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Domingo,
28/6/2015
De volta ao brechó
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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O tempo. Outra vez o tempo. Me disseram que só de 27 em 27 anos acontecem grandes aproximações de Marte. No telescópio, parecia uma estrela fosca. Olhei na luneta. E descobri que Marte é uma romã. Naquela noite houve uma conferência sobre viagens interplanetárias. E o protoplasma congelava sei lá a que temperatura. E tinha ainda a questão da microgravidade.
Helena e o noivo estavam no auditório. Helena? Seu nome eu nunca soube. Eu queria ser igual a ela. Ruge e batom rosa escuro. Mantô xadrez. Blusa preta. Sapatos bem altos. Naquele dia, estava de vestido azul. Livre para sair. Voltar. Ou não voltar.
A liberdade me fascinava. Sempre me atraiu a vida cigana, repito. A vida errante. Escrever é parecido. Posso ir a qualquer lugar. Voltar. Não voltar. Pisar na calçada e nas nuvens ao mesmo tempo.
Naquele dia, observamos a Lua e Saturno. Eu me lembro de tudo. Dos anéis de Saturno jorravam luzes de intenso verde-esmeralda, que se transmutava como se fosse a pele de um camaleão. Revelando ousado hibridismo de pelos e escamas, acordava do sonho esse lagarto furta-cor. Saturno cavalgando hastes, ornada crista de avencas, atravessando séculos e espelhos."Efeito de refração" ─ me disseram.Efeito de refração coisa nenhuma. O que existe é o que vejo. Ou o que sinto. Ou invento. Sobre o tempo nada sei. Mas posso inventar. No brechó, os objetos existem. Mesmo assim invento. Vitrine. Camafeu. Xícara. Óculos. Fotografia. Gravura.
De volta ao brechó, bisbilhotei a prateleira de DVDs. Amarcord e a música de Nino Rota. No cabide ao lado, o vestido vermelho que a Gradisca usava no filme. Personagem não morre. Lá está ela agora num palácio aguardando o amor, enquanto Fellini visita o tio que ainda grita: "Voglio una donna!. Que volte pro convento aquela freira que o fez descer da árvore!
O tempo. Sempre o tempo. E era dia de uma grande aproximação de Marte. Era inverno. Noite clara. Barquinha branca de jasmins, Lua Crescente. Minha imaginação não repousa. Por isso invento estórias. Às vezes, poesias. E gosto de misturar enredos. José de Lemos era amigo de meu pai. Falávamos de astronomia. Me perdi do telescópio. Saturno, verde profundo. Pedra verde faiscante de um anel movendo-se ao meu olhar. Dizem que vão morar em Saturno os objetos que se perdem de nós. Ou é no fundo do mar? Depois do Quarto Crescente a luz floresce. A Lua Cheia se transforma em crisântemo japonês. E no meio aquele pássaro pousado, olhando São Jorge montado no cavalo. Saturno, estrela verde. "Que bobagem, é um planeta!" ─ me disseram. Marte, estrela vermelha. Vênus, Estrela D'Alva.
Hoje chegaram ao brechó várias peças. Cintos. Casacos. Blusas. Não são as roupas nem os colares na vitrine que me remetem à grande aproximação de Marte, mas as xícaras. De café ou de chá. Não sei a razão. Me encantavam canetas, lupas, espelhos, portas de bronze, o prédio da Associação de Astronomia. Lauro falava de Literatura. Lia Horácio. Marte, papoula vermelha. Romã bem madura. Impulso incandescente. Sexo pronto ao amor. Eu queria ser astronauta. E Lauro me deu o número do telefone. Era professor de Latim. E eu queria mesmo era escrever estórias ─ nada que tivesse início, meio e fim.
De volta ao brechó, novos antigos objetos na vitrine. Na xicrinha branca, cheiro gostoso de cafezinho. Na xícara maior, o gosto de chocolate e menta. O que me encantava na escrita era a liberdade. Ir. Voltar. Ou não voltar. O noivo de Estela era engenheiro. Eu o imaginava usando uma caneta Parker dourada. Sempre o tempo. Do passado tudo se mistura na minha cabeça quando tento registrar com palavras. Eu achava que Teresa era estudante de Jornalismo. Dona do próprio nariz. Segura de si. Eu nunca soube o nome dela. Há pouco, na hora do cafezinho, a xícara recordou-me a imagem de Saturno.
De volta ao brechó, uma Parker 51 azul. Lauro tinha uma igual. Coleciono xícaras. Aquela, branca e marinho, agora enfeita a cristaleira da minha sala. Sobre o arquivo, antiga xicrinha de café. No teclado do computador, o dia escrevendo meu diário de bordo. Ah! o tempo. Outra vez o tempo. Folha de papel crepom. Balão de plumas. Cigarra das sete vozes. Gato das muitas vidas. Segredos dos bichos. Aos sons de antiga árvore, o camaleão rachou-lhe o tronco. Do certeiro gesto, jorraram as águas primevas, a gerar o plantio nas lendas da terra.
Diante de mim, ao início do texto escrito, encontro um anel de Saturno à espera das minhas palavras. Saturno verdesmeralda jorrando luzes dentro da tela. E me sinto livre. Ir. Voltar. Ou não voltar. O tempo. Sempre o tempo. Dizem que o tempo é o que sabemos dele. Acho que o tempo se revela nas coisas que sentimos. Saturno, cor de bala de hortelã. Diante daquele verde profundo, sinto vontade de escrever estórias.
Então me chegam palavras que vou engendrando no papel quando não sei o que dizer. Saturno, folha verde. Folha de papel A4. Não aprendi a enredar princípio, meio e fim. De vez em quando coloco o pronome oblíquo no início da frase. Voglio la poesia.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
28/6/2015 às 20h45
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