"Não perguntar o que um homem possui, mas o que lhe falta. Isso é sombra. Não indagar de seus sentimentos, mas saber o que ele não teve a ocasião de sentir. Sombra. Não importar com o que ele viveu, mas prestar atenção à vida que não chegou até ele, que se interrompeu de encontro a circunstâncias invisíveis, imprevisíveis. A vida é um ofício de luz e de trevas. Enquadrá-lo em sua constelação particular, saber se nasceu muito cedo para receber a luz da sua estrela ou se chegou ao mundo quando de há muito se extinguiu o astro que deveria iluminá-lo. 'No light, butratherdarknessvisible'." Paulo Mendes Campos in Sombra. Primeiras Leituras, p. 104-105.
Compartilhamos essa angústia frutuosa pela ternura. Uma vontade de tocar a todos com a ancestral tristeza, infante. Sensação embriagada, esses silêncios corrompidos por palavras. A vontade de estar frente à morte, e ignorá-la, em austeridade.
Deitamos as noites, enganando-as, porque as inspirações chegam atrasadas, em ocasiões especiais. E também esta ridícula fascinação pelos trôpegos e miseráveis protagonistas da realidade. Medo de estarmos errados, sendo céticos.
E, de repente, nesse alvorecer de fevereiro, ainda envolta por cartesianas lembranças, despertar os vulcões hibernados da melancolia, para sentir com precisão, para doer em completude, para cravar assinatura no firmamento que me é testemunha.
Eu, aprendiz de solidão.
Acreditar nos domingos, curadores de ressaca. Libertar a mudez insuspeita dos crepúsculos em goles de eternidade. Suplicar para que a dor volte, entusiasmada de mistérios.
Lírica.
Um amor mútuo por Clarice, daqueles que ferem as entrelinhas e perdem a doçura. Amor que sangra as gengivas, encharcadas de poesia e sofrimento. Vampiros que somos, pelas tardes vermelhas que não voltam nunca mais.
À procura de pólvoras incandescentes, esvaziamo-nos, exangues. A vírgula meticulosamente empregada. O verso mais bonito no final. O título que ainda está gestando. E, claro, o esmorecimento da criação.
Queria que viesses, desprovido de raízes. Copo na mão, cigarro na outra. Amaria ouvir onde vive o amor de amanhã, salvo em teus versos.
Aclamado em vida ou perpetuado pela história?
Como te pensavas, meu querido?
Seria a vida uma insuportável contrarregra, se soubesses agora?
É sempre poesia o que dizes de ti mesmo? Se sim, apenas para amenizar a tortuosa sina?
Ah, estrela desencontrada em sincronia! Talvez por isso tenhas as coincidências como tema.
Não me importa.
Hoje pude revisitar-me em infâncias, sabendo que são estas as viagens impossíveis de planejar. Encerrando-me no instante de nós dois, Paulo Mendes Campos. A pedra me doou o seu suplício.
E as rimas, que insistem em escrever.
Para quê?
Nunca deixei que a melodia atravessasse os meus segredos.
Tu me deste a sombra — inerente aos braços dos moinhos — para sonhar. E quem sou eu para sonhar a imensidão, tão doída, tão doida?
Bêbado de tanto ofuscar-te, respondes a mim:
- Lá, intrínseco à posteridade.
Quando o amor não acaba e os escuros são mais sábios.