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Quarta-feira,
4/3/2015
REMÉDIOS, A BELA
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
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Entre os tantos livros na minha estante, um deles se destaca: já sonhei que estava nessa história de Gabriel Garcia Marques, em cores de fim do dia, daqueles amarelados que aos poucos se transformam em cinza, perambulei pelas ruas de Macondo em cenas tão reais que acordei sentindo o cheiro de um rio de águas diáfanas. Hoje cedo, assim que olhei para o computador, resolvi fazer nessa crônica um relato sobre a construção de um bom texto, desses que ficam na memória e acabam se transformando em sonhos que parecem reais. Não que eu me considere especialista no assunto, são apenas observações, que ouso fazer, mesmo temendo que algum erudito me tome por fanfarrão. Sei que o bom texto depende inteiramente da inspiração, que se esconde em todos os lugares nos quais possa caminhar a imaginação. E como surgem as personagens? Dessa que quero falar, é provável que tenha acontecido num dia que começou nublado, naquelas primeiras horas da manhã, quando os olhos ainda não acordaram por completo, até o momento sublime no qual a moça, que de tão bela fazia os olhos arder, apareceu diante dele, dissipando o nevoeiro, trazendo a brisa suave, que atingiu gostosa a cabeça do poeta, esparramando os cabelos, abrindo espaço para que a inspiração se fizesse presente, percebendo os movimentos da rua abarrotada de gente, na qual os encantos da moça conseguiam se destacar. É provável que o poeta tenha segurado a respiração ao se dar de frente com aquele olhar de soslaio, saída de uma rua qualquer, espalhando pela calçada a chama de fogo que fere sem sentir e fez com que ele nem percebesse quando a beleza da dama divina invadiu-lhe a moldura dos olhos para nunca mais sair. Uma criatura assim — Gabo deve ter pensado - vai crescendo sem malícia, enfeitiçando a todos, embora o que ela realmente deseja é viver sossegada, comer, dormir e andar nua pela casa, achando graça dos homens, esses pobres coitados, errantes, possuídos pela fé inexata dos que desejam tocar o que não se pode alcançar. Quando enfim formulou o protótipo da perfeição, Gabo pensou em pedi-la em casamento, desejo do qual recuou, convencido que a moça era bela demais, perfeita demais, imprópria ao convívio humano. E como sequer fora notado, fez surgir um momento mágico e a eternizou em seu texto. A beleza da moça prosseguiu perseguindo os pensamentos do poeta, mas a indiferença foi tão visível que resolveu imaginar que ela juntara as pontas dos lençóis e ascendesse aos céus, completamente nua, levando embora todos os tormentos que provocara, enquanto ele, aqui debaixo, acompanhava a bela se perder no espaço infinito, armado com olhos complacentes de um pássaro sem asas, incapaz de voar, atormentado pelo desprezo de algo que sequer conseguiu provar. Resolveu chamá-la de Remédios, embora nunca tenha se curado da ferida que ela lhe causou, entregue num canto enquanto o tempo passava, bastante tempo, algo em torno de cem anos de solidão.
Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
Em
4/3/2015 às 19h23
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