvável, pois quem iria esquecer-se de um cachorro e uma pequena mala, lado a lado, em absoluta harmonia, calma e resignação.
Eles continuaram do mesmo jeito, sem serem notados ou provocados por nenhuma criança ou adulto transitando pela plataforma ferroviária onde, sabe-se lá como, foram parar. Um velhote meio encurvado, ajudado por uma bengala desgastada,caminhando entre as pessoas que chegavam e partiam, passou pela dupla, virou-se e por um instante pareceu lembrar-se de algo. Mas foi muito rápido, sequer parou.
O animal grandalhão, também mostrava sua velhice e a maleta, apesar de bem conservada, não escondia uns arranhões e desgaste nas cantoneiras pelo constante apoio, em vários tipos de piso. O velho, uma figura de semblante um tanto amargo, olhar distante, roupas limpas, usadas, e os calçados denunciados pelo desgaste dos saltos, não escondia o seu relacionamento com os dois outros seres, um cachorro e a sua companheira, a maleta. Mais uma vez, voltou-se e olhou sem demonstrar nenhum sentimento.
A estação funcionava normalmente, com os comboios chegando e partindo no horário, passageiros descendo e seguindo, outros embarcando, os funcionários em suas lidas e ninguém parecendo notar nada de estranho ou incomum por ali.
O velhote encarquilhado embarcou no vagão estacionado bem ao lado dos dois. Antes de colocar o pé no primeiro degrau, olhou fixamente, nos olhos do cachorrão, depois para a maleta e, tropeçando levemente, entrou no trem. Parou um instante na porta e voltou a olhar para aquelas duas marcas de sua própria vida. Alcançou o lugar para sentar junto a janela, do lado da plataforma, sentou-se sem tirar o sobretudo surrado, gasto e cerzido nos cotovelos, manteve o chapéu igualmente desgastado, arrumou a bengala entre as pernas e olhou pela janela, novamente buscando as duas bagagens abandonadas: O cachorro e a maleta. Em instantes que pareceram uma eternidade, o trem apitou, voltou a apitar e o movimento lento das imagens do lado de fora, indicaram a partida.
O cachorro levantou-se sem se sacudir, cheirou a mala em toda a volta enquanto caminhava em direção oposta a entrada e foi desaparecendo lentamente, dissimuladamente, tão sutil que nem os empregados da Estrada de Ferro notaram. A maleta,igualmente, desintegrou, transformando-se num pequeno monte de pó, logo espalhado pelo vento suave e constante, provocado pelo ir e vir das pessoas, dos carrinhos, enfim do dia .
O velho ainda sentado, entregou o bilhete para o chefe do vagão, ajeitou-se para apreciar a paisagem e lembrar as histórias, alegrias, tristezas, festas e tudo o mais que havia colecionado durante a vida, personificada no cachorro. Tempos de mordidas, brincadeiras, travessuras, e pauladas, coleira, corrente. A caderneta, guardada no bolso interno do casaco com os apontamentos mais severos, os remorsos e as culpas, retirada da maleta algum tempo atrás, desmanchou-se. Nenhum registro poderia ser lido ou aproveitado numa inquisição ou julgamento. Os cadernos com anotação de faltas e patifarias menos relevantes, pequenos deslizes, amores fortuitos, ficaram dentro da maleta.
Percebendo a realidade do momento pelo qual estava passando, o velho enfiou a mão no bolso esquerdo do casaco, aquele sobre o coração e buscou uma anotação feita,num pedaço de papel amassado, onde estava escrito: Todos Serão perdoados - Marcos 3-28.

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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
3/6/2024 às 10h31

 
A ESTAGIÁRIA

Alberto olhou para a nova estagiária por cima dos óculos. Novinha. Cabelo comprido, como era moda, castanho com listas louras. Pele bem clara e luminosa, via-se que não era muito de praia. Calça comprida clássica e camiseta simples.

