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Domingo,
7/6/2015
O teatro e a vida: convergências
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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De Biologia nada entendo. No jardim, pressinto que no enxerto das rosas amarelas e vermelhas convergem invisíveis mãos replantando as cores. Convergências acompanham o existir. O afeto. O encontro. O olhar. Primeiro ato: a sedução do olhar é uma sedução consentida. Jacob era economista e herdara do pai uma loja de roupas femininas em Copacabana. Escolhi algumas blusas. Gostei da vitrine. Imaginei bastidores. Camarim. Desejei que a loja fosse um teatro. A calça jeans precisava apertar na cintura. "Tereza, dá um jeitinho pra cliente". E as mãos mágicas da costureira iam desenhando alinhavos de alfinete.
Enquanto a moça marcava o ajuste, o olhar de Jacob iluminava a fresta aberta entre a cortina e a parede. Tereza saiu. Peguei minha roupa no cabide. Do balcão, ele continuou me olhando. Cabelos negros e anelados. Quando dobro aquela esquina, me lembro daquele dia. O jeans fica pronto de tarde, posso entregar na sua casa?
Eu morava no prédio ao lado. Na saída e na volta do trabalho, eu passava pela loja. Um dia saímos pra almoçar na Tarantella. Saia preta e blusa estampada criam convergências no vestir e no despir. Ao abraço forte, pulseiras e colares arranham a pele. Falamos de política e de teatro. O Interrogatório, tínhamos assistido naquela semana. O regime continua, dizia o ator. Não me lembro quem dirigia. Mudarás o mundo? Meu Deus, quanto tempo! Nunca mais nos encontramos. E a peça esteve em cartaz em São Paulo, em 2010.
Em 2009 Mercedes Sosa partiu. Segundo ato: Mag lhe dedicou memorável texto. Escrevi então meu Volver a los diecisiete. Retroceder no tempo, às vezes quero. Ruas calmas. Madrugada na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Livrarias abertas. Um dia vi o Juca de Oliveira na Entrelivros. Assim como no palco, Jacob e eu caminhando na Barra. Poucos prédios. Sabíamos que Peter Weiss estava certo. O regime continuava. De vários modos, continuava camuflado. E continua. O texto de Peter Weiss transcendeu guerras e lugares.
E hoje, outras convergências. El dia que me quieras: motivo de poesia. Sobre o amor, muitos se aventuraram. Poema. Romance. E o conto escrito pelo Laércio: O que foi o encontro? O que não foi? O que poderia ter sido.
Sobre o amor, todos temos algo em comum. Deslembranças. Que fosse de outro jeito! Ou Amarcord.
O mundo mudou e não mudou. Terceiro ato: ninguém imaginava o micro. Nem retrocessos. O regime continua. Muda de cara. Usa máscara. Falsifica o cenário. Como no teatro, no poema "O grande desastre aéreo de ontem", Jorge de Lima antecipou cenas de hoje: "Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol". Diante das catástrofes, há os que não enxergam a morte. Por milagre, só os cegos enxergam. E desde antes, desde muito antes, Tirésias conhecia o presente, o passado e o futuro.
Pelas ruas há inquietude. Por milagre, só o coxo caminha rápido. E o mudo cantarola. Nos supermercados, a fome se embrenha nas mercadorias de luxo. Dentro dos esgotos, a violência escorre entre odores fétidos. Aos pés das nuvens, existe guerra. A TV engole a vida. Dá cores à morte. Ao telefone, calavam-se vozes. Recoberto de plástico, o fio de metal enforcava inocentes. Entanto, ninguém mais usa telefone fixo. Tudo agora cabe no bolso ou na bolsa. E tudo se devota ao esquecimento. Basta clicar.
Eu e Jacob fomos várias vezes ao Arena. O rei da vela. Prometeu acorrentado. Antígona. No teatro, criamos nosso Universo. No palco, a vida se torna desejo. A vida é sonho. Personagens são eternos. No cenário, o amor não dobra a esquina. Cortinas abertas, os gatos atravessam tetos incandescentes. E somos radicais. Na primeira fala, libertamos o prisioneiro. Não ganhamos a guerra. Somos mais radicais: na segunda cena, extinguimos a guerra.
E do amor? No primeiro ato, a marcação do encontro. No segundo ato, a marcação do respirar. Convergências do olhar e das mãos.
Em meus escritos, convergem temas. Teatro. Música. Cinema. Imagens. O amor? Último ato: acontecimentos daquela época. E a imagem de Jacob me olhando quando eu trocava de roupa. As feministas não usavam sutiã. No espelho e no amor, convergem umbigos e púbis.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
7/6/2015 às 18h21
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