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Domingo,
26/7/2015
João Nogueira e o espelho da poesia
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Fortes chuvas de um dia quente. Acho que foi em março de 2000. Do trabalho na Ilha do Fundão tive carona até o Santos Dumont. Carregador, tia? Tem bagagem? Entre o carro e o saguão do aeroporto ─ livros, pasta, bolsa, embrulho. Cadê os lenços de papel? Comecei a enxugar os braços. Já sentada em frente ao Café, sequei os livros. E os óculos que sempre ficam molhados! Tirei da bolsa meu fiel espelhinho pra retocar o cabelo. Ao incliná-lo para a direita, não acreditei ─ João Nogueira. Ele mesmo. Sentado ao meu lado no banco. De perfil, no meu espelho. Pediria autógrafo?
Chapéu. Pasta. Parecia aguardar alguém. Quem sabe esperava o momento de se dirigir à sala de embarque? Acho que ia para São Paulo. Talvez, sem saber, aguardasse viagem bem maior que faria em junho do mesmo ano. Ao reconhecê-lo, pensei na magia daquele "Espelho" de João Nogueira e Paulo César Pinheiro. E me lembrei da voz do cantor. Sua vida e seus medos acalentados naquela canção. Entre tantas agruras ─ destino marcado nas surpresas da poesia. Entre perdas e danos ─ coisas da vida na musicalidade dos versos. Tempos de antes. Meninice. Dias felizes. Adolescência. Aspirações. Companheirismo do pai. Solitude. Tornar-se adulto. Revelações do amor. E tornar-se poeta.
Sei que numa verdadeira parceria há realmente entrosamento. O compositor às vezes colabora numa estrofe ou num verso. Mas aqui o que importa é o espelho ─ o encantamento do objeto surpreendido em tom poético. E ora me entrego a uma interpretação. Espelho, espelho meu, que sabeis de mim e do outro? Quem ouve uma canção se faz intérprete. Esse espelho? Será a vida? O tempo? Por certo, nem a vida nem o tempo. Mas algo que se enraíza na imaginação do poeta. E do compositor. Na voz do cantor essas ambiguidades e segredos falam de nós e do outro. Meu espelho não pertence só a mim.
Nos entremeios da poesia ─ aos sentidos atentos ─ os objetos vivem. À pele receptiva, as coisas nos tocam. Sentem. Pensam. Se a admiram. Sofrem. Pulsam. Choram. Amam. Ganham cores. Sabores. Cheiros. E muito mais. Trabalho misterioso esse, o do poeta. E o do compositor. E o do cantor. No universo ritmado pela canção é também assim. A canção detém o tempo do mundo e desengrena o tempo do relógio. A canção vive seu próprio momento.
Naquele instante João Nogueira entrou no meu espelhinho, lembram? Eu estava retocando o cabelo. A partir daí percebi que meu pequeno espelho passou a me olhar de modo diferente. Espelhos compartilham imagens. Decifram olhares. Identificam medos, apreensões, afetos, intenções. Na superfície dos espelhos moram águas endurecidas. Quando através do olhar entramos nessas águas, elas voltam ao estado líquido. Então o fôlego do dia se entranha em algum momento do passado. Este vem à tona. Tece direções. Emite luzes. E guarda o rosto que ali se reflete ou se refletiu. Mas é tudo muito rápido.
Na voz de João Nogueira, entre tropeços e desencantos do mundo, que dádiva os versos! Que dádiva cantar essa imagem do espelho! O olhar do espelho não mente. Não camufla. Não mascara. A um só tempo, superfície, luminosidade, profundidade, caverna, sumidouro, vazadouro, os espelhos olham o mundo. Feitos de sol e gelo, eles têm fascinado escritores e artistas das mais variadas expressões. Quem não se lembra daquele espelho falante dizendo verdades à bruxa na história da Branca de Neve?. Cada um ao seu modo, Jorge Luis Borges, Cecília Meireles e Machado de Assis foram intensamente olhados pelos espelhos. Eles entraram nos segredos e transformações das águas endurecidas e liquefeitas.
Tive vontade de indagar: João, como é entrar na magia do espelho?
Continuei sentada ao seu lado no banco do aeroporto. De novo tirei da bolsa o espelhinho oval. A pretexto de retocar o batom, inclinei mais um pouco meu minúsculo laguinho de águas endurecidas. Contornado pelo friso amarelo da moldura, João Nogueira continuava dento do meu espelho. Em carne, osso e inspiração. Pasta sobre os joelhos. Paletó. Chapéu. Lá estava ele, como se fosse um cristal que eu não tinha coragem de olhar de frente para pedir autógrafo.
Continuei fingindo que retocava o batom. A luz refletida em seu rosto iluminava meu espelhinho. Com voz e jeito sentido de cantar, João Nogueira ─ personagem do seu próprio "Espelho" ─ se tornou personagem do meu espelho. Aquela letra ─ poema pra valer ─ continua navegando versos nas águas profundas do meu laguinho de bolsa, repercutindo a voz de João Nogueira: "Mas tão habituado com o adverso / Eu temo se um dia me machuca o verso". Forte e apropriada essa imagem! Acostumados com o pega-pesado-da-vida, o autor e o compositor temem que algo possa ferir a poesia.
Pouco depois, João Nogueira se foi. Deve ter encontrado Alice, aquela menina que, ao sair do País das Maravilhas, foi visitar o País do Espelho.
Dos ancestrais não herdei terras. Não herdei ouro. Nem pérolas. Deles, recebi imagens que perfuram a resistência das águas endurecidas sob a máscara do dia. Até que novo dia se faça leito e superfície de outro espelho a gerar outros olhares. Outras águas. Outras nascentes.
No aeroporto ou na imaginação, volto àquele dia. Quando chove, penso num grande espelho dissolvendo-se em águas memoráveis. E vejo o "Espelho" de João Nogueira no meu espelhinho e em tantos outros que pela vida encontrei. Virou relíquia o pequeno objeto das águas mutantes.
Desportista nunca desejei ser. Um dia tentei jogar vôlei ─ Que desastre! Me ajeito melhor com a poesia. Pessoas, coisas, palavras, tudo me toca através do sentimento. Mas quando arrisco alguns versos meus ou quando termino livro, a voz do João Nogueira vem à tona. Diante da poesia, sinto também esse medo maior: que o espelho possa se partir. Meu espelhinho de moldura amarela, guardo bem guardado. E ainda hoje a grande apreensão na voz de João Nogueira se reflete igualmente em mim: "E o meu medo maior é o espelho se quebrar".
Quem ouve, aqui repito, sempre se intromete. Que espelho é esse? A existência? O tempo? O amor? A poesia? A inspiração? Quem escreve costuma também ser meio intrometido. Então, começa a fazer perguntas que não têm resposta. Que espelho é esse? A poesia não traz respostas. Mas seu ânimo transcende o tempo. Conforta saber que, se um espelho se partir, cada fragmento se fará completude.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
26/7/2015 às 19h17
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