Bonitinha, pensou o executivo. Tomara que ajude em alguma coisa. Abaixou a vista e continuou seu caminho em direção à sala de reuniões. No percurso, parou um instante na mesa do café e serviu-se de mais um copo, o terceiro do dia. Combustível para afastar o cansaço. Quando ia entrar na sala, foi interrompido pela voz irritada do chefe, o diretor de operações, que abrira a porta de seu escritório de repente.

“Alberto! Dá um pulo aqui. Temos um problema.”

Entrou, alarmado. O diretor de operações era conhecido por ser um grosso e não ter muita paciência com os subalternos. Problemas com ele, ninguém queria.

“Sente-se, sente-se, Alberto. Temos um cliente insatisfeito, e um dos nossos maiores. Lembra-se daquela carga que precisava chegar com urgência? Foi você quem ficou encarregado disso. Acontece que não deu certo, ocorreu um imprevisto....”

O diretor continuou a repassar, cada vez com voz mais alta, a série de reclamações ouvidas do cliente. Súbito, a porta entreabriu-se e um rosto feminino se fez ver, meio coberto por cabelos.

“Desculpe. Sou Sofia, a nova estagiária. Mandaram entregar esses documentos pro senhor. É urgente.” A voz da moça, que entrara na sala, parecia tremer de timidez.

O diretor interrompeu seu arrazoado e fitou a estagiária com certa curiosidade. Logo recompôs-se.

“Bota aí em cima da mesa. Estou muito ocupado agora”

Voltou a dirigir-se a Alberto, que, alheio, via a moça sair apressada. Tem covinhas nas faces, observou. Que sorriso bonito.

Eventualmente, o chefe acabou de falar e Alberto pode ir para casa. Ao pegar seu carro, esqueceu-se da estagiária, pensando na série de problemas que o aguardavam. Dívidas que se acumulavam, filha adolescente pega com drogas na escola, mulher insatisfeita com a vida... E por aí vai. Saio da panela para cair na frigideira, pensou. Tinha vontade de fugir para algum lugar bem longe.

Estacionou na garagem do prédio, onde notou sujeira acumulada em alguns cantos. Nem os faxineiros deste condomínio funcionam, pensou. O elevador social estava parado e teve que subir pelo de serviço. Encontrou a mulher esperando-o na porta, contrariada.

“Telefonaram da seguradora. Você não pagou o seguro do carro, e estão para cancelar. Além disso, estive no clube, e disseram que estamos devendo três mensalidades. O colégio da Anita advertiu...”

“Vamos jantar? Estou morrendo de fome”, desconversou.

“A empregada não veio hoje. Só tem pizza, e já está fria.”

Entrou no banheiro e lavou o rosto, tentando relaxar. No canto do espelho, por um instante pareceu-lhe ver o rosto da jovem estagiária, com seu sorriso de covinhas.

* * *

Fim de ano, correria danada no escritório, projetos para terminar, serviços inacabados. Alberto olhava para a papelada em cima de sua mesa, tentando não se deixar dominar pelo desânimo. Cabeça baixa, concentrava-se numa planilha complicada. Sentiu algo suave roçando seu rosto e um leve perfume agradável. Levantou a cabeça, surpreso.

“O senhor deve estar com fome, doutor Alberto. Não parou de trabalhar desde cedo. Quer meu outro sanduiche? Trouxe dois”.

Relutante, aceitou o sanduíche que a estagiária lhe oferecia, mão estendida. O gesto lhe deixou uma sensação agradável de alento, alguém preocupava-se com ele. Dias depois, veio o convite.

“Quer almoçar comigo, doutor Alberto? Tem um bistrô novo aqui do lado, comida caseira. Bem baratinho!”

Não hesitou em aceitar, e foram almoçar. A moça mostrou-se capaz de uma conversa agradável, nada muito polêmico. Voltou para o trabalho mais animado.

Os almoços no bistrô repetiram-se ocasionalmente. Perto do Natal, a empresa organizou sua tradicional festa de fim de ano, numa sala de hotel. Única ocasião em que não faziam economia, tinha coquetel, canapês, até champanhe. As conversas subiam de tom, à medida que os funcionários consumiam cada vez mais doses de uísque, vodca e outras bebidas. Pessoas que mal se falavam na faina do dia-a-dia, conversavam animadas, com muitos abraços e tapas amigáveis nas costas. Alberto participava, feliz por estar se divertindo longe da mulher.

