Era somente um homem e sua sombra
e mais um dia inteiro de permeio.
Bem que se pode dividi-lo ao meio
como uma faca parte em dois um queijo.
Era somente um homem e sua sombra
os dois em um feito na propaganda
quando se paga um só levando ambos
com o olhar sagaz de quem barganha.
É uma sombra só para um só homem
e ao sol a pino os dois quase se somam.
À noite a sombra sai subterrânea
quando o homem se deita sobre a cama.
Lá se vai ele: o homem e sua sombra.
Lá se vai ela: a sombra com o homem.
Se alguém soubesse o que pensa a sombra
do mesmo modo como pensa o homem...
Mas nem parece que o homem pensa a sombra
que o persegue assim sequela mansa
e é quase uma cadela que o alcança
se o homem bruscamente o passo estanca
para espiar a vitrina distraído
sem ter a sombra repetida pelo vidro.
Será que o homem sobrevive à sombra
ou vai largá-la como um cão sem dono?
Será que partem solidários ambos
como partem conosco os nossos sonhos?
Por que será que o homem foi-se enfim sozinho?
Será que a sombra perdeu-se no caminho?
Ayrton Pereira da Silva
(in Destempo 7Letras, 2004)