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Quarta-feira,
30/9/2015
Da casa grande para a senzala
Guilherme Carvalhal
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Não é nenhuma novidade que as artes brasileiras sempre tiveram um pé (os dois, para ser mais preciso) fincado no interesse de levantar discussões referentes ao país. E dentro dessa aspecto as divisões sociais e a pobreza são temas principais e que sempre serviram de base pra grandes obras. Aluísio Azevedo começou mostrando as agruras de uma sociedade que se construiu em cima de ampla desigualdade e os conflitos que advinham dessa situação em O Cortiço. Alguns anos depois Euclides da Cunha retratou os conflitos do arraial de Canudos e Candido Portinari usou a pobreza como um dos principais temas de seus quadros.
Essa visão social continua nas obras dos dias de hoje. O livro Passageiro do Fim do Dia, de Rubens Figueiredo, é um exemplo moderno das condições sociais do país, sendo uma das melhores descrições da miséria reinante nas cidades grandes do Brasil. Os dois filmes da série Tropa de Elite foram mais um caso, apesar da presença do capitão Nascimento e sua alçada ao posto de super-herói brasileiro acabar reduzindo um pouco a proposta crítica.
O filme Casa Grande entra para esse grupo, sendo uma análise de relações sociais tendo o ponto de vista de dentro de uma casa de classe alta. É uma clara alusão à obra de Gilberto Freire, sendo que a atual relação entre casa grande e senzala está nas diferenças entre moradores de bairros nobres e periferia.
A história centra no adolescente Jean, um garoto de 17 anos, filho de um pai investidor e que estuda no colégio São Bento. Sua rotina de vestibulando é quebrada pelos típicos feitos de um adolescente, como sair para festas ao fim de semana e namoros.
O dia a dia de um rapaz de classe alta se mostra por um lado vantajoso pelo poder aquisitivo possuído por ele junto às muitas restrições. Um tanto quanto sonhador, Jean deseja estudar produção musical na faculdade, enquanto seus pais querem que ele estude direito e economia em uma faculdade pública, sendo assombrados pelo fantasma da reserva de vagas. Quando deseja sair, o garoto tem horários limitados, assim como seus trajetos. Querendo escapar dessa rigidez familiar, ele fala que voltará de ônibus para casa após uma balada, mas seu pai insiste em buscá-lo de carro.
Durante a noite, Jean sempre comparece escondido ao quarto de Rita, a empregada nordestina que reside em um anexo da casa. Sempre tentando partir para cima, ela o corta, apesar de provocá-lo constantemente, como na ocasião de pedir para que ele passe creme em suas pernas. Jean também mantém uma relação curiosa com Severino, motorista da família que o leva diariamente à escola. Se com o pai o rapaz sempre encontra resistência para conversar, é Severino a pessoa que o escuta e o aconselha, sendo o referencial paterno.
Essa relação familiar e com os empregados fazem uma clara ilusão a Casa Grande e Senzala, de onde vem a inspiração do título. Se no livro de Freire ele fala dos rapazes que visitam os leitos das negras ou das negras que amamentavam os filhos das senhoras, aqui vemos essa mesma relação adaptada aos tempos modernos. É a relação da carteira de trabalho e do salário o que fixa a dependência e a senzala se transforma no quartinho da empregada, tendo uma cena muito simbólica em que a família almoça na mesa e Rita come solitária em um canto, havendo um muro invisível a separá-los.
O trâmite de Jean da casa grande para a senzala vai se mostrando continuamente no filme. Além de ter essa convivência natural com os "de baixo", a relação freudiana com seu pai alimenta uma forte revolta. Seu pai está em processo de falência e isso serve de combustível para implicâncias na escola. A interferência dele em um relacionamento com a jovem Luiza é o ponto definitivo de conflito, mostrando que ele prefere o convívio com os pobres do que com seus iguais.
Um dos pontos principais de Casa Grande está nesse olhar por dentro das famílias de classe alta do Brasil, mostrando sua visão da pobreza. Se o habitual é vermos nas novelas a classe alta fechada em si mesma com suas idiossincrasias e seus dramas, aqui o foco está nesses contatos externos, na rede de relações existentes entre as múltiplas classes.
A análise de lugares comuns muitas vezes passa a impressão de ser um amontoado de clichês amarrados em um único fio narrativo. É o jovem criado no condomínio que não sabe sair sozinho de casa, a revolta dos que se consideram self made men contra a política de cotas raciais, o nordestino que vai ao forró, o garoto que é levado durante a adolescência para a zona para perder a virgindade, os trotes forjando sequestros e uma série de pontos do cotidiano popular que residem na obra. Porém, o talento do diretor quebra essa ideia de clichês pela maneira como conduz a filmagem, como nos momentos em que demonstra o medo da violência ou então as brigas dentro de casa por questões financeiras. Seu olhar é significativo para não deixar o filme soar como uma costura de ideias avulsas e sim como uma história forte e instigante.
As artes brasileiras andam em união carnal com a sociedade e com sua mazelas. O ambiente artístico sempre teve esse papel de mobilizar junto à sociedade determinados debates sobre esses problemas. Casa Grande cumpre esse papel, sem deixar de lado seu valor artístico. Foi uma das maiores obras do cinema nacional recente e merece seu lugar de destaque.
Postado por Guilherme Carvalhal
Em
30/9/2015 às 12h59
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