Uma mão suave passou-lhe pelo braço. “Está gostando da festa?” perguntou Sofia, chegando-se a ele. Sem esperar resposta, queixou-se do calor abafado. “Vamos até à varanda tomar um ar?” Puxou-o pelo braço até se encostarem na balaustrada do terraço. Virou o rosto para cima, oferecendo os lábios. Alberto, meio tonto depois de quatro uísques, não se fez de rogado.

Foram para um motel. Dias depois, repetiram a experiência. O jeito inocente e infantil da moça fascinavam o executivo. Dirigia-se a ele como se fosse um deus. O sexo raro e morno que tinha em casa, relação desgastada, brigas. Com Sofia, sentia-se renascer.

Fazia malabarismos para conciliar essa nova vida com a outra. Não era fácil; na verdade, cada vez ficava mais complicado. Manter as aparências no escritório era um problema, ainda mais porque precisava dos serviços de secretária da estagiária. Sofia, no entanto, era melhor atriz e parecia muito à vontade trabalhando com ele, diante dos outros empregados. Pior que isso era a atitude dela, que estava mudando. De humilde e carinhosa como no início da relação, passou a ficar mais exigente.

“Meu amor, essa história de motel não dá mais. Não fico à vontade. Porque você não aluga um apartamento para nós. Pode ser bem pequeno, não tem importância. Vai ser nosso ninho!”

Apesar de estar sufocado com despesas, Alberto cedeu e alugou um pequeno apartamento num bairro de classe média para seus encontros com Sofia. Tudo ia bem entre eles, saia de lá feliz. Meses depois, no entanto, quando estava jantando em casa com a família, tocou o telefone. A mulher foi atender, mas desligaram.

“Deve ser propaganda, ou então é golpe.”

As ligações repetiram-se várias vezes em outros dias, até que resolveu atender. A voz doce e melodiosa de Sofia respondeu do outro lado, perguntando quando iriam se encontrar.

Alberto ficou furioso. Na próxima vez em que encontrou a moça no apartamento, repreendeu-a com rispidez.

“Onde você conseguiu meu telefone? Não se meta com a minha família!”

Para sua surpresa, Sofia desmanchou-se em lágrimas. Soluçando, queixou-se. “Você não me respeita, pra você eu sou uma puta qualquer.” Alarmado, Alberto tratou de consolar a moça, com muitos carinhos e elogios, até ver de novo em seu rosto infantil o sorriso de covinhas. Sentia-se cada vez mais culpado: na sua mente, seduzira a moça, um homem casado.

Tudo ficou sob controle, até que um dia, Sofia o interpelou.

“Você não diz que me ama? Por que não se divorcia e casa comigo?”

Alberto levou um susto. Desconhecia essa Sofia, mais madura e voluntariosa. Saiu do encontro e, depois de pensar muito dentro do carro estacionado, tomou uma decisão. Essa vida dupla tinha que acabar. Tá certo, sua vida de família não era lá essas coisas, mas desmanchar tudo que já havia construído também não ia dar. E os filhos? Iam ficar com a mulher. E o apartamento já quitado? Iam ter que vender? Deus me livre.

O próximo encontro com Sofia foi doloroso. A moça não se conformava, chorava sem parar. Sentia-se um calhorda. Devolveu o apartamento; os telefonemas misteriosos continuaram por um tempo, até irem escasseando. Finalmente, cessaram. No escritório, evitava a moça o mais possível, a ponto de virar as costas quando a via.

Passaram-se muitos meses, e tudo parecia ter voltado ao normal. Durante este tempo, a estagiária havia sido contratada como funcionária. Alberto nunca retornara ao bistrô onde costumava almoçar com Sofia, com medo de encontrar a antiga amante. Um dia, porém, sentiu saudades do talharim com costela, seu prato preferido no restaurante, e resolveu entrar. Estava por terminar o almoço, quando a porta se abriu e para sua surpresa, entrou Sofia, acompanhada pelo seu chefe, o diretor de operações. Mudou de lado da mesa para não ser visto, terminou o almoço rapidamente e saiu ocultando o rosto com uma pasta.

