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Terça-feira,
3/3/2015
Como numa luta de boxe
Angélica Amâncio
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É famosa a comparação, realizada por Julio Cortázar, do conto e do romance em relação à luta de boxe. Segundo o escritor argentino, nascido na Bélgica, o romance sempre venceria por pontos, enquanto, no conto, a vitória se daria por nocaute. Podemos refletir da mesma maneira em relação à série e ao filme. O roteirista e o diretor de uma série contam com dezenas, às vezes centenas de capítulos, nos quais devem enredar o espectador, emocionando-o, divertindo-o, assustando-o. No cinema, a conquista deve acontecer em média dentro de duas pequenas horas. A apresentação dos personagens, o conflito, as lágrimas, o grito, a catarse, o riso: tudo tem que ocorrer com rapidez e eficácia, antes que o espectador se levante da poltrona, mude de canal ou peça seu dinheiro de volta na bilheteria.
Além da duração, a série tem outra grande vantagem em relação ao filme: a curiosidade. Sherazade não inventou, mas teve a perspicácia de explorar a fraqueza humana diante daquilo que se desconhece, da resposta que falta, do desfecho que não se revela. Também o espectador pode passar mil e uma noites tentando descobrir o que vai acontecer amanhã, na semana que vem, no próximo capítulo. Esse presente fugidio, tempero que também garante o sucesso das telenovelas - como, antes, fizera com os romances de folhetim - não se adere da mesma maneira à natureza do filme. Ainda que algumas sequências se esforcem por manter intrigado o espectador, o transcorrer do tempo, a mudança da equipe, o envelhecimento dos atores acabam por gerar, quase sempre, o desinteresse ou a frustração da audiência com "a parte II" ou "III".
O frisson causado, recentemente, por "Boyhood", ("Boyhood", EUA, 2014), de Richard Linklater, associa-se a essa experiência temporal. De modo semelhante ao que faz com a conhecida trilogia "Antes do Amanhecer", "Antes do pôr-do-sol", "Antes da meia-noite", em que acompanha, em três diferentes décadas, a história de amor do casal interpretado por Julie Delpy e Ethan Rawke, Linklater volta a colocar o tempo no centro de sua obra.
Neste caso, acompanha-se toda uma família, com destaque para o garoto, Mason, interpretado por Ellar Coltrane. O processo é inegavelmente interessante, já que o diretor passou doze anos reunindo-se com a equipe para filmar algumas cenas, que gerariam um filme de mais de três horas. Em termos de intriga, tem-se o cotidiano, o trivial: uniões, separações, mudanças, altos e baixos.
O filme faz pensar em "The Wonder Years", "Os anos incríveis", série da rede americana ABC, veiculada entre 1988 e 1993, nos Estados Unidos, e transmitida, no Brasil, pela Bandeirantes, TV Cultura, Rede 21 e Multishow. Foram apenas seis temporadas, metade do tempo que Linklater passou acompanhando seus atores. Contudo, a relação que se estabelece entre o espectador e os personagens, sobretudo o protagonista, Kevin Arnolds (Fred Savage), é bastante diferente da alcançada em "Boyhood". A intensidade dos doze anos, condensados em três horas de contato, afasta-se da intimidade e do afeto que se constrói com as descobertas de um pré-adolescente nos anos 1970, narradas por sua versão adulta, episódio a episódio. O filme, assim, ganha por nocaute, enquanto a série, mais do que vencer, conquista o espectador por pontos.
Nos dois casos, contudo, tanto no de "Boyhood" quanto no de "The Wonder Years", experimenta-se o mesmo: a percepção da passagem implacável do tempo. Talvez doa menos pensar nisso vendo crianças crescerem do que descobrindo novas marcas diante do espelho. Para o tempo, no entanto, todos perdemos, todos somos nocauteados por pontos.
Postado por Angélica Amâncio
Em
3/3/2015 às 16h35
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