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Quarta-feira,
29/7/2015
A freira
Sonia Regina Rocha Rodrigues
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Vim a Santos para trabalhar na Santa Casa de Misericórdia, um hospital antigo, esparramado ao sopé de um morro. A história que vou-lhes contar aconteceu no primeiro plantão em que ali trabalhei como médico clínico. . .
Passava um pouco da meia-noite. As enfermarias estavam silenciosas, o Pronto Socorro tranqüilo. Dirigia-me à lanchonete para um café, quando ouvi passinhos urgentes atrás de mim. Uma voz cantante e firme sussurrou-me: .
"Ah, doutor! O paciente do 708 da ala C acaba de ter uma parada cárdio-respiratória. Precisamos do senhor!" .
Voltei-me. Quem assim me falava era uma freira. E eu acabava de deixar a ala C! .
"Aconteceu assim que o senhor deixou a enfermaria. Corra! É uma emergência!" .
Galguei aos pulos a escada para a ala C, atravessei correndo o corredor, entrei no 708 e encontrei o doente roxo, os braços estendidos para a campainha que não conseguira alcançar a tempo. O acompanhante, adormecido no sofá, ressonava. .
Puxei com força o cordão do alarme, gritei, coloquei o paciente no chão e iniciei o socorro. Depois de resolvida a situação, o paciente encaminhada à CTI e o acompanhante tranqüilizado, questionei a enfermagem: .
"Por que não havia ninguém no quarto? Por que não estavam sendo tomadas as primeiras providências? .
"Como, doutor? Nós nem sabíamos... o senhor nos chamou e viemos." .
"Quem me chamou?" .
Aparentemente ninguém me chamara. Mencionei a freira e um desconforto pairou no ambiente. Há vários anos não havia freiras trabalhando na Santa Casa. .
Voltei à lanchonete, disposto a tomar o desejado café, quando a mesma freira surgiu-me à frente, dizendo em tom que não admite demora: .
"Doutor, o paciente que vai colocar marca-passo amanhã, o do 504, parou neste instante!" - assim falando, ela conduziu-me à porta do 2º A e eu já via, pelo vidro da porta, a enfermagem empurrando uma maca para a sala de emergência da Cardiologia. Ao ver-me, exclamaram: .
"Graças! O senhor chegou na hora exata!" .
Repetiu-se o fato: resolvida a urgência, constatei de que não haviam tido tempo de chamar-me. Eu simplesmente aparecera por ali na hora certa e, é claro, ninguém sabia de freira nenhuma. .
Se o ambiente fosse outro, se a situação não implicasse em tamanha responsabilidade. Eu até pensaria tratar-se de algum trote para novatos. Não era este o caso, todavia, e eu estava furioso com os olhares enviesados que os funcionários trocavam entre si. Nisto surgiu Ronaldo: .
"E aí, Nelson? Já tomou seu café? Posso ir agora tomar um lanche enquanto você assume a "porta"? Você afinal demorou uma eternidade com este café! Caiu dentro da xícara?" .
"Café? Pois eu lhe digo o que fiz desde que saí de meu consultório: atendi a duas paradas, um na ala C e outra no 2º A .... .
"Como? Não recebemos nenhum chamado lá na porta..." .
"Foi uma freira que me encontrou no corredor." .
"Uma freira?" .
"Uma freira, sim, senhor, uma freira das antigas, com hábito até o chão e véu e não me venha você também me dizer que aqui não existem freiras!" .
Ele olhou-me estupefato: .
"Bem, há uma freira..." - ele hesitou por um momento e então levou-me por um silencioso corredor até uma porta de mogno entalhada, que se abria para um salão de conferências luxuosamente decorado, em cujas paredes haviam fileiras de retratos. .
"Reconheça a freira, Nelson." .
Olhei os retratos e entre diversas religiosas, lá estava ela, com seu olhar de eficiência tranqüila. .
"É esta, com certeza." .
Então reparei nas datas abaixo do retrato. Duas datas - o ano de nascimento e o de ... falecimento. .
"Não se assuste, amigo. É nosso fantasma particular. Mais dia, menos dia, todo médico a encontra. Dizem os sensitivos que ela circula pelos corredores, inclina-se à cabeceira dos doentes, a assombrar a Casa. Mas nós, médicos, só a vemos quando ela precisa de nós." .
"Não é possível! Não existem fantasmas." .
"Alguém chamou você? Chamou de verdade, pelo interfone, pelo telefone, pelo bip?" .
"Não... não houve tempo, eu apareci antes..." .
"Então?" .
A madrugada ficou subitamente muito fria a perdi a vontade de tomar café. Um tremor desagradável percorreu-me a espinha. Ronaldo animou-me: .
"Duas vidas foram salvas. É o que importa." .
Não tornei a ver a freira. Encontrar-me com o fantasma da casa duas vezes na mesma noite foi o que se pode chamar, com um pouco de humor, de sorte de principiante. .
Apesar das manhãs nebulosas e dos dias à la Van Gogh, Santos não combina bem com fantasmas desfilando por sombrios corredores a gemer e a arrastar correntes enferrujadas. Esta terra abençoada, onde gente de todas as raças se irmana, combina melhor com as almas luminosas. Em nosso clima tropical, no mais dos dias ensolarado e quente, até os fantasmas são diferentes. . .
Parte integrante do livro
É suave a noite
Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
Em
29/7/2015 às 20h24
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