Passou a observar com mais atenção o vai-e-vem da moça na firma. Parecia-lhe que o número de vezes que ela entrava e saía na sala do seu chefe havia aumentado. Levava pessoalmente com frequência pastas, correspondência e café, apesar do homem ter sua própria secretária. Sentiu-se confuso, sem saber o que concluir.

Um dia corria ofegante, tentando terminar um trabalho importante que era para ontem, quando foi surpreendido pelo diretor de operações, que abriu a porta do escritório subitamente.

“Alberto! Entra aqui. Quero falar com você.”

Entrou, apreensivo. Tentava elaborar mentalmente uma desculpa para o atraso no trabalho, esperando uma descompostura.

“Sente-se, sente-se, Alberto. Você e eu trabalhamos juntos há muito tempo; considero você meu amigo. Tenho uma novidade para lhe comunicar. Você sabe que sou casado.”

Fez uma pausa de efeito. O executivo, confuso, tentava imaginar onde o chefe queria chegar.

“Pois estou me divorciando. Sofia e eu vamos nos casar. Estamos apaixonados, paixão irresistível. Claro, ela vai ter que sair da firma e procurar outro emprego. Ou talvez nem precise, o que eu ganho vai dar de sobra pra nós dois.”

“É uma pena a firma perder uma funcionária tão dedicada. Por outro lado, agora sou um homem feliz. Estou me sentindo vinte anos mais moço!”

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Postado por Blog de Diana Guenzburger
27/5/2024 às 15h51

 
A insanidade tem regras

A discussão sobre a "proporcionalidade"das respostas aos ataques de um bando de terroristas assassinos a uma população de fazendeiros e agricultores, além de uma plateia de jovens espectadores de um show musical, é deplorável.
A ideia de que a "guerra tem regras", é por si só, absurda. Regras para destruir, matar, aleijar, incapacitar , machucar seres humanos, estejam ou não caracterizados para tal serviço, fardados, sinalizados, etc, é de uma estupidez ciclópica.
Aperfeiçoar aparelhos denominados de armas e classificá-los de acordo com sua capacidade em : leves, de ataque, de assalto, de contenção, de destruição média, normal, de massas, não tem cabimento no entender de ninguém. Ao mesmo tempo em que alguns cientistas flutuam a quilômetros no espaço, estudando o Universo, milhares de outros gastam seus preciosos neurônios, melhorando inventando, máquinas e instrumentos para arrasar, devastar, sublimar pessoas. E não tem lado que esteja mais ou menos certo que o outro, quando o assunto é resolver questões através do expediente mais simples que se pode imaginar: A supressão da vida.
O poder engalanado, as fanfarras altissonantes, os ritmos marcados das botas e coturnos agredindo o piso das avenidas em desfiles impressionantes não bastam. Há que mandar aqueles atores orgulhosos em seus uniformes bem passados para a morte ou a incapacitação. Há que mostrar arrogância, prepotência, autoridade sobre o "outro" do outro lado de alguma divisória. Entretanto, o mais absurdo é que são poucos indivíduos, bípedes falantes, que controlam a estupidez geral.
A capacidade de convencimento desses monstros abissais é inexplicável, sempre escondidos por um artifício impalpável, principalmente o medo e as promessas de afastar o perigo. Os céus castigam. Os céus premiam os que acreditam, a igualdade entre os parecidos serve de cola, adesivo, grude, para formar hordas. Bastam algumas promessas que vão desde leite e mel até casas, escolas, comida abundante, automóveis e outras prebendas até as glórias de ser um cadáver com uma rodela de metal pendurada numa fita, atada ao peito.
Os líderes viram siglas sempre que interessa. Ou são mensageiros do altíssimo, em suas múltiplas versões, sempre adversárias umas das outras, ou seguidores de idéias e doutrinas de aglutinação da população, da choldra, da escumalha em que todos se transformam. A mudança dos nomes dos responsáveis pela morte de milhares de jovens em ação, e outros milhares de pessoas comuns por conta dos “efeitos colaterais" da insanidade, é parte do absurdo.
Geralmente uma ideia religiosa, política, ou geográfica. Mas não é o assassino mór que aparece: é a sua "firma" o seu "clube" "a sua verdade"', Os grupos terroristas tomam ares de "defensores legítimos", exércitos irracionais de países onde a fome e a miséria é conhecida, garantem sua "democracia popular", facções religiosas perpetram barbaridades em nome das leis de seus deuses ou deus.
O nome dos monstros que mandam a juventude de seus povos e países para a máquina de morte quase ou nunca aparece ou está diluído em diversos "chefes ou dirigentes". Ninguém é responsável por começar um horror qualquer.Sempre agem em defesa de alguma ideia ou ambição.
Agora estamos vendo a cobrança de proporcionalidade na irracionalidade em resposta e contenção a uma barbárie indescritível. Deve ser falta de assunto. Quem procura acha.

