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Domingo,
31/5/2015
Bala perdida
Anchieta Rocha
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O dia mais bonito da minha vida foi quando Getúlio Vargas deu um tiro no peito. Triste e bonito.
Eu tinha acabado de fazer as entregas do armazém, estava passando em casa pra pegar os cadernos, quando fiquei sabendo que o presidente foi encontrado morto no Catete. O meu irmão mais velho dizia pra mamãe e pra minha tia que o Brasil ia mergulhar num negócio que eu não sabia o que era e mais uma porção de coisa que eu não entendia.
Aí começou o falatório no rádio, toda hora o Repórter Esso, eles tocando música triste, igual às que a gente ouvia na igreja.
Fiquei chateado por causa dos vizinhos que gostavam do PTB e do Getúlio. Um homem que trabalhava na mina de ouro de Nova Lima nunca mais ia ouvir os discursos do presidente no rádio. Toda vez que ele falava "trabalhadores do Brasil", o pelo do braço arrepiava, contou pro meu irmão.
Mas gostei quando disseram que não ia ter aula.
Depois fiquei pensando - um homem daquele, todo lugar que ia o povo batia palma, tinha um carro bonito, morava num palácio rodeado de jardim — como é que pode, dar um tiro no peito, acabar com a vida duma hora pra outra? Pior ainda, sem poder receber a encomendação na igreja, a família numa tristeza grande, nem uma água benta? Sabia dessas coisas porque eu era coroinha e ia com o Padre Américo em todos os velórios, às vezes até no cemitério, num carro chique que puxava todos os outros carros, todo importante, mexendo com os meninos, sempre que ele enfiava a cara no breviário.
Uma vez um vizinho bebeu formicida por causa duma mulher que não ligava pra ele. Ela gostava dum cara magrelo, metido a galã, que cantava músicas de Gregório Barros na Rádio Inconfidência. A sacana usava o coitado pra fazer ciúme no cantor. Com o tempo ele foi ficando murcho, até que um dia não aguentou e acabou com a vida. Pra mãe deixou uma carta pedindo perdão e pra mulher uma folha seca dentro duns versos.
A morte do Getúlio parou a cidade. O comércio baixou as portas e a rua encheu de gente. As pessoas perguntavam o que seria do país, falavam que o Congresso não servia pra nada e uma porção de coisa.
O coração do Getúlio parou de bater naquele dia. O meu bateu mais forte.
No outro lado da rua, ela apareceu. Não vi mais nada. Numa hora dessa eu achava que tinha umas coisas de doido. Se tivesse um cara do meu tamanho por perto eu dava porrada pra chamar sua atenção, ou de repente um carro me pegasse — não pra valer —, ela aflita segurando a minha cabeça no colo, eu imaginava.
Quando vi estava do meu lado. Tão perto que senti o cheiro do seu cabelo. A noite ficou mais bonita. Eu acho que falei uma porção de besteira, mas deve ter gostado porque ficamos conversando um tempão.
O friozinho de agosto chegou e todo mundo levou as cadeiras pra dentro das casas.
Eles enterraram o Getúlio, a vida voltou ao normal e ela desapareceu.
Comecei a passar perto de onde morava e na porta de sua escola, tinha alguma esperança. Depois de algum tempo desisti.
O tempo passou. Mas a bala que parou o coração do Getúlio naquele dia dói no meu peito até hoje.
Postado por Anchieta Rocha
Em
31/5/2015 às 19h40
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