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Domingo,
17/5/2015
A riqueza dos livros que não entendi
Guilherme Carvalhal
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Em seu livro Como Falar dos Livros que Não Lemos, o psicólogo e ensaísta francês Pierre Bayard propõe uma abordagem diferenciada sobre a relação das pessoas com os livros. Suas ideias nasceram de uma realidade notada por ele em seu consultório, ao ouvir as dificuldades de seus pacientes em ler. O que ele percebeu era que literatura não era sinônimo de felicidade ou prazer, mas de frustração e dificuldade. Dessas análises ele foi aprimorando sua visão da relação das pessoas com os livros, até resultar na tese que defende em seu livro.
Sua ideia consiste na criação de uma mancha cinzenta entre o ato de ler e o de não ler um livro. Por exemplo, se uma pessoa nunca leu um livro de Heidegger, mas leu artigos e livros a respeito de seu pensamento e conhece bastante suas teorias, essa pessoa leu ou não leu? Se alguém leu um livro, mas esqueceu ou não entendeu, ela realmente leu?
Na minha lista de livros lidos, há alguns volumes que eu não entendi. São obras com linguagem extremamente moderna, que acabam confundindo o leitor, ou então grandes épicos que me deixaram perdido em meio a seu enredo.
O maior caso dessa história foi com A Montanha Mágica, de Thomas Man. Desse livro, tenho recordações meio vagas, como longos diálogos com propostas filosóficas. Das lembranças mais concretas estão o personagem principal alegando não conseguir imaginar a existência humana sem charutos e um momento de mediunismo no qual um poeta morto recita seus versos.
Outra obra dentro dos não entendidos foi O Som e a Fúria, de William Faulkner. As duas primeiras partes do livro, que narra a decadência da família Compson, são escritas através do fluxo mental dos personagens. O primeiro é Benjy, que é autista. O segundo é Quentin, irmão de Benjy, que imerso em uma confusão mental e emocional tem um fluxo de pensamentos ainda mais confuso do que o primeiro.
A obra que gera dificuldades a mim e à grande maioria de quem tenta ler é Ulisses, de James Joyce. Um marco da literatura moderna, essa obra é digna de grupos de discussão que tentam entendê-lo e decifrá-lo para o restante da humanidade. Sua obra inspirada em Homero tenta trazer a Odisseia para os tempos modernos, reencarnando o herói grego na pele de Leopold Bloom, uma pessoa tão comum quanto as que cruzamos pelas ruas no dia a dia. A obra é repleta de jogos linguísticos e compreendê-la exige uma grandiosa dedicação.
Existe uma gratidão a se prestar aos livros que não entendemos. Não digo que foram os melhores que li na minha vida, mas são justamente obras desse tipo que nos levam a sair do conforto mental e a nos agitarmos para entender. Elas nos alavancam a patamares diferentes, enchendo-nos mais de dúvidas do que certezas e o esforço a que nos leva é uma das melhores formas de nos aperfeiçoarmos culturalmente.
Quando li Ulisses, eu passava pelas páginas cheio de dúvidas quanto a seus significados. Algumas situações dava para pescar, como o arremesso de uma lata de biscoito representando a fuga dos ciclopes da Odisseia, ou o ambiente do prostíbulo representando a ilha de Circe. No mais, é uma tentativa inútil de compreensão, pois para entender é preciso pesquisar artigos a respeito da obra, não se limitando apenas ao livro.
Os livros não entendidos, ou aqueles que nos custamos a entender, criam uma experiência de leitura diferenciada ao nos forçar a compreensão. Esse é o livro que tira o leitor da zona de conforto e da mera passividade, que o obriga a ler resenhas para melhor entender, que o leva a voltar as páginas, a passar vários momentos refletindo a respeito do que leu. Provavelmente é um livro que venha formar mais do que aquele lido rapidamente em uma única levada. Mesmo com todas as dúvidas que restam após a leitura, o livro não entendido é uma pérola por causa do embate que ele proporciona ao leitor que, mesmo saindo derrotado, acaba ganhando.
Postado por Guilherme Carvalhal
Em
17/5/2015 às 21h40
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