Ruas e bairros do Rio me contam estórias. Às comemorações de eterna festa de largo ─ festas de pátio de igreja ─, camelôs a mais não poder no Largo da Carioca. Bebidas. Comidas. Pulseiras. Colares. Roupas. Música. Do alto, no Convento, Santo Antônio vê tudo. Deve ter visto o homem de camisa marrom fazendo sua fezinha ─ R$ 10,00 no porco. Dobrei a esquina. Avestruz? Cobra? Leão? E logo me veio o samba de Donga: "Que lá na Carioca tem uma roleta para se jogar".
Dei uma lida em vários historiadores e cronistas que sabem tudo do Rio de Janeiro. "Pelo telefone" ─ considerado por quase todos o primeiro samba. Dizem que Donga cantou numa festa da Igreja da Penha: "O chefe da folia pelo telefone"... Sinhô também estava lá. Na primeira metade do século XX, muitos compositores e cantores se divertiam e se apresentavam na Festa da Penha ─ grande festejo que só perdia pro carnaval em número de participantes e animação. E até padre comemorava com o povo. Que Deus o tenha, Padre Ricardo Silva!
No século XVII ─ pequena ermida de Nossa Senhora do Rosário ─, a Igrejinha atual ganhou forma no começo do século passado. Dizem que aquela região abrigou um quilombo. Nos idos do século XVIII, os festejos eram à moda portuguesa. Depois, foram conduzidos pela tradição africana e o samba chegou à Festa da Penha. Quitutes e bebidas rolando. Da pinga, um pouquinho pro santo. Mas proibiram o álcool e as rodas de samba. Nem no festejo sagrado davam descanso ao samba?. Era demais! Pandeiro, violão, cavaquinho ─ tudo pro xadrez.
Sobre o samba de Donga e Mauro de Almeida, entre depoimentos de ambos, a autoria remete a vários relatos e questões levantadas pelos pesquisadores. Sobre a letra, entre as muitas transformações feitas por foliões e intérpretes, são conhecidas duas versões marcantes da primeira estrofe: "O chefe da folia / Pelo telefone manda lhe avisar / Que com alegria / Não se questione para se brincar." Mas o povo é criativo. Irreverente. Tem olho aguçado. E ficou mais conhecida a versão do humor carioca: "O Chefe da Polícia / Pelo telefone manda me avisar / Que lá na Carioca tem uma roleta para se jogar". E o samba de Donga está vivo.
Bastante mudada, a Festa da Penha continua existindo. O samba se prosterna aos pés de Nossa Senhora e do Rio de Janeiro. A Santa e a cidade reverenciam o samba. No ano passado fui à Penha. E esse celular que apaga as fotos...
Nossa Senhora da Penha espia a gente, vendo do alto o que corre e estanca no tempo. O que passa e não passa. Passatempo. Passaraio. E o samba de Donga continua novo.
Lá em baixo, ergueram casas, prédios, shoppings. Um dia chegou o Parque Shangai. E o brinquedo a esmerar-se em enredos felizes. Passarinho voando. Estrela cadente.
Seguindo a montanha-russa, cabelos e pensamentos sobem e descem, pra sentir perto o céu e a rua. O Parque Shangai diverte criança e gente grande. E o samba de Donga continua tocando.
Girando girando girando ao redor de si, a roda-gigante acompanha o carrossel.
Crinas ao vento. Ploc ploc ploc. Doze cavalinhos trotando.
Pelagem branca. Ploc ploc ploc. Valsa das Flores. Doze cavalinhos rodando.
E o samba de Donga dançando no ar.
Mas, entre o carrossel e o chão, nem tudo são voltas perfeitas. Dentro do trem fantasma, tanto medo se assombrando. Cidade afora, terror descarrilando.
Perto, bem perto, o morro se incendeia pra ver se acorda a cidade anestesiada. Perto, bem perto, nas enfermarias, acotovelam-se o ferido e o asmático. Perto, bem perto. E, do chefe da folia, nem é bom falar.
Plo ploc ploc. A rocha dos séculos se apercebe delicado coração do tempo vivo. E o tempo vivo espera muito de si mesmo.
De noite, balãozinho pousado na pedra, a igrejinha abençoa bairros, carnaval e capoeira.
Na Festa da Penha, a memória do samba de Donga. Quem não conhece o samba de Donga?
Ó, outubro! Outubro da Festa da Penha. Antigos outubros, bem antes do Parque Shangai. E o samba de Donga também ritmando o amor: "Olha a rolinha, Sinhô, Sinhô / Se embaraçou, Sinhô, Sinhô / Caiu no laço, Sinhô, Sinhô / Do nosso amor, Sinhô, Sinhô" ...
Mauro de Almeida fez a letra? Só ordenou os versos? Donga pegou passarinho no ar? Não é preciso saber ao certo. Tocando tocando, "Pelo Telefone" fala de amor, de samba, de intriga. E narra maliciosa crônica do Rio. Um passeio pela cidade confirma: "Que lá na Carioca tem uma roleta para se jogar". E, do chefe da folia, nem é bom falar.
E o Rio atravessa o largo e a rua da Carioca. Sonhou com quê?
Sonhou com jóquei, vai dar cavalo.
Todo dia uma multidão atravessa o largo e a rua da Carioca. Do alto, no Convento, Santo Antônio vê tudo:
"Ai, ai, ai, / Deixa as mágoas para trás, ó rapaz."
Ah! Outubro. E o dia se espicha na Festa da Penha. Longo e contrito, o dia visita barraquinhas. Primeiro, quer saber sua sorte. E vai logo dizendo: "Eu não sou cachorro não".
E o dia sobe os 365 os degraus da Igreja da Penha. Depois, come, bebe, dança, pra se manter inteiro. E pra rodar: "Porque este samba, Sinhô, Sinhô / De arrepiar, Sinhô, Sinhô / Põe perna bamba, Sinhô, Sinhô / Mas faz rodar, Sinhô, Sinhô".
E a letra do samba fotografa a cidade e muito além.
Jabá. Propina. Peixada (outro dia alguém usou esse termo antigo).
Na letra do samba, palavra puxa palavra.
E o samba de Donga continua tocando.