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Segunda-feira,
23/11/2015
Esta estranha fronteira entre homens desiguais.
Sonia Regina Rocha Rodrigues
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Moro em Santos, cidade portuária do Brasil.
Da porta da casa para dentro é tudo limpo, organizado e farto. Na soleira da porta, espreita a sujeira. Mendigos esfarrapados espremem-se nos espaços entre os portões a gemer variações da ladainha bem conhecida "umesmolinhaporamordedeus".
O lixo precisa ser entregue diretamente nas mãos do lixeiro quando o caminhão dobra a esquina, senão eles fuçam tudo e esparramam os restos de comida pelas calçadas.
Roupas e outros objetos usados eu ofereço a eles antes de levar ao brechó da igreja, exceto pelo sapato branco que a vizinha, sem o menor traço de vergonha, arrancou das mãos do pedinte:
- Fico com este, é meu número e a marca é boa.
O sorriso divertido no rosto do mendigo confirmou minha desconfiança: esmolar é mais rentável que salário mínimo e pensão de aposentado. Desconfiança que virou certeza quando minha prima atacou o mais idoso entre eles:
- Ora, se não é o Argemiro, meu vizinho, dono de dois bangalôs, um onde ele mora, outro que ele aluga...
- Leve a mal, não, é que nas ruas ganho mais e não pago impostos.
Nunca dou dinheiro, que irá direto pro dono do bar ou pro bolso do traficante.
Nunca dou nada a quem carrega crianças, a gente nunca sabe se foram raptadas, ou se são gerenciadasdas como fonte de renda. Comida, vi muita vez jogada fora, como o bife quentinho que dona Maria estava fritando e voou longe com um indignado 'quero é cachaça'.
Onde moro, a rua é um vidão - todas essas cestas básicas distribuídas pelos religiosos, e o café com pão da madrugada oferecido por voluntários esvaziam as filas de candidatos a emprego. Miséria mesmo, vi em outras paragens, nas rugas secas de olhos sertanejos, nos olhos tristes de refugiados tendo em mãos os passaportes em ordem e nos bolsos, moeda alguma.
Miséria de comover, a do jovem ruivo mal cheiroso, abraçado a um cão perebento, num pranto tão dolorido que até desconfio que ele chorava por si mesmo e não pelo companheirinho. Pelo que sei, muitos desses jovens são doentes, como o estudante de engenharia...
Essa história é interessante. Eu estava trabalhando quando chegou, trazido pela ambulância, um rapaz que supusemos ser negro. ele foi levado para o banho e voltou brando e loiro. Foi quando minha colega reconheceu o vizinho que, enlouquecido pela dor da perda de ambos os pais, deu para beber e perdeu-se no mundo. A família ignorava o paradeiro dele até aquele dia, quando ela pode informar e salvá-lo do abandono.
Alguns capricham no método de esmolar, mesmo porque, para alguns, a rua é o espaço temporário onde garimpam oportunidades artísticas, Piaffs à espera da revelação. Já ouvi violinestas dignos de uma sinfônica e um criativo sujeito que construiu um órgão com garrafas de água e toca lindas peças clássicas. Nas ruas também há cultura.
A vaca foi o mais criativo recurso em que (quase) tropecei. Foi em um vilarejo da Provença, eu apreciava o passeio pelas sinuosas ruelas amuralhadas, e pulei de susto ao ver a vaca. Amarela, com seu badalinho encantador, a balançar a cabeça, mugindo indolentemente. Logo percebi a corda presa ao pulso do mendigo ao lado, e neca de cheiro de estábulo. Uma falsa vaca, boneco bem feito, em tamanho natural, que o homem exibia sabe-se lá por que misteriosas razões... digno de um Victor Hugo, o meu mendigo da vaca!
O campeão do bizarro, no entanto, foi o swagman de Sydney. A Austrália festejava seu dia com fogos noturnos na famosa ponte. Milhares de pessoas passeavam pelas baías, e, por pouco, passaria ao largo do corpo abraçado à ' Matilde', tão feio, tão sujo, tão fétido, tão decaído que nem cachorro possuía, mas chamaram-me a atenção, em sua mão,o saltitante, nervoso movimento de...um rato.
A multidão me carregou, eu duvidara do que vira, mas a careta de nojo de minha filha confirmou, era mesmo um preto e peludo habitante de esgotos, e não um simpático camundongozinho de laboratório.
Aquela noite, houve um lindo foguetório, risos de gente alegre espalhados, e um desassossego em minha mente.
Voltei pelo mesmo trajeto, na esperança de esclarecer o engano. Que nada! No vão fatídico, como a escarnecer de minha sensibilidade, o rapaz parece ter escolhido de propósito o momento em que me aproximei para erguer a mão, inclinar o rosto para frente e estalar uma beijoca na boca do rato.
São fatos como esse que me convencem de que, também nas sociedades, existem universos paralelos.
Notas:
swagman = andarilho, na gíria australiana
Matilde = mochila usada pelos andarilhos, na gíria australiana
Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
Em
23/11/2015 às 13h18
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