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Sexta-feira,
2/10/2015
A cada um a imortalidade de seu tempo
Flávio Sanso
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Observo o quadro que exibe a fotografia em preto e branco de uma cena congelada desde o início do século passado. 1910, mais precisamente. Há muitas pessoas na Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, centro do Rio de Janeiro. Vestem as roupas da época e olham curiosas na direção de quem lhes aponta a então moderna máquina de fotografar. A constatação é óbvia: todas as pessoas retratadas na fotografia já morreram. Outra constatação: absolutamente nada se pode saber dessas pessoas. Do mesmo modo, na cena atual de uma cidade movimentada qualquer, as pessoas que transitam agitadas pra lá e pra cá daqui a cem anos obviamente não existirão mais. E, a não ser que sejam cientistas que descobriram a cura de alguma doença, ou artistas geniais, ou modelo do artista genial (tal Monalisa), ou generais vitoriosos em guerra, ou membros da academia de letras, todos estarão desaparecidos da história para todo e sempre. É assim, milhares e milhares de pessoas passaram e passarão por este mundo e nada se pode nem poderá saber delas. Mas, claro, é caso de se admitir divergências, e nesse aspecto duas obras cumprem o papel de apresentar outras perspectivas sobre o assunto.
Agora traduzido no Brasil, o livro "Stoner", do norte-americano John Williams, acompanha toda a trajetória de William Stoner, que, nascido no campo, transfere-se para a cidade grande, cursa a universidade, torna-se professor, sofre pela morte dos pais, casa-se, tem uma filha, separa-se, aposenta-se e ... morre. O mérito do livro é ter extraído emoção do relato de uma vida comum, é ter iluminado o protagonismo de um homem afastado de qualquer proeminência. É como se o livro pudesse ter retratado a minha vida, a sua vida, a vida de um bancário, de um lojista, de um caminhoneiro.
E é de um caminhoneiro que trata o documentário "Um homem comum", de Carlos Nader. A vida de Nilson de Paula é acompanhada por cerca de vinte anos, período em que são examinadas as ocorrências ordinárias do convívio familiar, tais como a dor do luto e a relação conflituosa entre pai e filha. Também aqui, a obra artística joga luz sobre uma vida que se confunde com tantas vidas ao redor e que certamente passaria despercebida não fosse os holofotes das câmeras. Nilson de Paula, o homem comum, é, antes de tudo, dono de uma vida especial.
Enfim, as duas obras querem dizer que a vida de qualquer um daria um livro ou daria um filme. As duas obras demonstram que, usando uma adaptação torta de Vinícius de Moraes, cada um é imortal a seu tempo.
Texto originalmente publicado no site reticencia.com
Postado por Flávio Sanso
Em
2/10/2015 à 01h48
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