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Quarta-feira,
15/4/2015
Palavras de corpo e alma
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Não cultivo orquídeas. Não me apavoram porcos chafurdando a terra enlameada. Aprecio paradoxos. Posso esquecer que é verão e sair voando com asas de cera. Para viver é preciso arriscar-se. Outra não serei. Senão aquela que às vezes ri do mundo.
De vez em quando sou ácida. Não conheço a fulana que passou. Mas sua blusa de estampa de oncinha é pra lá de cafona. Aquela senhora, no lançamento do livro do Rubem Fonseca, sei bem quem é. Fina dama furando fila.
Quando mordo não assopro. Dizem que o hábito faz o monge. Com livro é diferente. Capa não faz o escritor. E me veio aquela conhecida escritora, numa reunião literária, perguntando se eu já tinha ouvido falar em Thomas Mann.
Outra jamais serei. Minha boca não se esquece do que me dilacera o corpo. Sinto as palavras nas entranhas. Elas têm peso. Leveza. Volume. Transparência. Cor. De corpo e alma, encontro-me nas palavras. Solícito. Urgente. Delicado. Brega.
Em minha pele explodem sentidos. E existem várias e infinitas formas do brega. Ser o dono da verdade. Falar pelos cotovelos. Falar de si o tempo todo. Dizer que conhece gente importante e ficar declinando nome e sobrenome dos VIPs. Ostentar peças de griffe. Alguns bregas dizem até o preço.
Mudando e não mudando de assunto, dentro de mim, algumas palavras vivas nasceram no passado. Pato. Jardim. Lago. E lembrei do pequeno lago redondo no jardim da casa da Leda.
Coisa estranha a palavra. Sozinha não quer dizer quase nada. Temperada pelo afeto ou pelo desafeto mostra-se de corpo e alma. Ao coração, a palavra animiza-se. Vira flor. Ou pedra. Ou assombração. Vira gente ou bicho. Mas, no modo de ser, ressalta-se a diferença. Certos animais são dóceis. Lugar comum, bem o sei, mas digo: na selva os bichos só matam quando estão com fome.
Em meu coração, a palavra "pato" é branca. Tem asas. Sabe nadar. Sente saudade. E pode virar gente. Pensar. Imaginar. Gostar e não gostar das coisas ao redor. Na beira do lago, aquela palavra me via com carinho, quando eu lhe jogava pedacinhos de pão e farelinhos de biscoito de Maizena. Mudando e não mudando de assunto, detesto jaquetão de linho branco.
Sem querer, voltei à infância: aniversário da Maria Inácia. Entre os convidados, um delegado de polícia. Jaquetão de linho branco; óculos Ray-Ban; cabelos pra trás, grudados de Gumex. No meio da festa, veio ele com a história de um punguista preso na sua delegacia. Então, o mocinho de terno engomado, de quem me lembro nome, sobrenome, corpo, focinho e voz, gabou-se de um episódio de espancamento. Eu tinha oito anos. Confesso que simpatizei com o ladrão.
Naquele momento, a palavra "tortura" explodiu no ar. Repercutiu longe. Ganhou corpo. Inchou. Inchou. Pisou no bolo e nos convidados. Na lixeira da casa ergueu-se um pau de arara, que foi aumentando de tamanho, avançou pelos espaços da sala. Derrubou as paredes da casa. E na rua se transformou num monstro de couraça branca e óculos Ray-Ban.
Para viver é preciso aceitar diferenças. Entanto, não aguento certas diferenças. Tenho vontade de ver palavras pulsando de renovação.
Algumas pessoas adulam as palavras ou tentam mudar significados. Outras cospem nas palavras. Mas as palavras se vingam. Grudam na cara do cuspidor. Ele então esgana as palavras. Mas não adianta matá-las. Cortantes e ensanguentadas, elas ressurgem manchando o alvor das roupas de linho.
Mas as palavras também podem renascer dóceis. Podem surgir anunciadoras. Em meus escritos, a palavra "pato" continua nadando na superfície da palavra "lago". Come pedacinhos de pão e farelinhos de biscoito de Maizena. E transforma-se em outras palavras que darão sentido e nome ao dia seguinte.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
15/4/2015 às 09h10
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