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Terça-feira,
30/6/2015
O mestre da inflação
Flávio Sanso
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O banquinho é minúsculo, servindo sob medida para suportar quem está sentado nele. Não passa muito do metro e meio, fumante, boné surrado, camisa polo, calças folgadas, lá está o velho ao lado do calibrador. Não é imagem dada a ser vista por tanta gente, só pelos que vão ao posto de gasolina aos domingos pela manhã. É só um carro se aproximar, e o velho do calibrador se levanta do banquinho, agita-se, exala entusiasmo por ainda ter alguma utilidade. Outros detalhes se revelam a quem se aproxima dele. Nos braços, na cara, não há espaço sem ocupação das rugas. Entre a boca e o nariz, espalha-se a ferida que nunca cicatriza. A fala embolada traz suspeitas sobre a ausência de muitos dentes. De mangueira em punho, o velho do calibrador gosta de deixar as coisas às claras:
"Não sou funcionário do posto. O que faço é só um bico pra conseguir comprar o arroz."
O velho do calibrador é generoso em dividir os meandros da sua especialidade. Ensina a medida exata de calibragem para cada tipo de carro, adverte sobre a importância de manter o estepe calibrado, manuseia com cuidado o pino das rodas, afinal, conforme faz questão de explicar, sem os pinos a sujeira entra e entope a passagem do ar. Mas há motoristas que dispensam o serviço, preferindo calibrar os pneus por conta própria. Nessas ocasiões, o velho do calibrador cruza os braços e se afasta constrangido. É o tipo de tristeza que provoca desabafo:
"Não sabem que eu não sou funcionário do posto, não sabem que não tenho carteira de trabalho e preciso de uma ajudinha."
É isso: tirar-lhe a mangueira de calibragem é matá-lo um pouco. Não é exagero, o velho do calibrador ao inflar os pneus acaba por inflar também a própria vida.
Nada como um carro após o outro. O velho do calibrador se surpreende com a nota de cinco reais que lhe chega às mãos em dobras, discreta. O sorriso espontâneo deixa ver a falta dos dentes. O velho do calibrador comemora:
"Hoje posso comprar também o feijão."
Texto originalmente publicado no site reticencia.com
Postado por Flávio Sanso
Em
30/6/2015 às 10h57
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