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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
3/5/2024 às 09h44

 
Uma coisa não é a outra

Demonstrando grande indignação com a acusação que o levou a passar um período encarcerado, o Flagelo do Agreste, repetiu, durante uma entrevista na TV:
“Digam o que foi que eu roubei” insistindo, algumas vezes em tom indignado e com toda razão. Reclamava da pecha equivocada que seus adversários insistem em repetir e alardear.
Não é verdade que o Flagelo do Agreste tenha cometido furto, roubo ou assalto,contra pessoas ou instituições.Entretanto,sua condição fica evidente, ao terem sido comprovadas diversas situações em que se beneficiou, principalmente, da corrupção ciclópica perpetrada por empreiteiras poderosíssimas e, por ter aceitado mimos e vantagens imobiliárias encobertas por terceiros "laranjas, tais como: sítio no interior de São Paulo e um apartamento num balneário de luxo, na Baixada Santista.
Uma coisa não é a outra.
Um ladrão rouba, furta. Um corrupto é corrompido ou corrompe!Num determinado ponto das interpretações sobre o efeito de cada modalidade, chega-se, facilmente, ao entendimento de que os dois crimes resultam em benefício ao agente culpado.
Uma coisa não é a outra!
Ladrão é ladrão, corrupto é corrupto.
Faça-se justiça.
O noticiário, os comentaristas, os detratores, os adversários políticos, o cidadão com mais de dois neurônios, todos, devem respeitar a condição explícita e comprovada pelas investigações, processos, condenações e penalidades que o Paciente tem. Ele não é ladrão! Ele é corrupto!.
Uma coisa não é a outra.
A propósito, os processos não foram extintos. a justiça não extinguiu o trabalho da Polícia, dos investigadores, promotores, auditores, contadores e inquisidores que instruíram, com perfeição, os processos de corrupção. O julgamento foi anulado por “erro de endereço”. Um escândalo repugnante, num festival de desfaçatez, que foi atenuado com uma tornozeleira moral dando ao condenado a possibilidade de aproveitar sua imensa e indiscutível habilidade, carisma, articulação e “endereço”, para seguir com as arengas, hoje modernizadas, com vistas a um assento na mesa dos Arcanos da Ordem Global. Assim, o Mundo e o protagonismo nos grandes eventos econômicos, sociais, políticos, etc. que, realmente, englobam os hemisférios sem distinção, têm mais alguém querendo sair na foto.
uma coisa não é a outra!
Corrupto não é ladrão.
Uma coisa não é a outra.


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Postado por Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
28/4/2024 às 12h17

 
AUSÊNCIA

Relutante, entrou na sala. Eugênia estava esperando, chaveiro na mão.

“Estou de saída, tia Dani. Vou encontrar um cliente em Campinas, durmo por lá. Fica à vontade, quando sair, deixa a chave com o porteiro.”

Após passar pelo banheiro para ajeitar o cabelo mais uma vez, a moça saiu de casa apressada, batendo a porta de entrada com força.

