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Segunda-feira,
14/9/2015
Intervenção, como pedir o que já existe
Marco Garcia
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Em um dos morros da cidade do Rio de Janeiro mora Geraldo, 34 anos, de cor parda, casado, três filhos. Duas casas mais à direita, reside Celso, 16 anos, negro, mamorando, sem filhos.
Por coincidência, ambos saíram de suas residências ao mesmo tempo, naquele início de manhã de domingo, em agosto de 2015.
- Coé, Celso, na paz? - Geraldo cumprimenta o vizinho, filho de um de seus parceiros de sinuca no bar do seu Arlindo, que fica na esquina da Rua Getúlio Vargas.
- Tudo certo, Geraldão - respondeu ainda sonolento, tentando adivinhar o que o colega de bairro levava, todo santo dia, naquela mochila azul. E que chaveiro estranho, parece um passarinho, um galo, sabe-se lá. Não sabia o nome, mas de uns tempos para cá a figura daquele bicho surgira em cartazes e muros da comunidade. Tem um bico enorme e curvado.
Geraldo desceu o morro para esperar a bendita carona que o levaria ao trabalho; Celso dobrou na primeira viela, à esquerda, em direção à padaria onde marcara com os amigos, na noite anterior. Avistou apenas dois.
- Salve, rapaziada. O dia promete. Lelé, trouxe as ferramentas?
- Missão dada é missão cumprida, Celso. Já é, 'tá' tudo aqui.
- E tu, Félix, conseguiu tirar da cabeça da Belinha de nos acompanhar? Nosso rolê hoje vai ser pesado, a chapa é quente.
- Ela ficou desconfiada, Celsinho, mas depois aceitou. Também, dei 20 paus para ela arrumar o cabelo na Judite - disse Félix, com semblante de menino esperto.
- Fez bem. Caralh... Cadê a porra dos outros muleques? Os caras não têm disciplina, nunca chegam na hora marcada - reclamou um chateado Celso, depois de chutar uma lata vazia de cerveja, esquecida por um transeunte qualquer.
- Dá um dez, brou. Eles já chegam - minimizou Félix.
Dez minutos depois do esporro, o bonde de 20 garotos, faixa etária entre 14 e 17 anos, também desceu o morro e pegou o circular, seguindo para a Zona Sul.
- Puta ônibus zuado, 'mó' carroça. E 'tá' parecendo uma sauna. Ê condutor, dá para ir mais rápido não? - reclamou Celso, bolado e já impaciente.
- Ei, estou fazendo o favor de levar vocês no "meu ônibus". Fica de boa. Além disso, não dá para correr, tem uma blitz logo à frente - respondeu, bravo, o motorista, que desde às 4 da madrugada batia lata nas ruas.
- Mais essa, disse Félix. Não tem como desviar dos alemão não?
- Claro que não. Vixe, mandaram encostar.
- Bom dia, cidadão, como está essa força? Dá licença para eu conferir que tipo de contingente o senhor está levando para a praia, solicitou educadamente o policial ao motorista.
Sentado no último banco do ônibus, Celso não acreditou quando reconheceu o distinto PM.
- PQP! O Geraldão é alemão? Quer dizer que o misterioso volume que ele carrega na mochila é a farda da corporação? Caraca, que maluco estranho - pensou Celso.
Mesmo prestes a ser abordado, ao se deparar com o vizinho travestido de defensor da lei, ficou tranquilo.
- Deu ruim. Quero todos os vida loka fora do coletivo. Vamos, rala, e no sapatinho - ordenou um truculento Geraldo.
- Nossa, como o Geraldão é sangue ruim fora do morro, não conhecia esse lado dele não - se assustou Celso.
- Coé, Geraldão! - ele gritou lá do fundo, na esperança de ser bem tratado quando fosse reconhecido. Libera aí, temos hora para chegar.
Geraldo fuzilou Celso com o olhar e caminhou lentamente em sua direção. Quando viu a mão do garoto estendida para um cumprimento, deu-lhe um tapa de peso equivalente a 1 tonelada no seu rosto.
- Geraldão é o cacete, seu FDP. Para você eu sou o Tenente Geraldo Ramos. Vai, pega suas porcarias e desce com a sua quadrilha para fora da porra desse ônibus.
Sem acreditar na reação do até então pacato morador do morro, Celso pegou o saco com as camisas e a bola e saiu do ônibus, alisando a marca de dedos que o tapa lhe deixara entre a boca e o ouvido esquerdo.
- Seguinte, gritou Geraldo, a ordem do governador é barrar na fonte a ação da geral que desce o morro para tocar o terror nas praias, tirando o sossego dos cidadãos de bem que curtem o dia ensolar...
Antes de terminar seu raciocínio, o Tenente Geraldo Ramos ouviu aplausos e gritos de apoio vindos do interior do veículo.
- Isso mesmo, autoridade. Enjaula esses vagabundos - comemorou, com imensa satisfação, o motorista.
- Graças a Deus e a você seu polícia, que nos dá a devida proteção. Já estava com um medo enorme desses bandidos roubarem meu celular, minha marmita e meu vale transporte. Vou ligar para minha patroa e avisar que o atraso de hoje foi por motivo de segurança pública - balbuciou a senhora diarista.
De peito estufado e ego nas alturas, Geraldão - o pacato vizinho do morro, mas Tenente Geraldo Ramos no asfalto - olhou para a roda de garotos de pele escura, sentados na calçada.
- A geral será averiguada. Quem não deve nada será liberado e vai atravessar a rua e pegar o ônibus para voltar para o lugar de onde não deveria ter saído, entenderam?
Cabisbaixo, de orgulho ferido, mas já acostumado com esse tipo de repressão, Celso reparou no choro contido de Félix e ouviu do Lelé:
- Que merda, hein, Celso? Combinamos tanto esse futebol. Fizemos vaquinha por 15 dias na quebrada, compramos uniforme, bola, e agora somos tratados como lixo pelos representantes do estado? Tendo como o mais truculento o nosso vizinho de morro? O pior é que eu votei no FDP desse governador.
- Fazer o quê? Vamos voltar e deixar os ricos se divertirem em paz - se conformou Félix. Quem sabe ainda encontro a Belinha em casa, pois o trato no cabelo dela quem vai dar sou eu.
*Marco Garcia é jornalista paulistano. Mora em Fortaleza.
Postado por Marco Garcia
Em
14/9/2015 às 12h15
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