Voltei a Vila Isabel para visitar a fábrica de tecidos cantada por Noël Rosa. O prédio? Agora, centro de comércio. À entrada me esperava Seo Armindo, que sabe tudo sobre o bairro: "Ora, pois, cá estamos na fábrica dos Três apitos. Chamava-se Confiança. Ficava na Aldeia Campista ─ sítio hoje integrado à Vila".
Com o crescimento da cidade, a mulher na Vila de Noël inseria-se na força de trabalho. E o poeta encontrou motivos para sua canção falando à ex-namorada. Quando entramos, Seo Armindo então cantarolou:
"Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você (...)."
Rememorei histórias vividas e criadas por Noël. "Queixumes de amor" ─ como diz Seo Armindo. E cenas de trabalho ─ e horários ─ interferindo nos sentimentos e controlando a espontaneidade das ações humanas. Novamente, o apito da fábrica:
"Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?"
Com olhar aguçado, Noël, em 1933, registrou cenário decorrente da Revolução Industrial, que Chaplin, em 1936, satirizaria no filme Tempos Modernos, ao enfocar a desumanização do homem pela máquina. Sempre brincalhão, observou Seo Armindo: "Ora, pois, que acabamos de passar pelo gerente impertinente!". E, como no filme, não escapara a Noël a figura do gerente autoritário que fiscalizava o trabalho.
"Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você (...)".
Dizem os estudiosos que a ex-namorada de Noël trabalhava numa fábrica de botões. Sejam tecidos, botões ou tamancos, Noël captou perfil da produção contrapondo-se ao afeto. E a poesia realiza sua verdade. Poesia revisitada, aonde vais? Minhas mãos te perseguem. À escuta da canção de Noël, meus olhos enxergam o amor, meio tonto, entre teares e fios de algodão:
"Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você."
Transformada a fábrica em centro comercial, o apito tocava como atração turística. Pude ouvi-lo na década de 1990, numa das minhas idas àquele lugar. No ano passado, em 2014, não mais o apito. Mas, em meus ouvidos, a canção de Noël. E meu pensamento indo longe, vendo braços em movimentos tensos lutando contra o cansaço. E o dia muito frio. Do outro lado da rua, era de carne e osso a moça que passava sem agasalho, à imagem da jovem da canção:
"Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho (...)".
Dentro da antiga fábrica, imagens a emergir das cinzas! Nos arredores do quarteirão, meus ouvidos atentos à nostalgia ouvem a buzina do carro de Noël querendo abafar o som que lhe feria os ouvidos.
A poesia não escreve panfletos. De modo sutil, vai longe. E tem coragem de ir aonde não é chamada.