Gastronomia Mediterrânea pós-humana | Blog de João Luiz Peçanha Couto

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Quinta-feira, 30/4/2015
Gastronomia Mediterrânea pós-humana
João Luiz Peçanha Couto
+ de 3100 Acessos

uma proposta de intervenção metodológica

Por Bernadette Reutmann

Aquele homem está sendo devorado por canibais!
(Anônimo)

A afirmativa da epígrafe poderia derivar em engulhos se estivéssemos ainda sob o paradigma gastronômico do século passado. Entretanto, a asserção nos servirá de ponto de apoio para nossa investigação (Aqui reiteramos nosso reconhecimento ao incentivo dos dois órgãos de fomento à pesquisa, mencionados nos agradecimentos). Retomando a sentença que encima o presente ensaio: além de termos a sensação de estarmos iniciando a leitura de um romance de ingenuidade novecentista a figurar o embate cultural entre um "nós" e um "eles" ou ensaio multiculturalista que lembre as pós-utopias do século XXI, o choque inicial se daria em dois níveis: no escatológico e no gastronômico. A pretensão deste ensaio é revelar o imbricamento entre esses dois domínios, supostamente distantes, mesmo que a literatura sobre o assunto seja bastante incipiente e os órgãos de fomento à pesquisa última e lamentavelmente tenham apresentado comportamento avesso ao financiamento de investigações nesta linha de pesquisa, salvo exceções já mencionadas. Assim, em primeiro lugar a pele da vítima é lacerada por mãos humanas de unhas grandes e sujas, o que nos deixaria entrever primeiro que, abaixo dela, temos uma gordura amarelecida, semelhante à das galinhas, por exemplo. O consumido emite fortes gritos de dor, imediatamente abafados por furores ritualísticos dos comensais, excitados com o início do processo. Fury (2104) afirma, amparado em pesquisas anteriores de Norton (2048) e Bishop (2071) que tais gritos emprestam à carne tenrez inigualável, o que desqualificaria o ato de abafar os gritos do consumido (p. 387). Ao fundo pode-se ouvir canções populares saídas de grandes alto-falantes dispostos em círculo, bastante adequados à situação festiva. O mau gosto daquelas canções não deverá ser levado em consideração, o que revelaria certo preconceito do sujeito (MISELA, 2111, p. 47) que observa a cena: sabe-se que etnocentrismos são impermitidos nessa ciência desde o século XX, e rigorosamente punidos, durante tais festivais. Camadas vermelhas de músculos seriam devoradas em seguida, deixando expostas pontas de ossos e tendões: os membros seriam os primeiros a serem devorados por conta da notória facilidade de serem descarnados e, a esta altura, a vítima teria já desmaiado, pois, conforme Ishtra (2083), é impossível para o cérebro humano manter-se consciente diante de dores de tal monta. Nesse sentido, inclusive, há estudos (CRAWFORD, 2100) que afirmam que alguns goles de bebida alcoólica podem ser dados à vitima, de forma a evitar o endurecimento precoce da carne. Nessa altura, sob a pira de abate, são postas grandes bacias de latão que servirão para aparar o sangue escoante do corpo do consumido, matéria prima para caldos de sabor inimaginável, reduzidos lentamente em fogo lento pelas anciãs da comunidade. Alguns comensais tiram da cintura pistolas de última geração e disparam para o alto, na falta de fogos de artifício, de difícil aquisição nesses tempos sombrios. O porte de arma, como se sabe, é permitido àqueles que detêm o saber de farejar vítimas em potencial (CAMPBELL, 2060). Depois dos membros, o seguinte da lista seria o tronco: porção de difícil acesso, posto que é protegida pelas costelas, cujos ossinhos deverão ser cuidadosamente partidos, de forma a não danificar, por exemplo, a carne suculenta de um fígado ou de um pâncreas, cortes bem servidos de sangue, que nessa altura do banquete já estaria sendo coalhado lá embaixo, nas bacias. De qualquer forma, vencer a grade de ossos que são as costelas não é tarefa para qualquer um e é por isso que, diferentemente da primeira fase do banquete, em que os quatro membros foram devorados e os artelhos separados para serem triturados e misturados a cortes menos nobres (FISHER, 2113, p. 67), a tarefa de consumar esta fase fica a cargo de alguns iniciados que conhecem a arte de descostelar um corpo humano sem que, ao final do intercurso, sobrem pequenas farpas das costelas misturadas aos cortes mais nobres presentes no interior do tronco (Ibid., p. 82). As