Surpresa com a recepção pouco calorosa, tia Dani olhou em volta lentamente e tentou se recompor. É verdade que não poderia esperar nenhuma atenção especial por parte da sobrinha. O drama terrível em que estava imersa era somente seu, e o relacionamento com a moça, no máximo, superficial. A verdade, porém, é que nunca sentira tanta necessidade de um aconchego, um ombro amigo para se encostar. Esperava que a sobrinha lhe fizesse companhia naquela noite, que ficasse interessada em seus desabafos. Enfrentava sozinha uma dura realidade e esperava encontrar em Eugênia uma solidariedade que lhe desse algum alívio.

Sentou-se numa das cadeiras em volta da mesa de jantar, os pensamentos confusos. Após uns quinze minutos, deu-se conta de como eram fantasiosas suas expectativas com Eugênia. Esperar amparo de alguém que nem conhecia direito... A moça tinha sua vida, suas lutas, seus próprios dramas. Levantou-se e começou a examinar o lugar onde iria passar a noite. O apartamento era bom, arejado e bem iluminado. Sala de tamanho médio, dois quartos. Entrou na cozinha, que se abria diretamente na sala, à procura de um copo d’água. A geladeira era grande e moderna; depois de beber água gelada, devolveu a garrafa. Um detalhe chamou a atenção: duas fotos estavam coladas na porta.

Na penumbra da cozinha, pouco podia ver. Curiosa, foi pegar os óculos na bolsa e acendeu a luz. Duas moças abraçavam-se risonhas, uma delas sua sobrinha. As cabeças se tocavam e cabelos misturavam-se, uns louros, outros castanhos.

Parecem felizes, meditou tia Dani. Antes assim. Voltou a concentrar-se em seus problemas. Filhos desempregados. Problemas financeiros. E o drama final, que quase a derrubara.

Viera para esta cidade atrás de um advogado que lhe fora recomendado. Chato ficar na casa dos outros, ainda mais sendo recebida claramente de má vontade. Não é que não podia pagar hotel: pedira para hospedar-se no apartamento da sobrinha mais pela esperança de encontrar uma aliada. Alguém que ouvisse seus problemas, mostrasse piedade, solidariedade. Iludira-se.

Voltou para a sala e continuou a explorar o apartamento. Foi logo ver o quarto de dormir; dia seguinte, tinha que se levantar bem cedo por causa da reunião agendada para as oito horas. Viu que era amplo e confortável, com uma cama de casal larga. E o outro quarto? Descobriu que fora transformado em escritório, onde Eugênia devia trabalhar. Mesa grande, computador, dois monitores, impressora... A cadeira era daquelas anunciadas para executivos importantes, modernas, leves e caras. Sentou-se por curiosidade: a cadeira balançava e movia-se ágil sobre rodinhas.

Preciso de uma dessas para mim, pensou ao levantar-se. Porém sabia que não tinha coragem de pagar o preço. Passou os olhos em volta; fora uma estante com poucos livros, não havia mais nada.

Ao sair do escritório, uma pilha de fotos ao lado do computador chamou-lhe a atenção. Sentindo-se um pouco culpada, pegou-as nas mãos, olhando uma por uma. As mesmas duas moças das fotos da geladeira protagonizavam as imagens, que mostravam paisagens variadas. Em algumas, o vento do mar desmanchava os cabelos das mulheres e dobrava as folhas das palmeiras. Em outras, viam-se montanhas ao longe. Notavam-se grandes demonstrações de afetividade entre as duas, o que lhe causou certa estranheza.

Antes de ir dormir, foi até à sala ver televisão. Sonolenta, assistia com pouca atenção a um noticiário, quando o telefone tocou. Uma voz feminina indagou:

“Eugênia?”

“Eugênia saiu. Sou a tia dela. Quer deixar um recado?”

A voz do outro lado da linha parecia ansiosa. “Mas que transtorno. Preciso falar com ela. O celular não atende, parece desligado.”

Sem saber o que dizer, Dani ficou em silêncio. A voz continuou.

“Quem está falando é a terapeuta da Laura. Por favor, diga a Eugênia que preciso falar com ela, urgente.”

