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Sexta-feira,
15/5/2015
Na escola, o caminho proibido
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Me lembram aquela escola estes versos de Guilherme de Almeida: "Tudo muda, tudo passa / Neste mundo de ilusão; / Vai para o céu a fumaça, / Fica na terra o carvão". Do tudo que passa, eu queria que algo mudasse rápido. Que mudasse mesmo! Ou por magia ou pelas mãos de alguém. Na escola, eu gostava era de ver o mágico. A vida surgindo por encantamento. Da hora do recreio, eu também gostava.Chicotinho queimado, um dois três.
Sob animais de nuvem, de manhã cedinho quando chegava o inverno, a neblina encobrindo a rua. Portão de ferro, lanças pro ar. Muro alto. Pequeno jardim. Florezinhas? Quase nenhuma. Três degraus e o saguão do prédio. Escadaria. Salas de aula. Biblioteca. Auditório.
Naquele caminho estreito entre o muro alto e a parede lateral do prédio, ninguém podia passar: "De castigo depois da hora da saída!". Cara-de-buldogue e bruxa-sem-vassoura, duas inspetoras a postos. Bem que me lembro do nome delas! Por que não podíamos ir lá? Nem chegar perto? Eu imaginava o mundo inteiro naquele lugar. Jardins suspensos. Cachoeira. Gato de Botas. Fosso d'água. Vendedor de biscoito. Campo de futebol. Chicletes de bolas.
Quinta-feira era dia de Redação. Começava a aula. A professora colocava no cavalete o álbum de figuras. Gansos correndo pelo quintal. Do lado da casa, aquela mangueira muito mais alta que o telhado. Duas crianças brincando. Exercício: "Descrever a gravura, em cinco frases ligadas pelo sentido". Era uma vez uma lagarta azul que tecia o cachecol do mar. O cachecol era azulzinho feito o mar. E todo pintado de barquinhos cor de coral. Dentro dos barquinhos moravam cavalos-marinhos, conchinhas e estrelas do mar. E os filhotinhos de ganso que são amarelinhos.
Com aquela estória, a professora ficava zangada. "Você não descreveu o que viu, menina! Nada disso está na gravura". Está, sim. Tudo está na gravura, Dona Elvira. A lagarta azul mora dentro das folhas da goiabeira atrás da casa. O novelo de lã pro cachecol está guardado atrás do mar. E o mar fica no porão. Ele dorme numa cama de algodão doce..
Eu até que gostava da escola quando íamos à biblioteca. Mas que pena! Não dava pra ler o livro todo. Um dia eu ainda ia escrever livros. Então, eu contava o tempo pra chegar o dia do mágico. "Quem trouxe dinheiro pro ingresso?", cara-de-buldogue perguntava. "Duas filas. Vocês pro auditório. Os outros pro pátio".
"Atenção. Atenção!". De dento da cartola do Osório, três coelhinhos de verdade emergiam cheirando o ar. Da caixa de papelão, saíam pombinhas brancas batendo asas. Ao abrir o guarda-chuva preto, Osório tirava das varetas muitos lenços. Muitos lenços coloridos: "Você, menino, vem até aqui. Atenção. Muita atenção!". E das orelhas do aprendiz de magia escorriam cascatas de moedas. Será que não dava pra pagar a entrada das crianças que ficaram lá embaixo?
Entre fumaça e carvão, naquele tempo eu não sabia por que alguns alunos não tinham dinheiro para ver o mágico. Isso aquela escola não me ensinou ─ mas acabei aprendendo em outro lugar. Até hoje não sei muitas coisas. Não sei por que a maioria das pessoas não gosta de mágica. Será que elas têm medo que o mundo mude pra sempre?
Até hoje não sei onde vai dar aquele caminho entre o muro alto e a parede da escola.Mas todo dia vou lá pra rever a lagarta azul tecendo o cachecol do mar. Ou bordando na casca das palmeiras as escamas dos cavalos-marinhos que moram nos barquinhos.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
15/5/2015 às 09h34
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