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Domingo,
12/7/2015
Fim de jogo
Anchieta Rocha
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Eu trabalho no hospital faz tempo. Já vi todo tipo de sofrimento. Doença, parto, qualquer acidente, levo a pessoa na ambulância e ponho na mão do médico. No início ficava noite sem dormir, as coisas rolando na cabeça, só tristeza, pesadelo um atrás do outro, acabei acostumando. O sofrimento dos outros ajuda a esquecer os meus problemas. Que Deus me perdoe, mas na vida não é assim? As pessoas não se distraem vendo desgraça na televisão?
Eu não sabia fazer nada. Não tinha ofício, não estudei, mal tirei o grupo. Nem sei como o volante da ambulância veio parar na minha mão. Não demorou, já estava fichado no hospital.
De tanto socorrer os outros, aprendi muita coisa. Tem dia, bato o olho no defunto e sei a causa da morte. Levo pro hospital e os médicos muitas vezes confirmam o que eu acho que é. Chego até apostar com os colegas. Já acertei muito. Só de ver um cara borrado eu adivinho: enfarto - não dá outra. Um dia acertei na morte dum ricaço numa mansão — overdose de cocaína por causa da língua gelada.
Duns tempos pra cá, as coisas já não mexem mais comigo. Mas naquele domingo, quando cheguei no lugar do acidente, que olhei o menino morto no chão, me deu vontade de voltar. Não sei se porque o que estava acontecendo era triste mesmo, ou se naquele dia, antes de sair, perdi o controle e dei uma surra no meu filho. Deu vontade de deixar a padiola no local e correr pra casa.
Era sempre assim — toda vez que eu batia nele eu sentia um negócio ruim. Nesse dia foi pior. Quando parei de bater, com a voz quase sumindo, ele disse que queria ter um pai melhor.
Fui pro quarto, fiquei sentado na beira da cama até a mulher entrar e dizer que eu tinha que atender um chamado. Na hora que saí nem quis olhar pra ele no canto do sofá.
Liguei a sirene e com vontade pisei no acelerador pra queimar a raiva que ia dentro de mim.
Gente em volta dum corpo e uma sangueira danada. O muro que veio abaixo esmagou a barriga do menino.
Os rapazes no bar contavam como tiraram ele. A mãe foi arrastada pelos vizinhos.
Não demorou, o pai apareceu na esquina. Vinha do campo, alegre da vida. No ouvido, o radinho de pilha com o escudo do time. Passou pelos amigos na porta do bar e apontou com orgulho a camisa. Tinha os olhos vermelhos por causa da bebida.
Quando viu o bolo de gente, se espantou. Viraram pra ele, coisa ruim tinha acontecido, logo pensou.
Abriu a roda, ajoelhou, começou a chorar e ficou passando a mão no rosto do menino.
Tentaram tirar ele de perto, em vão. Continuava passando a mão pelo corpo do menino, no peito, no cabelo.
Começou então a pegar as vísceras espalhadas no passeio e colocar de volta pra dentro da barriga. Ficou um bom tempo catando os pedaços, falando uma porção de coisa que não dava pra escutar porque no chão o radinho de pilha com o escudo do time não parava de repetir os gols.
Postado por Anchieta Rocha
Em
12/7/2015 às 19h11
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