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Domingo,
3/5/2015
Eu fui às touradas de Sevilha
Monica Cotrim
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Tem gente que viaja para descansar ou fugir da rotina. Tem outros que querem conhecer novas culturas, experimentar comidas diferentes, ampliar horizontes. Tirar fotos e comprar um monte de lembrancinhas que espichem o prazer da viagem depois da volta para casa também faz parte da bagagem de qualquer turista. Nada contra. Faço sempre tudo isso, sem culpa nenhuma. Ultimamente, entretanto, tenho notado que a maior riqueza trazida de minhas viagens tem sido, cada vez mais, um olhar renovado para dentro de mim mesma. Em meio às lembranças, fotos e anotações do que foi visto e aprendido longe do meu cotidiano, logo embarco em uma nova viagem, mais rica e profunda, de revisão de meus próprios valores, conhecimentos e certezas.
Sevilha, a bela capital da Andaluzia, no sul da Espanha, provocou um turbilhão dentro de mim. Como qualquer turista, fiquei encantada com a beleza de suas ruas, monumentos, cultura e historia. Como pessoa, entretanto, vivenciei uma pequena surpresa, constrangedora para mim mesma: resolvi assistir a uma tourada na Real Maestranza de Caballería - um espetáculo chocante e decadente, ao qual eu jamais imaginei que fosse capaz de ir. Logo eu, que sempre critiquei quem apreciava e frequentava esse tipo de entretenimento bárbaro, onde a crueldade é aplaudida como uma nobre manifestação artística.
Pois é. Confesso que fui. E fui porque quis, ninguém me forçou.
Tento me justificar de todas as formas. Afinal, sem ter feito planos para isso, calhei de estar em Sevilha bem no meio da semana da Feria de Abril, uma das mais belas festas tradicionais da Europa.
Todos os anos, durante seis dias, Sevilha vira uma festa a céu aberto, com as ruas repletas de homens e mulheres em trajes típicos de cores vistosas e inúmeras charretes puxadas a cavalos por todos os lados. Boa parte do comércio fecha durante a semana. Só quem não tem mesmo jeito de justificar a ausência do batente é que vai trabalhar nesses dias de festa.
Uma das maiores atrações da Feria é a abertura da temporada anual das touradas na mais antiga Plaza de Toros da Espanha. Descubro que ainda há ingressos à venda - que sorte! Encantada com minha boa estrela, nem penso duas vezes: compro logo ingressos para a tourada daquele mesmo dia. Só existem assentos disponíveis no lado do sol, pois os do lado da sombra há muito já foram comprados por aficionados mais previdentes e em geral de alto poder aquisitivo. Nem ligo para isso. Afinal, o simples fato de estar ali naquele dia já é para mim uma grande conquista.
Enquanto cantarolo mentalmente a ária do Toreador da ópera Carmen de Bizet, a fantasia do imaginario coletivo passeia pela minha cabeça. Revejo obras de arte famosas que celebram a dança da morte entre touros e toureiros, produzidas por artistas como Goya, Miró e Picasso.
Na literatura, não faltam elogios à arte da tauromaquia. Heminway escreveu inúmeras páginas entusiasmadas sobre a faina dos toureiros e ainda gabava-se de ter assistido de perto à agonia e morte de cerca de 1500 touros.
O poeta andaluz Federico García Lorca certa vez disse que a tourada era "a festa mais culta que há no mundo". (Como assim, "culta"? Acho o termo exagerado, mas como quem disse isso foi o García Lorca... deixo a estranheza para lá e me concentro na promessa de grandes emoções daquela tarde de sol.)
E o nosso João Cabral de Melo Neto, que viveu treze anos na Espanha, alguns dos quais na sua amada Sevilha, era grande aficionado das touradas. Em um de seus poemas, ele presta homenagem "ao mais asceta" de todos os toureiros, Manolete, que demonstra aos poetas "como domar a explosão com mão serena e contida, sem deixar que se derrame a flor que traz escondida."
