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Domingo,
12/7/2015
Kafka em meus sonhos
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Passei pelo Largo da Carioca. Que pena! O bondinho de Santa Teresa, não está funcionando? Quatro horas. Na Uruguaiana, entrei na Casa Cavé. Com o frio e o temporal da tarde, bem-vindo o chocolate entre imagens de sonhos de hoje e de antes:
Era domingo. Íamos a Santa Teresa visitar um amigo de meu pai. Sob a marquise, paramos em frente à bilheteria do Teatro Municipal ─ Sonhos de uma noite de verão, coreografia de George Balanchine. Chovia muito. Nessas horas o guarda-chuva sempre emperra.
Terno e gravata, dois homens conversavam próximo:
─ E O Processo?
─ Naquele tempo. Época da Primeira Guerra.
─ Naquele tempo. Hoje. Em muitos lugares.
Esperando que o aguaceiro estiasse, voltamos pro carro estacionado em frente ao teatro. Perto, alguém cantarolava: "Cómpreme usted este ramito / Cómpreme usted este ramito"... Antes do temporal, Kafka entregara um raminho de flores à bailarina Eduardowa. "Ah! Miosótis!". A personagem do sonho do escritor prendera as flores na gola do casaco e, apressada, saíra correndo. Ia pegar um trem na esquina da Araújo Porto Alegre.
Querendo então abrigar-se da chuva, Kafka subiu a escadaria do teatro e sentou-se no patamar sob um beiral. Na véspera, terrível insônia. Cabeça apoiada numa pilastra, ali dormiu. Ao olhar-lhe o rosto tranquilo, ninguém adivinharia pesadelos não registrados nos livros. Entre imagens recorrentes, outro assassinato. E aguda voz over repetindo: Foi ele. Foi ele. Foi ele.
─ Acusado de quê?
─ Ninguém sabe.
Continuei olhando pelo vidro. Terríveis imagens. O rosto continuava calmo, mas Kafka estremeceu ao iniciar uma carta ao pai: "Diante de mim, o tempo autoflagela invisível corpo. Sonhar se faz tempo do imprevisível enquanto a razão escava teoremas não demonstrados". Aquela voz over aguda e inquisidora no sonho de Kafka me perguntou como eu podia saber disso tudo. Ora, todo sonho se faz adivinhação.
Íamos sempre, eu e meu pai, à Casa Mattos. Depois, à Leiteria Bol. Sorvete com calda de chocolate, uma festa! Tomamos o bonde. Dormindo no patamar do Teatro Municipal, Kafka permaneceria nos meus sonhos. E, naquele dia da visita ao Dr. Carlos, eu, em carne e osso, me transformei em meu pai. Mas não foi só isso. Em simultaneidade, ele era eu ─ ainda criança: Está demorando a chegar. Eu, adulto, junto a meu pai ─ menino. Segurei-lhe a mão. Descemos em Santa Teresa.
Tudo tão familiar e estranho, meu pai ou meu filho perguntou: Está perto? Atravessamos a Almirante Alexandrino. No alto da ladeira, o chalé parecia solto no ar. Ih! Telhado amarelo! Continuava chovendo. E esse guarda-chuva que não serve pra nada! No meio de uma poça d'água, tão logo vi minha imagem desfeita pelo vento, enorme cratera se abriu. Transbordando, um alagado cheio de animais.
─ Olha só, papai, é aquele bicho do mar!
─ Polvos-gigantes.
Sem que tivéssemos tempo de dar um passo, um animal saltou em direção a nós. Podia paralisar nossos corpos. Ou podia nos estrangular. Como seria morrer numa queda? Como seria morrer? E desaparecer? Acusado de quê? De pegar o bonde? De subir a ladeira? Foi ele. Foi ele. Foi ele. Na época da Primeira Guerra? Hoje?
O animal voltara ao fosso. Entre medo e vertigem, subimos a ladeira. Portão sem trinco, chegamos à varanda do chalé. Porta da sala aberta, sentado na poltrona Dr. Carlos dormia. De perto, reconheci em seu rosto a fisionomia de Kafka. Era Franz. Cabelos escuros. Rosto pálido. Testa inquieta. Igual à imagem da gravura que papai dizia ser de Jan Hladik .
─ Papai, ele está diferente? E os óculos do vovô.
Olhei outra vez. Então reconheci a fisionomia de meu avô no rosto de Kafka. Depois, o rosto de meu pai no semblante do escritor. E meu rosto no rosto de papai. Mas os corpos eram distintos. No quarto, algo parecido com um gramofone repetia texto de Kafka: "A partir de um certo ponto, não há retorno. Este é o ponto que é preciso alcançar."
Eu, adulto. Papai, menino. Meu avô. Dr. Carlos. Kafka. Naquela sala, todos compartilhávamos a mesma existência. Kafka sonhava águas que marejavam sons de carrilhão ou de sinos marcando quatro horas. E seus pensamentos perseguiam ponteiros perdidos no ponto de partida. A mesma voz inquisidora me perguntava outra vez: "Como você sabe disso?" Dei de ombros.
No quarto, aquele som que parecia vir de um gramofone anunciava: "À urdidura do remoto, recorro às metamorfoses". Ao fundo, no espelho da sala, imagens difusas. Dentro do cristal, alguém, que eu não podia ver, nos contemplava. Se nos reconhecia, não tenho como saber.
A chuva continuava forte. Permaneci na Casa Cavé. Desejei a festa:
─ Sorvete. Calda de chocolate. Bastante creme.
Enquanto a água começava a subir o meio-fio, ouvi alguém na mesa ao lado: "O tempo, sempre o tempo. Quando a gente tem pressa, ele se debate em clausura." E a imaginação jogando cartas com o tempo:
─ Acusado de quê?
─ Ninguém sabe.
Naquele época. Hoje. Em muitos lugares.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
12/7/2015 às 20h31
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