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Quarta-feira,
1/7/2015
Campo de avião
Anchieta Rocha
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Debruçado na pia da cozinha, chupando manga ubá, ouvi o ronco do motor vindo do alto. Larguei tudo e corri pro quintal. No rumo do abacateiro ainda pude ver as letras do avião, apesar da pouca luz do fim de tarde. Achei que ia bater, acabou ganhando altura. Não entendi o que estava acontecendo. Corri pra praça, cada um dava um palpite.
- É o noivo da Jandira dando rasante pra fazer bonito!
- O piloto perdeu a rota!
- É pane, olha ele cambaleando!
O Said, advogado formado de novo, querendo mostrar serviço, foi até o jardim e mandou os motoristas de praça subirem pro campo pra clarear a pista pro avião pousar.
Confusão igual na cidade, só com enchente, quando não tinha aula, bom pra bater perna. O prefeito era o mais agitado. Avião nenhum tinha descido na cidade desde a inauguração do campo que só servia pra soltar papagaio e encontro de casal.
O Precioso, sempre trazendo uma garrafa de pinga e uma bisnaguinha de salame pros fregueses mais chegados, foi o primeiro a subir com o carro de praça.
Dentro de pouco tempo, levantando poeira, uma fileira comprida ganhava a estrada. Motocicleta, lambreta e bicicleta também. Até o Coelho, se não é o soldado, subia com a Baiana puxando a carroça.
Eu não queria ficar de fora do que acontecia.
Abro a porta pra ganhar a rua - lanterna na mão, presente do padrinho - papai planta na minha frente e "aonde pensa que vai?"
Ficar em casa amuado, olhando aquela montoeira de gente subindo, sem nunca ter visto um avião de perto, e pior, no dia seguinte na aula, ter de escutar as histórias dos colegas, e o bobo aqui mudo, parado, invejando todo mundo sem ter nada pra contar? Papai podia me comer na correia que eu ia. Por causa de marca na perna nunca deixei de fazer o que me dava na cabeça.
Volto, finjo que vou pro quarto, fujo pela cozinha, pulo o muro, invado o quintal do vizinho, assanho as galinhas e ganho a rua.
O avião não parava de sobrevoar a cidade. Sumia e apontava na Ponte da Aldeia, rumava pro outro lado, pegava altura depois do Matadouro e vinha de novo. Voltava alto, a luzinha quase sumindo na Taquara Preta. Dentro da igreja era difícil segurar os fiéis na novena pra São Lourenço. Ninguém queria tirar o pé do adro até ver o que ia acontecer. "Não chega os filhos do juiz que perderam a vida num desses, faz pouco vindo do Rio?" - dizia ao padre, Licurgo, o sacristão.
A cidade toda no campo. O sargento do destacamento, já rouco, dava ordens com o auxílio do também rouco alto-falante do Zé Boi, que só servia para noticiar funeral.
Por fim, depois de muita poeira e confusão, os soldados conseguiram colocar os carros lado a lado, formando um corredor.
Não demorou e o barulho do motor aumentou. A luzinha apareceu no rumo do poente. Tão logo o último carro emparelhou com o Studbaker do grã-fino do cartório, o avião veio baixando, até que as rodas quicaram, assustando as pessoas. Depois parou de vez, perto da baratinha do coletor.
Foi uma buzineira só. Todo muito correu pra ver de perto o avião da Aero Sita.
De dentro apareceu um sujeito de bigode fino, com uma jaqueta de couro e óculos sobre o gorro de aviador.
- A cara do Marlon Brando - suspirou a moça.
O prefeito foi o primeiro a chegar perto pra convidar ele pra jantar.
Aflita, mamãe me esperava na sala. Falou que eu podia entrar que papai já estava dormindo. Curiosa que era, nem ralhou comigo. Disse que estava morrendo de fome e perguntei o que tinha pra comer.
- Vai lavar os pés enquanto eu quento.
Falava sem parar e engolia o escaldado com ovo. Contei desde o começo quando o soldado me barrou na subida, que tive que dar uma volta grande pra ver o avião de perto, pegar nele e alisar a lataria do motor, quente ainda, porque a coisa que eu mais gostava era ir pro mato, catar pipa, ir talhando com o canivete até aparecer um Douglas ou um Constelation, cada um que só faltava roncar.
Mamãe ficava impaciente querendo ouvir o resto da história.
- Os carros já estavam tudo um do lado do outro. Não tinha nenhum na cidade. Tão logo cheguei o avião apontou. Com muito cuidado fui engatinhando pro soldado não me ver.
Fiquei no meio dum Buick e dum Packard. Quando vi que estava baixo, quase encostando no chão, enfiei a mão no bolso, puxei a lanterna, acendi e joguei o facho de luz na pista. A minha mão tremia.
Mamãe ouviu em silêncio, os olhos fixos em mim. Tenho certeza que teve orgulho da minha aventura.
Fui pro quarto e fiquei pensando no que aconteceu. Levantei, peguei a lanterna na sala e voltei pra cama. Virei pro canto e pus ela perto da parede. Apertei o botão de acender e nada do facho forte — só uma luz fraca já apagando. Eu fechava e abria o olho e via a brasinha sumindo. Ficamos assim os dois: ela fraquejando, raleando, eu piscando, insistindo em prolongar aquela noite.
Postado por Anchieta Rocha
Em
1/7/2015 às 10h14
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