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Sábado,
1/8/2015
Viva a revolução
Marcio Acselrad
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Historiadores e curiosos não tem do que se queixar: nossa história está cheia de peripécias e de personagens interessantes. A aventura humana sobre o planeta deu lugar a incontáveis aventuras, algumas verdadeiramente inacreditáveis. Além, é claro, daquelas que a própria imaginação da espécie produziu com sua literatura e teatro. Às vezes as duas se encontram, e temos experiências como a do romance histórico, gênero literário que se apropria da realidade para recontá-la, recriá-la. A experiência pode ser magnífica, como na leitura de "O homem que amava os cachorros", do cubano Leonardo Padura (Boitempo editorial, 2013).
Ao longo de quase seiscentas páginas de tirar o fôlego, viajamos pela história do século XX em companhia de dois indivíduos que o acaso reuniu através de uma picareta: O primeiro, Liev Davidovitch, dito Trotsky, revolucionário russo de primeira hora, banido da pátria que ajudou a criar, chamada a partir de 1917 de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, por defender que a prática revolucionária deveria se espalhar por todo o mundo para não morrer asfixiada pela burocracia estatal e por aventar a possibilidade herética de que Stalin, o georgiano que tomou o poder de forma escusa, não fosse deus. Repetindo a saga de seu povo, mais um judeu transformou-se em nômade errante, clamando por asilo político em um mundo que se fechava cada vez mais para ele. Acompanhamos Trotsky e a esposa em seu exílio forçado pela Turquia, França, Noruega até chegarem ao turbulento México dos anos 40, onde foram recebidos por dois outros personagens que parecem inventados, mas que existiram de verdade: Diego Rivera e Frida Kahlo, com quem Trotsky viria a ter um improvável romance.
O segundo, o catalão Ramon Mercader, dito um monte de coisas, entre as quais o russo Roman Pavlovitch Lopovo, o apátrida Soldado 13 e o fotógrafo belga Jacques Mornard., Filho da ex-burguesa convertida Caridad del Río, Ramon viveu de perto a bizarra experiência de contradição histórica que foi a Guerra Civil Espanhola, onde variadas facções de esquerda e direita se digladiaram em uma guerra fratricida que quase destruiu o país e, o que é pior, conduziu Franco ao poder. A ele coube a "honrosa" missão de dar cabo da vida do "traidor" da revolução, tarefa que deveria cumprir, como todas aquelas determinadas pelo novo czar de todas as Rússias, sem um pingo de hesitação ou reflexão crítica. Para esta missão, foi treinado pelo serviço secreto russo de tal modo que, ao fim do processo, não restava nem sinal do Ramon original. Nem ele mais sabia quem era...
Em questão, as interpretações que o século XX produziu e as contradições que criou. E a enormidade de vidas que foram mutilaram e ceifadas em nome de uma das mais nobres bandeiras, quais sejam, o socialismo, o comunismo e a luta contra o fascismo. Aos muitos "ismos" que dividiram o pensamento e a vida do século XX, surge mais um, o stalinismo, o culto à personalidade que fez a história se repetir, talvez como farsa, como diria o próprio Marx (outra ironia histórica) criando, novamente, o terror. Só que esta revolução, ao contrário da francesa de cento e vinte anos antes, não gerou o terror da instabilidade política que desembocou em Napoleão, mas o terror do pensamento único, do homem-ideologia que tomou conta de Moscou e do mundo em nome, vejam só, da liberdade e do fim da luta de classes. A burocratização ia realmente matar a revolução, mas isto só iríamos descobrir na tardia década de 1980. E Trotsky, a prova viva desta verdade, teve de desaparecer pois sua própria existência, mesmo vivendo no distante México, era a denúncia da impostura que Stalin não podia suportar.
Uma leitura imprescindível para quem quer compreender a história de um sonho naufragado. Para quem é de direita, para quem é de esquerda ou simplesmente para quem adora uma boa história. Aprecie sem moderação.
Postado por Marcio Acselrad
Em
1/8/2015 às 13h54
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