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Terça-feira,
15/9/2015
Do lado de fora
Anchieta Rocha
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Todo dia é a mesma coisa: chega um dá um feijão, outros não dão nada, muitos resmungam. Mas o que eu mais queria é entrar no supermercado e andar com um carrinho daqueles que levam menino em baixo. Queria também ver minha mãe, meus irmãos, meu... - nem sei se é meu filho, gosto dele de todo jeito, meus amigos dizem que não é, minha mulher jura que é, eles falam que agora tem um exame que mostra quem é o pai.
Não sou letrado, burro também não sou. Sei ler um jornal, meio arrastado, mas leio. Tem hora que agarro se esbarro numa palavra que eu não conheço.
Já tive carteira assinada e fiz tiro de guerra. Mas de uns tempos pra cá dei de desandar com as coisas. Deve ser a bebida. Miolo mole não é.
Fico pondo atenção nos fregueses do supermercado e nos carros deles. Conforme, eu nem peço pra tomar conta. Uns, se bobear passam por cima. Tem um ricaço, me dá as coisas, nem que seja um troco. A mulher dele torce o nariz e larga dele conversando comigo. Quando ela não vem, o homem fala mais e fica rindo das coisas que eu conto. Tem vez que me goza também. Um dia, com a cara mais boa do mundo chegou e perguntou por que eu gostava de ficar sentado com a bunda nos saco - fez uma pausa, disse de lixo e riu. Eu não sei nada da vida dele, mas leva jeito que foi pobre também. Um cachorro cheira o outro.
Muita gente sai com umas sacolinhas de nada ou com a mão abanando. Tem vez que até dou um pouco do meu.
As meninas do caixa não tem nenhuma ruim. Até mandam umas coisas de comer quando dão de me ver triste. Se o gerente não está por perto, elas fazem sinal, eu corro pro bebedouro e encho a garrafa. Os empacotadores são gente boa. Tem uns sacanas também. Quando o movimento está fraco, eles procuram um pra tentar, igual o Dibanda - apelidaram ele por causa do andar torto - que num dia escondeu um rato morto no meio das minhas coisas e que eu só fui perceber mais tarde em casa.
Uma menina não sai da minha cabeça: a do guarda-volume. De tão parecida com minha mulher, parece que é até gêmea com ela.
Mas o pior de tudo é de noite no barraco quando não tem ninguém pra conversar.
Desde pequeno vivi numa casa cheia, gente entrando e saindo, tudo feliz, uma farra só. Nos sábados, muita coisa pra fazer, uma laje pra bater na casa dum parente, dum amigo, um samba. Do meio-dia pra tarde as mulheres e os meninos iam chegando, a gente acendia o fogo e assava carne. Uma casa de telhado é chique, mas o melhor lugar do mundo é na laje. Se a vida não está boa, você sobe, senta num canto, espera passar.
Depois que o menino nasceu, tudo mudou. Daí comecei a embaralhar com as coisas. Tinha dia que eu olhava no espelho e não sabia quem estava do outro lado.
Saí de casa com a roupa do corpo. Bati perna, dormi no tempo, acabei no meio de caixa de papelão e de saco de lixo.
Gente boa, gente ruim. Gente entrando, gente saindo. Uns te dão água, outros te dão rato morto.
Tenho medo, muito medo. Medo de pesadelo de noite. Medo de pesadelo, não. Pesadelo todo mundo tem. Medo de não ter ninguém pra bater no braço e me acordar.
Eu só queria entrar no supermercado. Não ia importar com nada. Só queria entrar, fazer ziguezague com o carrinho nos corredores, cantar as rodas nas curvas das prateleiras, mexer com o cara da balança, torcer uma uva e enfiar na boca sem ninguém ver, passar na menina do guarda-volume e chamar ela pra dançar quando a gente era noivo.
Postado por Anchieta Rocha
Em
15/9/2015 às 15h47
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