Desligou. Tia Dani ficou sentada, um pouco confusa. Quem seria Laura? Pelas palavras da mulher ao telefone, devia haver bastante intimidade entre essa Laura e sua sobrinha. Seria a moça das fotografias? Começou a ter a impressão de estar puxando o fio de uma meada que não lhe dizia respeito.

Lembrou-se do pouco que sabia sobre Eugênia, quase tudo a partir de relatos da mãe dela, sua irmã. Moça bela e inteligente, depois de formada criara sua própria empresa de Marketing. Era mesmo o orgulho da família. Após muitos namorados, ficara noiva de um advogado jovem, morador de outra cidade, com brilhante futuro numa firma renomada. O casamento, marcado para setembro. Tudo preparado para um final feliz.

Escreveu um bilhete com o recado da terapeuta, colocou sobre a mesa e foi até o banheiro. Lavou o rosto e vestiu a camisola, preparando-se para dormir. Programou o despertador para bem cedo, não queria chegar atrasada. Logo que apagou a luz, o telefone voltou a tocar. Atendeu, bocejando.

“Sou eu de novo”, anunciou a terapeuta. “Eugênia já voltou?”

“Não, ainda não.”

Ouviu um suspiro do outro lado da linha.

“Não sei o que fazer. Laura teve uma crise grave. Está no hospital, tomou muitos comprimidos. A notícia do casamento marcado derrubou ela.”

Diante do silêncio da interlocutora, acabou desligando. Dani tentou dormir, só conseguiu depois de rolar muito tempo na cama, os pensamentos confusos. O dia amanheceu e apressou-se, louca para ir embora.

Quando ia abrir a porta para sair, Eugênia entrou.

“Ainda está aqui, tia Dani? Pensei que ia sair cedo”

A mulher mais velha parou, tentando achar palavras para expressar-se. Sem querer, fora cair no meio de um drama, que no momento parecia até pior do que os seus. A sobrinha notou a hesitação e viu o bilhete sobre a mesa.

“Telefonaram pra você. Laura...”

Eugênia sentou-se e escondeu o rosto entre as mãos.

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Postado por Blog de Diana Guenzburger
16/4/2024 às 19h45

 
Mestres do ar, a esperança nos céus da II Guerra





“Mestres do ar” (Masters of the air, 2024), a série recentemente exibida pela Apple, com a produção executiva de Steven Spielberg e Tom Hanks , foi produzida para ser vista como uma história de bravura. Da bravura sobre a vitória aliada na Europa invadida por Hitler e da bravura de homens diante de seus medos.

A história do esquadrão da aeronáutica norte-americana, que por volta dos dois últimos anos da Segunda Guerra Mundial luta contra as forças alemãs, é sobre a relação entre amigos, companheiros e combatentes que, muito jovens, buscam se desviar dos flaks (artilharia antiaérea) a cada missão e, ao mesmo tempo, empenham forças para causar, com suas bombas, danos nas cidades inimigas.

Isso, sem dúvida, é o momento de ação mais bem realizado da série e traz um impressionante realismo que confere, aos efeitos especiais e filmagens em locações, um status notável nas produções sobre guerras.

As imagens não parecem cenas baratas de videogame, elas parecem nos colocar dentro dos muitos momentos dos combates e da violência com que são travados.

Não costumo comentar sobre esses detalhes técnicos, mas poucas vezes vimos tanto cuidado com esse nível de produção, até mesmo em produções que tem nos efeitos especiais e na recriação de cenários seu fundo mais importante.

A isso se alia a condução dos capítulos, feitos para provocar êxtase, retrair e causar expectativa no espectador.

O sumiço, por dois episódios, de Gale Cleven ( Austin Butler ), um dos protagonistas, abatido em combate, e o surgimento de um personagem ainda mais interessante para preencher seu lugar, o Tenente Robert Rosenthal (Nate Mann), é uma estratégia muito perspicaz para renovar o roteiro.



Rosenthal é dos que representam a figura da bravura de maneira mais explícita. No “Centésimo Batalhão” do qual fazem parte, completar 25 missões dava ao comandante do bombardeiro o direito de voltar para casa.

