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Domingo,
21/6/2015
A entrega das compras
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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O fato me lembrou "O Almocreve" de Machado de Assis. Ao ser salvo de um acidente, o personagem do conto doaria uma moeda de ouro ao seu benfeitor. Passado o susto, pensou em dar uma moeda de prata. Ao fim do caminho, entregou-lhe só uma moeda de cobre. Assim é a cidade. Assim é o mundo.
A cidade me atropela. Acontece o mesmo com o interior. O tempo se reserva ao instante. Confunde-me a idade das coisas infinitas. O cotidiano também. Eu ia até mandar uma carta para a Folha pra denunciar exploração de menores. Às vezes quero salvar o mundo. E não sei por onde começar. Às vezes sei. Por isso de vez em quando viro a mesa.
Era dia santo. Me disse o gerente do supermercado que um carregador podia fazer a entrega mediante pagamento de uma taxa. Era José o nome do rapaz. Combinei o preço. Iria eu pra casa a pé e ele de triciclo levaria as sacolas de compras. Batata. Açúcar. Café. Plantas. No conjunto, um peso enorme. Na porta do supermercado, José esperava para seguir comigo. Mas cadê o triciclo? Adolescente magrinho. Sotaque nordestino. E forças além das suas forças pelas ruas esburacadas. Com o feriado foram-se para ele as comodidades da entrega anunciada pelo gerente. Nada de triciclo. Estava lá o carrinho velho. Enferrujado. Rodas emperradas.
Eu ia do lado dele. Calçamento desnivelado. Água empoçada. Entre solavancos e tropeços, José suspendia o carrinho para subir e descer o meio-fio. Vou pagar o dobro do combinado, pensei. E vou escrever pro Ratinho pra denunciar as péssimas condições de trabalho naquele supermercado. Suando a mais não poder, José cumpria sua tarefa. Tantas ruas, meu Deus! Marquês do Paraná. Cruz Lima. Fernando Osório. As ruas iam ficando para trás. Atravessamos a Paissandu, a Barão do Flamengo. Indiferentes ao cansaço do José, as esquinas iam passando por nós.
Chegando ao calçadão da Praia do Flamengo, o carrinho rangia sobre as pedras portuguesas. Pensando bem, José merecia o triplo do que fora combinado. E vou mandar carta também pro Silvio Santos, denunciando o supermercado.
Chaves na mão, ao me virar pra avisar que minha rua era a próxima, cadê o carrinho? Olhei pra trás. Em vez do José, um homem vestido de cinza empurrava uma padiola com um caixão. É o José, me disse o padioleiro. Esfreguei os olhos. O inferno? O supermercado era uma dependência dele. Dentro do esquife balançando pela calçada, caminhava José, quem sabe pro céu? Eu, que morro de medo de ir a enterro, queria fugir pra qualquer lugar. Mas minhas pernas me prendiam àquela cena. Continuei seguindo o cortejo.
Chegando ao meu prédio, o padioleiro parou. Meu medo aumentou.Vou entrar correndo na portaria e me trancar em casa. Eu queria gritar. Não consegui. O portão do edifício já estava aberto. E o porteiro ajudou o rapaz a levar as compras até o elevador. José subiu com as bolsas. E me ocorreu uma charge do Henfil, em que a Graúna, vendo o Zeferino reclamar de uma padiola com carga pesada, dizia algo mais ou menos assim: "Padioleiro não tem que reclamar das deficiências do sistema. Seu papel é padiolar".
Pensando bem, José merecia o quádruplo do combinado. E eu ia fazer denúncia e não seria anônima. Eu ia pedir ao Faustão pra contar tudo. Ia ser em audiência global.
Ao receber as compras, paguei um pouco mais pelo serviço. Mas não chegou ao dobro.
No supermercado, outra entrega esperava o José.
Guardei as compras. E fui ao Lamas tomar um café.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
21/6/2015 às 18h07
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