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Sexta-feira,
6/3/2015
Se bem me lembro
João Luiz Peçanha Couto
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Foi Ecléa Bosi quem afirmou que uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Então, o que significa a memória, sobretudo quando se encontra com a literatura? Que outras significações o gesto de sacar algo do passado pode ter? O passado de fato "passou", ou persiste no meu presente? Sempre me questionei a respeito da função que os suportes da memória desempenham na estrutura de uma narrativa. A resposta primeira sempre rondava o comum: meu testemunho, eu faço o que quiser com ele. Minha experiência vira minha ficção. Mas: até que ponto isso de fato se confirma?
Pensei, para "fazer o fio terra" com alguma obra literária, em falar brevemente de um romance do martinicano Patrick Chamoiseau: Texaco (Edição esgotada no Brasil, mas que ainda pode ser encontrada na Estante Virtual, por exemplo).
A trama? Vamos a ela. Texaco, na cidade de Fort-de-France, na Martinica, é uma favela erguida por invasão nas terras da companhia petrolífera de mesmo nome. Sua fundadora chamava-se Marie-Sophie Laborieux. Filha de Esternome Laborieux, um ex-escravo, Marie-Sophie, em sua conversa com o autor ("marcador de palavras", segundo designação da própria), vai misturando suas memórias com as de seu pai, tendo como pano de fundo a história da Martinica e, sobretudo, a história daqueles que perderam a História - os que habitam a base da pirâmide social.
Uma pergunta que não pretendo responder aqui, mas trago-a à guiza de provocação: a memória é verdade? Ou seja, aquilo de que me lembro pode ser tido como verdadeiro? O que, portanto, Marie-Sophie fala ou escreve, a partir de suas lembranças, é real? Provavelmente não (inteiramente). Mas se faço esta pergunta, referindo-me às memórias de Marie-Sophie, posso estendê-la: o que está grafado nos livros de História é verdadeiro? Ah, podem dizer alguns, claro que sim, pois tudo aquilo foi retirado de fontes primárias, documentos oficiais, atas. Então, insisto, você afirmaria que o que foi grafado por um escrivão de cartório ou assessor político é exatamente a verdade? Eu não poria minha mão no fogo por isso.
A obra trata das longas conversas gravadas entre Marie-Sophie e o marcador de palavras. Nessas conversas, a protagonista-narradora conta para o marcador (que ela por vezes chama de Oiseau de Cham, uma brincadeira com o sobrenome "Chamoiseau") não apenas a história da fundação de Texaco, mas as histórias contadas a ela por seu pai, mescladas com anotações de dezenas de diários que ela escreveu ao longo de meio século. Um trabalho de reconstrução da memória individual (de Marie-Sophie e de Esternome)? Da memória da Martinica? Da memória dos chamados povos "da diáspora"?
A memória aqui entra como um instrumento corretivo da História: por meio dos rastros (ah, Benjamin...) deixados por seus percursantes, a história contradiscursiva (a micro-história, reino das pequenas coisas, das pobres epopeias e dos personagens apequenados) ergue um contraponto à História oficial, mais preocupada em "glorificar os feitos das camadas dominantes de uma época", conforme texto da professora Zilá Bernd. Assim, Texaco propõe uma correção histórica por meio da memória, das rememorações e dos esquecimentos (sim, porque para termos memória de épocas passadas temos que esquecer de outras tantas).
Dizendo assim, pode parecer que a obra se aproxima mais de um tratado sociológico do que de uma peça literária, o que é uma inverdade. Escrita em creole, mescla do francês canônico com um sem-número de línguas diaspóricas, Texaco é um livro de trechos belíssimos em que a língua da norma (que Blanchot chamava de "linguagem comum") é transgredida até seus limites, metaforizando uma realidade de precariedades em série e, portanto, poetizando o que para alguns seria "impoetizável". Verdades ou mentiras: lembranças. Memória não é apenas História: é estética.
Postado por João Luiz Peçanha Couto
Em
6/3/2015 às 11h13
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