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Domingo,
5/7/2015
Asas de besouro
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Ao filtrar luzes da noite, a janela deixava entrever o besouro pousado na vidraça e sinais do seu corpo na parede. Em movimento, sombras reproduziam e ampliavam perfil humano ─ e asas abrindo-se. Quem sabe posso voar? Eu e o inseto. Um pouquinho de luz delineava e desfocava aquela imagem. O corpo do besouro e o meu reunidos numa forma sem contorno. Outros olhares poderiam ver nossa comunhão afetiva. Ele adivinhava minhas aflições enquanto meus olhos rastreavam-lhe o andar de caminhante da transparência. Ao recolhimento da imagem, alguém, além de mim, pressentia-lhe temores. Ele próprio olhava-se parado e trêmulo na umidade noturna do vidro.
Nunca me desfaço do lendário. Não vendo relógios nem metrônomos ─ objetos da grande ilusão de tempo medido. Expectativa e incerteza ─ eu e o besouro. Do outro lado, entre intervalos do tempo em vigília, o mundo cochilava. Examinei meu rosto. Minha testa. Minhas sobrancelhas. Minha boca. Entanto, não sou possessiva. Tive medo que o vidro se fosse pelos ares. Também, ventava tanto! Minha sombra acolhia o inseto vivo e frágil.
Em ângulo frontal, projetando-me na parede, aquela imagem falava de mim. Sabia meu nome. Sem as palavras não sou nada. A partir do verbo, moldo coisas vivas. Junto à minha fronte, o corpo do pequeno inseto transformara-se em elipse movente. ─ Quando amanhecer, ainda estaremos aqui?
Num lamento delicado, as asas do besouro ansiavam a paisagem aérea que, ao nível do chão e à luz do sol, ninguém via no pequeno jardim. Depois o animalzinho caminhou pelos meus cabelos enquanto a noite se ajoelhava para penitenciar-se das lacunas do dia. Existem metamorfoses? Ante o encantamento da dúvida, me esqueci do vento. Encolhi meu corpo ao tamanho do besouro. Minhas asas abrindo-se em direção às venezianas, deslizei pela vidraça e me aninhei no teto. Alguém me via:
─ Lá no canto, parece um besouro...
Ao aninhar-me na sombra projetada na parede, avistei ao longe meus olhos. Meu quarto. Meus segredos. Do alto da janela, avistei minha casa inteira. Nada me escapava ao olhar. Dentro das gavetas da cômoda, lençóis e fronhas. Depois, avistei o porão. Espalhados e esquecidos, aqueles objetos empoeirados. Pedaços de lixa, lâmpadas queimadas, lata de tinta, martelo sem cabo, cadeiras. Tanto tempo?
─ Jogo tudo no lixo, senhora?
─ Não, a poeira consola a dor do inútil.
Entanto, às metamorfoses da vida, documentos deviam dar descanso ao arquivo. Rasguei escrituras, certidões e até comprovantes do meu curriculum vitae. O lendário ilumina-me a imaginação tremeluzindo nas asas daquele besouro.
Ainda adormecidas as luzes da casa, meu escaravelho de cristal iluminava a vitrine da sala. Na garagem, o vidro do meu carro anunciava: Vende-se. É só. Nunca descarto o ilusório. Não jogo no lixo relógios nem bússolas.
Ao contrário de Hemingway, não tenho sapatinhos de bebê, sem uso, para vender.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
5/7/2015 às 13h53
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