Se tantos artistas e intelectuais famosos se confessaram escancaradamente deslumbrados com as touradas, como é que eu poderia resistir ao ambiente festivo de uma Corrida de Touros em Sevilha? É tudo tão colorido e bonito! E os touros? Ah, bem, deixa os touros para lá. Abafo qualquer sentimento de comiseração que eu possa ter para com os animais que irão ser chacinados dali a pouco à minha frente. Eu quero é festa.
Enquanto espero o início das atividades, abro distraidamente o folheto do programa e encontro a lista dos seis touros condenados a morrer naquela tarde. É uma lista bizarra, com o nome e a data do nascimento de cada um (vejo que todos tem entre quatro e cinco anos de idade), bem como a cor da "capa" (ou seja, do pelo do animal), o peso (todos tem mais de 500kg) e o nome da "ganadería" (criador de gado). De repente, por mais que eu tente ignorar aquela obviedade, cada um daqueles touros condenados à morte se transforma num ser vivente, com personalidade e sentimentos proprios.
Aquilo que para mim parecia a promessa de uma bela festa de cores e emoções fortes rapidamente se transforma num espetáculo deprimente. Logo de início, um tristonho show de abertura se arrrasta pela areia, ao som de cornetas. Vejo desfilar um grupo de cavalos e toureiros presunçosos, engalanados como se ainda estivessem na época da Inquisição espanhola. A Maestranza se transforma num teatro dantesco, insuportavelmente falso e cruel.
De repente, surge o primeiro touro, correndo desorientado pela arena. Os ajudantes do toureiro principal iniciam seu bailado de capas coloridas, numa luta desigual contra aquele animal já condenado. Tudo parece obedecer a uma coreografia rigorosamente ensaiada. Depois da dança das capas, entra o picador, montado em um cavalo de olhos vendados e orelhas tapadas. Tenho a impressão de que o cavalo está também drogado, pois ele não foge das violentas chifradas do touro, aguentando o tranco com um estoicismo nada natural. A missão do picador é desferir uma série de estocadas no touro, para enfraquecê-lo bem, antes do toureiro entrar em cena. Em seguida, é com enorme ferocidade que o toureiro espeta banderilhas no lombo do touro já exausto. A essas alturas, o sangue escorre abundantemente pelos dois lados do corpo do animal. Depois de assistir à estocada fatal do Matador, quando o touro se esvai em sangue, completamente humilhado e rendido, estou decidida: não quero mais ver o resto do espetáculo. Já vi o suficiente.
Mas, para mim, o momento mais surpreendente de toda a tourada acontece dentro de mim mesma: em vez de deixar a arena, decido ficar mais tempo ali, para assistir ao segundo número. E depois ao terceiro. E ainda ao quarto. Não me peçam para explicar. É complicado compreender os descaminhos da mente humana. Até agora estou tentando entender por que motivo não deixei aquela arena logo de uma vez. Finalmente, quando só faltavam os dois últimos touros do programa, consigo me levantar e ir embora dali.
Descendo as escadas do Maestranza, vejo um grupo de jovens indianos (ou serão paquistaneses?) que, como eu, também resolvem sair antes do final do espetáculo. Por alguns segundos nossos olhares turistas se cruzam, meio envergonhados. Alguém poderia nos explicar o que é que a gente tinha ido fazer ali?
Grandes escritores podem dizer o que quiserem, pintores célebres podem produzir obras-primas inesquecíveis, os melhores músicos podem compor quantas belas canções desejarem sobre a dança da morte entre touros e toureiros. Todos tem o direito de pensar o que quiserem. Mas de uma coisa agora estou certa: tourada não é nem arte nem cultura.
Agora posso dizer a todo o mundo que já fui a uma tourada na vida. Sim, e daí? Digo isso com uma certa vergonha por não ter refletido melhor antes de comprar aqueles ingressos, movida por um entusiasmo de turista infantil. Mas também não me penitencio por isto, apenas observo. Depois desta tarde no Maestranza de Sevilha, acho que agora me conheço um pouco melhor. Touradas, nunca mais.
E constato, desapaixonada e sem alarde: eu fui às touradas de Sevilha. Sem parará-tim-buns.
Postado por Monica Cotrim
Em
3/5/2015 às 12h02
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