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Terça-feira,
3/3/2015
A arte como terapia - inspiração e criação.
Sonia Regina Rocha Rodrigues
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Arte não é comércio. É como respirar, um ato fisiológico. Ninguém faz arte porque quer, faz arte porque necessita. É comunicar-se ou enlouquecer.
Começamos a escrever, geralmente, na escola, recebendo temas para redação, como 'minhas férias', 'meu melhor amigo' etc. Nessa época usamos mais o raciocínio do que a emoção, procurando por frases de efeito que já sabemos que serão apreciadas pelos professores. Em minha época de criança estavam em moda expressões como 'o canto mavioso dos pássaros' e 'flores multicoloridas'. Somos influenciados pelo estilo de nossos autores preferidos - no meu caso, Monteiro Lobato.
Hoje em dia aprecio as técnicas de Edgar Allan Poe e Fernando Sabino.
Aos poucos cada pessoa desenvolve um estilo próprio de escrever, uma maneira peculiar de perceber idéias promissoras. (chamamos a isto inspiração)
Do meu ponto de vista, inspiração é qualquer estímulo à atividade criativa.
Eu percebia que emoções fortes transformam-se em devaneios, imagens coloridas e vivas que ficavam 'querendo sair', agitando-se em meu cérebro. Esta inquietação inicial adquiria um significado, dava origem a uma gestação mental , e só se acalmava quando a idéia vinha à luz. Este é o meu processo de criação: a emoção gera uma perturbação psíquica que dá origem a idéias desorganizadas que ao se organizarem criam a obra.
Começo a escrever sem censuras, deixo as idéias fluírem espontaneamente para o papel do jeito que vierem, por mais sem sentido que pareçam.
Na adolescência eu escrevia histórias malucas como sonhos. Nessas primeiras histórias, vampiros, sereias, discos voadores e fantasmas misturavam-se com pessoas reais e faziam rir minhas colegas de escola. Através destes primeiros textos, os tumultuados e confusos sentimentos adolescentes iam embora e eu retornava ao equilíbrio. Eu havia descoberto a 'catarse' - a purificação, a sensação de alma lavada que sentimos quando extravasamos nossos sentimentos de forma simbólica.
Toda catarse é terapia.
A arte, em todas as suas manifestações, é uma forma poderosa de catarse.
O aspecto terapêutico do ato de escrever, a princípio não é muito claro porque tendemos a pensar que quando usamos as palavras utilizamos a razão, quando, na realidade, a imaginação do escritor está muito mais voltada ao emocional. A ficção, seja prosa ou poesia, é mais emoção que razão.
Com o passar dos anos, o tempo de sonhar, devanear e escrever, que na adolescência 'sobrava', foi diminuindo, mas o fluxo criador aumentava, e fui-me tornando sucinta, aprendendo a 'enxugar' os textos, a retirar o supérfluo, a garimpar o essencial do tema. A idéia vinha, eu anotava em qualquer papel à mão e deixava para desenvolver o tema mais tarde, quando encontrasse tempo livre. No decorrer do dia o assunto retornava com freqüência a minha mente, de relance; ia associando idéias, fazendo comparações, encontrando outros pontos de vista. Quando eu finalmente sentava-me para escrever descobria que o texto estava pronto em minha mente, inteiro, do começo ao fim, sem hesitações e praticamente sem necessitar retoques. Desta forma fui desenvolvendo o que chamo técnica do inconsciente.
Um acontecimento chama-me a atenção e penso 'isto dá um conto'. Envio a idéia ao inconsciente e não penso mais nela, simplesmente aguardo; quando o texto está pronto, ele aparece por inteiro, geralmente durante a madrugada.
Há duas maneiras pelas quais as idéias me acordam à noite: texto pronto ou sonho.
No caso do texto pronto, ouço uma voz interior lendo para mim; repito três ou quatro vezes para memorizar e então levanto, acendo a luz e escrevo. É preciso ter o cuidado de repetir mentalmente o texto antes de acender a luz para que a idéia não se perca, porque a passagem do estado de relaxamento (estado alfa) para o estado de vigília (estado beta) é muito delicada; se a passagem for sutil há lembrança, já a passagem brusca provoca amnésia, perde-se a percepção dos processos interiores do estado crepuscular (a fronteira entre o adormecer e o despertar).
Os sonhos são interessantes elaborações de conflitos internos que aparecem como histórias simbólicas prontas de grande impacto emocional. São exemplos deste tipo de criação meus contos Pesadelo eNo templo de Esculápio. Também a peça teatral Os deuses despencaram do Olimpo foi inteiramente sonhada.
Certa vez li o texto Pesadelo a um grupo de amigos escritores e cada um deles deu para a história uma interpretação completamente diferente. Eu o sonhei aos doze anos de idade e só aos trinta e cinco encontrei a chave simbólica do sonho, que se refere à passagem da vida de menina para a de mulher; 'não há volta' e a elemento para decifrar este símbolo pessoal são as letras escritas em vermelho - o sangue da menarca.
O símbolo tem esta plasticidade, esta particularidade de prestar-se a várias interpretações em vários níveis de complexidade, de acordo com o estado perceptivo de cada um.
O inconsciente representa no símbolo o que é mais importante naquele momento e o consciente capta somente o que está a seu alcance administrar, por isso as histórias simbólicas, como o são os contos de fadas, nos encantam e são tão úteis na formação do psiquismo infantil.
Quando escrevo sobre o cotidiano utilizo uma técnica um pouco diferente, meio consciente e meio automática. Escolho o motivo quando me surpreendo com o aspecto absurdo ou diferente da vida e trabalho este aspecto absurdo através do humor - desta forma descarrego as frustrações existenciais.
Procuro usar a técnica do impacto, apresentando o trivial fora de seu contexto (um de meus personagens pergunta se as girafas não são bichos de faz-de-conta); trabalho as idéias de forma aparentemente lógica de modo que a conclusão do raciocínio, no entanto, leve a uma absurdo; uso e abuso das ambigüidades e do recurso da repetição para caracterizar a intenção e o comportamento do personagem, até chegar ao final surpreendente.
O final surpreendente é uma característica do conto moderno, que consiste em conduzir o leitor a uma conclusão completamente diferente do que o fluxo lógico da história sugere e leva-lo assim a repensar a história sob uma nova perspectiva.
Em resumo, toda arte é, para o artista, uma forma de libertação emocional, sendo a criação uma forma elaborada e complexa de transformar sofrimento em arte, uma forma de contato com a realidade interior.
Quadro de Van Goh, Irises
Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
Em
3/3/2015 às 07h51
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