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Segunda-feira,
15/6/2015
No brechó
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Casacão xadrez. Sapato bem alto. Blusa preta. Na gola, um camafeu. Augusta. Elisa. Helena. Do nome, não me lembro. Estudava Jornalismo. Segura de si. Independente. Desafiava os brilhos e convenções dos Anos Dourados. Podia ir ao cinema com o namorado e voltar pra casa depois das dez. "Existencialista / (com toda razão !), / Só faz o que manda / O seu coração", dizia antiga marchinha.
Eu morria de inveja das pessoas livres. Adolescente, nas reportagens da Manchete eu me via fantasiada de cigana nos bailes de carnaval. Cigana pode ir a qualquer lugar, pensava eu. A vida, a música e a errância dos ciganos até hoje me fascinam.
Outro dia um fragmento da adolescência intrometeu-se no meu quarto: Na gaveta da cômoda, / rendas, lenços, perfumes. / E esse camafeu. // Sobre fundo rosado, / ofegante respirar de mulher / ao repouso da festa. E me encontrei no memorial daquela noite. Vestido branco. Cinto cor-de-rosa. O broche da minha madrinha. Ela me emprestou para usar no meu baile de formatura do Curso Normal. Perfil de tátil distância, a imagem gravada no camafeu ressurge em minha vida, tal se fosse retrato de pessoa muito próxima que jamais conheci. Retrato do tempo em carne viva.
Bem antes, brincadeira de amarelinha. Ali, o céu. Eu pulava para ultrapassar a casa assinalada. Não podia pisar na linha. Se pisasse, perdia o jogo. Mas ganhava o recomeço da brincadeira. Lá pelos idos de 1970, foi assim com Elliott Gould (Harry Bailey) no filme Getting straight ─ À procura da verdade ─ título traduzido. Literalmente, o personagem virou a mesa. Gostei. Já fiz isso muitas vezes.
Voltando às perdas, um dia perdeu-se de mim aquele anelzinho de monograma. Foi no Jardim de Alá. Dei uma volta. Nada. Dei meia volta. Só areia. Depois, uma concha. Dei outra volta. E encontrei o anel. Não conheço ninguém que tenha perdido anel na areia e que tenha encontrado. Foi bom ter dado a volta.
Conheço gente que, em casa, perde caneta, lapiseira, chaves. Depois, por acaso, encontra. Conheço pessoas que perdem tudo na rua. Fica pra lá. Perdi meu lenço indiano. Esqueci no táxi o livro de Lógica. Na vida, muitos objetos se afastaram de mim. Por algumas perdas, dou Graças a Deus! Por outras, até choro. Por isso não tiro da estante o leãozinho de lalique que pertenceu a meu pai.
Ontem eu e Mauro nos encontramos num brechó: "Esta peça parece com você", me disse ele. Olhei em direção à vitrine. Emoldurado em metal. Base de marfim. Delicado perfil de mulher. Traços de frágil sonolência. Igual ao camafeu da minha madrinha.
Helena. Elisa. Augusta. Flora. Pele morena, batom e ruge rosa-pêssego. Eu queria ser igual àquela moça. Mas não sei quem era ela. Eneida. Maria Clara. E a memória daquela personagem que podia sair de noite e voltar depois das dez. Era o primeiro passo para ir mais longe.
Com patas de camelo a percorrer desertos ou asas de besouro a percorrer a transparência da vidraça, a liberdade sempre me atraiu. A vida, a música e a errância dos ciganos até hoje me fascinam.
Pura invenção minha o broche na gola do casaco daquela moça. O anel que, no Jardim de Alá, perdi e encontrei, um dia se afastou de mim para sempre. Sei e não sei onde está. Ficou na memória do esquecimento. Há quem diga que "está nos anéis de Saturno". Entanto, em meus guardados, falta uma peça que vivo procurando.
Reinicio a arrumação do quarto. Mudo tudo de lugar. Nas gavetas, esse cheiro de sândalo perfumando as roupas. Arrumar gavetas é parecido com virar a mesa. Naquele filme, À procura da verdade, foi assim com o personagem. Ele só não arrumou as gavetas. Mas virou a mesa. Gostei. Já fiz isso muitas vezes.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
15/6/2015 às 13h36
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