BLOGS
>>> Posts
Quarta-feira,
20/5/2015
#carpacciosdefridaenquantoselfier
João Luiz Peçanha Couto
+ de 2700 Acessos
Elfos, selfs, selfinas, sereias, serinas: palavras que se conjugam diferentes de verbos, todas a ver com o que está fora mas se tramando com o dentro, reais e mitos, gasosas, enevoadas, ao mesmo tempo flutuantes como todo verbo, que confirmem os ulisses por aí espalhados. Os pretéritos não chegam ao perfeito porque Elisa usa uma Sony digital com boas lentes, zoom ótico potente de 250x, afanada temporariamente do padrasto, mas não conhece seus recursos. Corpo coalhado de tatuagens, flana desnuda do quarto no final do corredor até o banheiro antigo de azulejos azulclarinhos, posta-se à frente do bisotado gigantesco que era da bisavó paterna de sua mãe e clica. A imagem brota da pequena tela e denuncia que a dona do corpo nu fotografado mede perto dos 1,65m e não pesa mais do que 45, quem sabe a imagem daquilo que chamam de estética da precariedade, cartilagens e ossos tentando virem para a superfície do mundo real. Ossos e cartilagens ousam mais que eu, compartilhou enc(l)a(u)sulada. Lembrou-se das aulas que iniciou na graduação. Lá descobriu que, de acordo com a cromodinâmica quântica, os quarks podem se formar ligados em pares ou em trincas. Não imaginou a razão de precisar de saber daquilo, mas suspeitou-se quântica o bastante para prescindir de pares ou trincas. Flashmob de uma só, vê-se no lcd da Sony mostrando as faces que deseja, zapping de cliques: a curva de uma nádega em que repousa um dragão a despejar matizes de verde com labaredas vermelaranjas vomitadas da boca escancarada; o repouso inferior de um seio esquerdo promete brancuras fantasiosamente imaculadas e curtidas masculinas, eventualmente preteridas (o verbo "preterir" deve ter alguma ligação com pretérito, ela se pergunta quando ouve a voz rouca do narrador narrando) pelas femininas, brancura conspurcada por uma fênix sem preenchimento, só riscos tatuados se lançando no vazio, do nada a um mamilo, rascunho de bicho mitológico serpenteando-lhe a parte do corpo de que mais gosta e acaricia, fazendo bojos mornos com a mão, supostamente moldando curvas e cumes e mãos outras ali imaginadas (pensando bem, "preterir", se ligado a passado, tem alguma lógica: passado é tudo aquilo que preferimos deixar no passado, quem sabe); a curva fechada de um tornozelo em que se espalham flores de cerejeiras em tons de rosa e lilás, presente de amigo oculto do ex-namorado de seu pai. Tira as fotos, arqueóloga, como quem tira lascas, carpaccios da alma, a tela de três polegadas multiplicando-a em ângulos, geometria pós-cartesiana, como os totens gigantescos da ilha de Páscoa, as esculturas radiculares daquele artista plástico de Oslo de quem se esqueceu o nome, os romances daquele escritor espanhol que lhe tiraram os pés do chão, os quadros daquela Frida que não cansa de se pintar, a cabeça de uma estátua de Santo Antônio abandonada numa cidadezinha perdida nas profundas do Ceará, a partícula de deus que não dura mais que um bilissegundo, tudo isso está em cada clique, ela pensa, como o gesto que se forma na intenção, as vidas que poderia ter vivido, as mãos trançadas de Escher, os penduricalhos aparentemente inexplicáveis de Bispo do Rosário, as esfinges de palavras de Rodrigo Leão, a loucura de Foucault, um labirinto que se basta desde que alguém se perca nele. É como escutar vozes de mortos: um deslocamento, uma impossibilidade, tortuosidades do tempo, figurações no espaço, assombro de silêncios, um sopro, o último, palavra, letra, teta, buraco negro que suga tudo à volta e se resume a uma figura indiscernível, colorida, descansando para sempre esquecida num livro escolar distribuído pelo governo a crianças que, de semelhantes com ela, Elisa, só têm os mesmos ossos e cartilagens borboleteando por baixo da pele emaciada. Enfim sorri, orgulhosa e plenamente compartilhada, pupilas regozijadas com as curtidas multiplicando-se feito partículas quânticas na tela do tablet, lido enquanto flana, ainda nua, de volta ao casulo do fim do corredor.
Curtir (clique aqui).
Postado por João Luiz Peçanha Couto
Em
20/5/2015 às 13h34
Ative seu Blog no Digestivo Cultural!
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|