Para escrever posfácio ao livro Eu queria ser, que apresenta trabalhos da fotógrafa paulista Priscila Prade, entrei no jogo das imagens do quer ser. A partir de declaração explícita ─ eu queria ser ─, atores imaginaram-se na pele de algum ídolo e foram caracterizados e fotografados em ambiente cenográfico. Tais fotos ─ reunindo o eu e o duplo ─ integram série de retratos que compõem lendas urbanas. Super-Homem, Che Guevara, Marilyn Monroe, Santos Dumont, Chico Xavier, Mulher-Gato, Dom Quixote, entre muitos outros personagens, fizeram parte do imaginário dos atores. E da fotógrafa.
Ao revisitar fotos reproduzidas no livro, me envolvi por completo no jogo do querer ser. Meu texto alongou-se. Era preciso terminá-lo. Mas não sabia como. Então, através do onirismo, me incluí no rol dos atores. Em meio a atuações alheias, entrei no jogo do desejo: eu queria ser... E não me faltaram aspirações. Patinadora. Astronauta. Cosmóloga. La belle de jour. Ascensorista. Por fim, me defini: eu queria ser poeta. E se eu fosse poeta, eu queria ser Mário Quintana, pra dizer tudo bonito e profundo, como numa conversa que a gente deseja que não termine nunca. E diria que o fotógrafo é um mago que descobre olhares na pele do mundo.
Mas não sou Mário Quintana. E não tem nada de original o que eu disse. Assim, confesso que invejo Mário Quintana, porque sabe preencher de onirismo as coisas do dia a dia. Ele conhece tudo que, por meio do sentir, habita o tempo e tangencia a vida. São "quintanares" os cantos de Quintana, como bem o definiu Manuel Bandeira: "São cantigas sem esgares / Onde as lágrimas são mares / De amor, os teus quintanares." É assim, Quintana, para ir ao fundo desses mares, teus pés caminham pelas ruas enquanto teu olhar desbrava horizontes na mesa de trabalho. E, por vezes, teu corpo se desloca por outros continentes escondidos no travesseiro.
Entre as mãos e a máquina de escrever, recrias em nós universos íntimos. Experiências do viver. Objetos da casa. Meandros da paixão. Do esquecimento. Da amizade. E todos conhecem aquela "Velha História" do afeto entre o homem e o peixinho azul ─ pura poesia que se transformou em desenho animado.
Ao contrário de Quintana, eu me atropelo toda quando quero falar de afetividade. Por isso, repito: invejo Mário Quintana. Mas essa inveja não tem nada de ferino nem de destrutivo. Minha inveja é carinhosa.
Conheço pessoas que falam mal da poesia de Quintana. Acho que aí tem o dedo da inveja. E encontro todo dia uma série de pessoas raivosas, apontando metralhadora giratória para muitos autores. Um dia ainda vou escrever sobre isso. Sei que há vários modos de invejar. E existe aquele invejoso que detesta alguém porque gosta das coisas que esse alguém sabe fazer ─ eis a completa incoerência desse tipo de inveja.
Esse invejoso quer ver o invejado no quinto dos infernos. Mas isso por baixo dos panos. Inventa, por exemplo, que você não sabe cozinhar. E, quando te encontra, dá até beijinhos: ─ "Adoro a carne assada que você faz!. Certamente ele até gosta muito desse seu prato. E, vai invejá-lo ainda mais, caso seja você tão bom quanto o Bocuse na cozinha. Pior ainda: ai de você se for agraciado com o primeiro lugar num Concurso de Culinária! Nosso amigo nem desconfia que isso é inveja. E se o invejoso fizer parte do júri, não farás jus sequer ao título de "Pior cozinheiro do certame".
Sobre esse Pecado Capital, dizem ser do Marquês de Maricá certo pensamento que me agrada pela ambiguidade: "A inveja é tão vil que ninguém ousa confessá-la". Mas, querido Quintana, ouso confessar publicamente minha inveja por ti. E sei que estás me ouvindo, porque poeta é personagem. Não morre. Invejo mais que tudo essa tua benevolência com os humanos quando dizes sem rancor: "Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão... / Eu passarinho!".
Invejo, meu poeta, esse teu modo delicado e teu jeito desprendido de tratar os inimigos. Invejo teus versos de beija-flor espalhando pólen até mesmo no jardim alheio. Tua resposta sempre se faz poesia. Diante do terrível, consegues extrair luz: "Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! / Pois dessa mão avaramente adunca / Não haverão de arrancar a luz sagrada!".
Para seres ouvido, Quintana, não precisaste alardear teu canto. "É que poeta nasce poeta / E poeta é o Mário Quintana". Quem diz isso, festejando teus 80 anos ─ e aqui reafirmo o verbo no presente ─ é o grande payador Jayme Caetano Braun. ─ Isso é que é homenagem de fazer mais inveja a todos os invejosos!
Ora, que esquecimento! Me enganei. Homenagem aos teus 80 anos, Quintana? Neste mês de julho, no dia 30, completarás 30 anos. Em teus versos o tempo não passa.
Quem fala mal da tua poesia, Quintana, só pode ser de inveja. E assim registro esta máxima atribuída a Niceto Zamora: "Os ataques da inveja são os únicos em que o agressor, se pudesse, preferia fazer o papel da vítima". É isso mesmo. Mas fazer teu papel de poeta-mestre na intensa delicadeza dos sentimentos, prezado Quintana, isso ninguém conseguiria.
Esse papel é só teu.