Para Paulo Carvalho
“O poema sai de mim ou eu saio da vida.” - Alberto da Cunha Melo
Acordei perfumada. Os olhos saltaram da cama antes da carne, ainda recoberta em fragmentos inconclusos do sonhar. O mundo não me enviou seus pesares, nesta manhã. O torcicolo permanece dormindo, depois de séculos a torturar-me nessa dor vã e mesquinha. Hoje.
Tenho um samba antigo cantarolando entre os dedos, frenéticos para tocar o infinito. A dor é apenas uma melodia mais bela, e não triste. Uma estranha vontade de ser feliz inunda meus pulmões. Hoje.
Nenhuma conta bancária assustou-me, encostada na porta de casa. E o improvável gris que acometeu o céu, em pleno janeiro, não me é incômodo. Como se estivesse protegida, preparada para enfrentar os dragões. No entanto, no lugar das armaduras, há um corpo nu e silencioso que me contorna. Hoje.
Meu coração está calmo, e extasiado, e único, como alvoreceres azuis de Lisboa, quando a vida podia doer mais do que um fado. O despertador não tocou e amanheci sozinha. Hoje.
Sinto os aromas escarlates do Recife, em pleno carnaval, inebriando as nuances dos meus olhos, ao celebrarem o mar de Boa Viagem. Esqueci-me de tomar o antidepressivo, antipoema. E não há instante de tédio que não possa ser colorido em versos. Hoje.
Não me atrasei para a consulta com o solitário diretor da multinacional, embora o relógio tenha sido negligenciado. E eu pude ver em seu sorriso velho uma centelha de futuro, faiscante, faiscando uma promessa de viver em plenitude. Hoje, as promessas, ilusões da traição dissoluta, são bem vindas.
O crescimento deixou de ser a perda do brincar para assentar suas raízes no mistério. Por que, meu Deus, por que hoje?
Porque hoje é dia de Poesia. Porque hoje os uniformes foram suspensos dos hospícios e não há Gardenal para ninguém. As amarras foram esfaceladas, timidamente, já que as camisas de força não possuem força alguma.
Não há sustos apavorando os passageiros enfileirados, esperando a desesperança dar sossego. Porque não há sustos, no dia de hoje. Não há de haver nenhuma brusca ruptura entre o imaginado e o real – esta cisão cruel que nos ameaça.
Alguns acabarão a madrugada reinventando seus afetos, possuídos por uma vontade alheia aos pensamentos bélicos de realidade. Uns poucos seguirão seus caminhos, sem farpas de angústia. Outros sentirão a necessidade de psicografar suas epifanias malditas, em homenagem ao espírito calado pelas rotinas. Mas, por que só hoje?
Eu vou sentir o tremor primeiro de quem escreve. Sentada na iminência abissal que verticaliza o instante. Eu serei a testemunha clarividente desta noite irreversível. Eu ouvirei os poros dos presentes, e dos ausentes que estão sendo contemplados em segredo cósmico. O arrepio é a alma reconhecendo-se no mundo.
Todavia, nenhuma alegria é revisitável. Todo desassossego traz em si a reminiscência uterina de ter um dia pertencido. E sentirei saudade, o não permanecer mais íntimo de todos os sentimentos. E não a quero. Nunca mais.
Há em mim um enternecimento tão poderoso que não posso mais aceitar as condições efêmeras desse existir. Uma inquietude visceral, não esboçada em papéis violentados por releituras inúteis. Uma memória de outros domingos que não foram, ainda, rasgados pelo calendário.
Lá está a poesia cotidiana.
Nas esquinas difusas, sepulta em distrações corriqueiras. Nos adeuses dos homens engolidos por abstenções econômicas. Em milímetros de pele esquecidos na íris do antigo amor. Órfãos do desconhecido que somos, à espera do impossível retorno.
Por uma vida genuinamente literária, deixo os devaneios cravarem suas bandeiras no meu ser. E peço licença poética para atravessar todas as tempestades. Pois não há verbo para saudade. E nem dia para a Poesia.