Rosenthal as completa, mas se nega veementemente a deixar seu posto, ao saber que os termos foram mudados para os que ficaram. Os remanescentes teriam, agora, que completar 30 missões para voltarem para suas famílias.

“Rosie”, como é conhecido, exibe a mesma coragem que Gale e John Egan ( Callum Turner ), os dois personagens centrais que formam a principal amizade da série.

São eles que parecem viver mais intensamente aquele ambiente de muitas mortes, destruição, campos de prisioneiros, mas também de companheirismo e vitórias.

Os dois galãs encarnam grande parte da mitologia sobre a participação norte-americana na Guerra e, talvez, isso explique, também, o sucesso de público da série.

Quase sempre juntos, eles são respeitados por seus colegas e são os modelos a serem seguidos pelos novatos.

É verdade que a mensagem principal da série não é a política em si, mesmo que seja impossível dissociar esse mundo em chamas das decisões no teatro político da Guerra.

Os atores mais famosos (políticos, generais e burocratas), desse teatro desolado pelo conflito, não surgem, como costumamos ver em outras produções. O foco aqui é naqueles que ficaram menos evidentes nos livros de história.

Mas há momentos em que a realidade política mais explícita, que resultou em milhões de mortes, surge.



Ao serem capturados pelos alemães, os aviadores conhecem parte dos horrores, causados por eles, do outro lado, ao verem a destruição nas cidades germânicas.

Em uma das cenas como prisioneiros, os habitantes de uma das cidades gritam em direção a eles, “assassinos”, “aviadores assassinos!” e partem para cima dos militares, espancando e, com a ajuda dos nazis, matando quase todos. John Egan, um dos heróis, sobrevive.

Há também algum embate moral na produção, especialmente entre os personagens do tenente Harry Crosby (que narra grande parte da série, que, como se sabe, é baseada no livro de mesmo título, de Donald L. Miller) e Rosenthal que se questionam sobre seus atos. Mas isso é muito pouco na produção.

Talvez a cena política e humana mais representativa seja o conhecimento, por parte de Rosenthal, de um dos campos de concentração. Sua entrada no lugar e sua visão são, mesmo sem uma representação mais profunda e abrangente sobre o tema na série, impactantes.

Atordoado, em uma das paredes das celas dos prisioneiros, ele vê uma Menorá (um candelabro, símbolo do judaísmo). Algum sentido do que ocorrera ali parece se formar, definitivamente, em sua mente.

Em outro momento, os dois Buckys, Gale e Egan, como eles são conhecidos, tornam-se prisioneiros no mesmo campo. Em um estratagema, durante um deslocamento dos prisioneiros, Egan simula uma fuga, os soldados se distraem e Gale escapa com outros dois companheiros.

Durante a fuga, em uma momento de distração, um dos colegas sofre, pelas costas, um ataque com uma baioneta. Do ataque faz parte uma criança alemã que ameaça Gale com um revólver. O soldado toma sua arma e aponta furioso para a criança. O menino pede, “bitte!” (por favor!). Gale não atira. Ele precisa ser o belo e perfeito herói.



Na verdade, naquela altura dos acontecimentos, os soviéticos já haviam invadido Berlim e o fim do Reich era dado como certo. A arma utilizada pela criança nem munição mais tinha. Essa sequência, como tantas outras que já vimos sobre a Guerra, só demonstra a irracionalidade daquele momento.

Os aviadores do Centésimo Batalhão de Bombardeiros experimentaram essa realidade. Mas a mensagem que o episódio final, no qual eles jogam alimentos para um vila holandesa, quer deixar é de amizade, esperança e liberdade. Pode parecer hollywoodiano demais, e é. Mas talvez a série lembre um cinema de outras épocas, de bravuras e esperanças de outras épocas.

E, talvez, seja o que explique sua aceitação pelo público. Homens desafiando o terror de outros homens e desafiando seus próprios medos.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Esse texto foi publicado no Diário online

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Postado por Relivaldo Pinho
9/4/2024 às 21h56

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