costelas flutuantes, aquelas mais próximas do baço, são cuidadosamente retiradas por esses especialistas do descostelamento, e postas para secar, pois servirão para enfeites eróticos femininos [Supõe-se, inclusive, que há entre os homens lenda que reza mais ou menos o seguinte: com quanto mais costelas for presenteada uma mulher, mais desejada ela é, pois mais presentes eróticos ganhou, ou seja, seus serviços sexuais são supostos, pagos ou medidos pela quantidade de costelas humanas com que ela encima seu dossel. Crawford (op. Cit.) sugere que tal lenda tenha origem no costume de tribos asiáticas estudadas desde dois séculos, o que validaria sua aplicação e sua consideração teórica no presente ensaio]. Terminado o descostelamento, a fúria alcança níveis estapafúrdios, pois o populacho ataca a carcaça sem piedade. Segundo Cosme (2112, p. 201), os intestinos certamente serão retirados, desenfezados e lavados para mais tarde servirem de suporte a grandes embutidos, preenchidos com alguns cortes indesejados que depois de besuntados com a gordura existente sob a pele e temperados com ervas da região, são ali introduzidos, e o embutido daí resultante é posto para cozer no bafo por duas semanas, na sombra. O problema de se retirar os intestinos antes de tudo é que, por estarem espalhados por todo o tronco humano, sua retirada provoca uma confusão de órgãos dos diabos: o estômago, muito apreciado por sua carne ao mesmo tempo macia e composta, de sabor característico e digestão difícil (SUKUYAMA, 2111), por vezes, a depender do que a vítima comeu horas antes de seu abate, provoca arrotos frutados no comensal e, por vezes, alguma indisposição; o fígado e o pâncreas, extremamente macios, como já se disse, trazem um sabor mais característico, sanguíneo e forte, à semelhança dos rins que, à sua maneira, trazem um sabor ainda amargo, penetrado pela ureia [há gastrônomos (NORTON, 2048; BISHOP, 2071) que sugerem sua fervura por seis horas para evitar tal sabor indesejado, mas daí apenas decorre que a carne fica a se despedaçar, sem a retirada completa do sabor amargo]; o coração mereceria um capítulo à parte (os mesmos Norton e Bishop já o fizeram com louvor), coisa impossível diante da ligeireza de um texto leve como este, quase crônica, que aqui pretendemos conceber, por isso podemos afirmar, amparados em nossa pesquisa anterior (REUTMAN, 2100), que sua textura lembra a de um estômago, só que acrescida da robustez de um bíceps, já devorado na primeira parte do banquete, como já se sabe, mas que, acrescida a esta característica gastronômica incomparável, igualmente apresenta ao imaginário de quem o devora, por ser o órgão identificado com os sentimentos mais sublimes do ser humano, além do apuro gastronômico citado, a sensação de se estar deglutindo algo como o caráter do devorado (Ibid., p. 52), que certamente será transplantado para o consumidor, e mesclado com o seu próprio; os pulmões são frugais, desde que não tenham sido utilizados por vivente fumante, o que lhe emprestaria extremo amargor que, posto lado a lado com a tal frugalidade da peça, tornaria sua deglutição quase um ato de reconhecimento histórico da evolução do ser humano, reconhecidamente postado na porção superior da conhecida cadeia alimentar. A cabeça (FISHER, 2113, p. 173) é separada da carcaça restante, e cozida naquele caldo sanguíneo que, como dito, já está sendo reduzido pelas anciãs desde o início da solenidade. Os ossos do crânio figuram dissolvidos exatamente três dias depois do início de sua cocção (Idem). Como já adiantado, às peças remanescentes restaria o destino de serem utilizadas em compotas, embutidos e salames de dar água na boca dos consumantes. As unhas são sumariamente descartadas (FISHER, 2113, p. 202) e dadas às crianças, que com elas constroem colares coloridos e brinquedos os mais criativos. Embora isso seja reconhecido como verdade científica desde o século XX, pesquisas datadas do século passado (NORTON, 2048; BISHOP, 2071) afirmam o seu contrário, ou seja, que as unhas compõem um corolário de valoração grastronômica, sendo comparadas ao crânio. Alguns especialistas (SUKUYAMA, 2111; COSME, 2112; FURY, 2104) divergem dessa pesquisa, mesmo validada por estatísticas de empresas tradicionalmente competentes do ramo.


Postado por João Luiz Peçanha Couto
Em 30/4/2015 às 16h16

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