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IDEIA NA CABEÇA
DA IDEIA
AO ROTEIRO
Todo filme, seja curta, média ou
longa-metragem, documentário ou ficção, com alto, baixo ou nenhum orçamento,
começa com uma ideia. Você tem uma
ideia que quer compartilhar com as outras pessoas de forma audiovisual, e a
partir daí mobiliza outras pessoas para que colaborem com você nessa
empreitada. O cinema é por definição uma arte coletiva — claro que nada impede
que você filme apenas aspectos da natureza (por exemplo, um canteiro de flores
num parque público de sua cidade, ou as travessuras de seu gatinho dentro de
casa), edite e publique isto na internet, sem a interferência de mais ninguém.
Mas se não houver a participação de outras pessoas, nem que seja assistindo, qual
o sentido em se fazer um filme?
A ideia é apenas isto, uma ideia.
Para se transformar em filme, ela primeiro deve poder ser expressa de forma
clara e concisa, de modo a poder ser facilmente entendida por qualquer outra
pessoa. Digamos que você queira adaptar a peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, ambientando a ação no Rio
de Janeiro nos dias atuais. Essa frase que acabei de escrever — "adaptar a peça
Romeu e Julieta, de William
Shakespeare, ambientando a ação no Rio de Janeiro nos dias atuais" — já serve
para transmitir a ideia. Essa frase concisa que descreve brevemente a ideia
para o filme é ora chamada de sinopse,
ora de storyline.
Há quem diferencia sinopse de
storyline, como o roteirista Doc Comparato, em seu livro Da Criação ao Roteiro: "a story line representa o quê (o
conflito-matriz escolhido), a sinopse representa o quando (a temporalidade), o
onde (a localização), o quem (as personagens) e, finalmente, o qual (a história
que vamos contar)".
O passo seguinte é elaborar o argumento, que, no entender de Garcia
Filho, é "a verdadeira base de todo o filme", acrescentando que "por argumento,
se compreende o conjunto de ideias que serão desenvolvidas no roteiro. Ele tem
a ação delineada, bem como a sequência, personagens e locações. Normalmente não
tem diálogos e sua narrativa é pobre". Seu tamanho é variável; enquanto uma
convenção de Hollywood estipula que uma página de argumento equivale a dez
páginas de roteiro, o crítico Inácio Araújo afirma que "normalmente são
utilizadas de duas a quatro páginas para indicar as linhas gerais da história
que será tratada: o que acontece, o porquê e quem são os personagens."
Já o roteiro é um texto com a sequência detalhada das cenas do filme, na
ordem em que serão apresentadas ao espectador, contendo indicações de cenários,
horários em que as cenas se passam, personagens (com atitude corporal e
entonação a usar nas falas, se necessário) e os diálogos completos —
basicamente, o roteiro pode ser considerado "o filme por escrito".
Para exemplificar melhor as
diferenças entre argumento e roteiro, vamos ver trechos que correspondem à
sexta cena do filme Cidade de Deus,
de Fernando Meirelles e Kátia Lund, cujo roteiro foi escrito por Bráulio
Mantovani:
Argumento:
Pelas
ruas da Cidade de Deus Cabeleira, Alicate e Marreco fogem da polícia. Eles
percorrem algumas ruelas, trocam de roupa e correm até o campinho onde fingem
jogar bola com os meninos.
Roteiro:
6 EXT.
RUAS DO CONJUNTO - DIA
Cabeleira,
Alicate e Marreco correm, perseguidos de perto, por um POLICIAL que dá tiros
para o alto. Eles riem. E também atiram para o alto.
BUSCA-PÉ
(V.O.)
O Trio
Ternura não tinha medo de ninguém.
Nem da polícia...
Eles achavam que a Cidade
de Deus
era deles. Mas tinha um monte de
bandido
que achava a mesma coisa. Naquele
tempo, a
Cidade de Deus ainda não tinha
dono.
Os
bandidos se metem pelas ruelas do local.
MONTAGEM
cria a sensação de labirinto: o Policial nunca sabe para onde ir.
Os
bandidos param um instante. Tiram as camisetas vermelhas, jogando-as por trás
do muro de uma casa. Todos agora estão de camiseta branca. Eles continuam
correndo até o...
Há uma
importante diferença a respeito de roteiro quando o filme a ser produzido for
um documentário. Num filme de ficção, você primeiro estrutura toda a história
no papel para só depois filmá-la. Num documentário, você trabalha inicialmente
com sinopse e argumento, e aí já parte para produzir a filmagem e filmar. Após
a filmagem, você assiste o material captado, fazendo a chamada "decupagem" (ou
seja, você anota o que foi gravado e transcreve as falas) e só então escreve o
roteiro, que será utilizado nas etapas de montagem e pós-produção.
AUTORIZAÇÕES
Fazer
cinema envolve, em algum momento, a necessidade de obter autorizações de outras
pessoas. Vamos ver os principais casos:
- você
precisa obter autorização para adaptar obra de outra pessoa.
Fernando Meirelles e Kátia Lund precisaram obter de Paulo Lins a autorização
para transformar o romance Cidade de Deus
em filme. Já uma adaptação de qualquer peça de Shakespeare pode ser feita
livremente, pois o autor é falecido há mais de 70 anos, prazo após o qual tudo
o que alguém tenha produzido passe ao domínio público. Durante o período entre
a morte de um autor e a entrada de sua obra no domínio público, a autorização
deve ser obtida junto aos herdeiros. Geralmente a autorização é concedida por
um prazo determinado, ao fim do qual, se o filme não foi ao menos iniciado, o
diretor perde o direito a adaptar a obra para o cinema, e o autor pode vender
os direitos para outro produtor.
- você
precisa obter autorização para utilizar obra de outra pessoa. Por
exemplo, para utilizar uma música na trilha sonora de seu filme, ou ainda um
poema ou qualquer texto que não seja seu e que não faça parte da obra cujos
direitos foram adquiridos. Em relação a música, caso ela tenha mais de um
autor, a contagem dos 70 anos para entrada em domínio público só inicia após a
morte do último parceiro. Por exemplo: "Carinhoso" é de Pixinguinha e João de
Barro. Pixinguinha faleceu em 1973 e João de Barro em 2006. Portanto,
"Carinhoso" só passará ao domínio público em 2077 (a liberação se concretiza em
1º de janeiro do ano seguinte ao que se completam as sete décadas do
falecimento). Até lá, a inclusão de "Carinhoso" em filme precisa ser autorizada
pelos herdeiros de ambos os autores. A inserção de cenas de filmes brasileiros
feitos há mais de 70 anos independe de autorização, bem como o uso de textos de
autores falecidos há pelo menos 70 anos. Obras de autores estrangeiros podem
ter prazos maiores de proteção aos direitos autorais, pois cada país é livre
para fixar o período que quiser, desde que nunca menos de 50 anos, prazo
estabelecido pela Convenção de Berna.
- você
precisa obter autorização para usar a imagem das pessoas. É o chamado
"direito de imagem". Em cinema, esse direito está mais ligado a documentários —
todas as pessoas que irão dar depoimento precisam assinar um documento
afirmando que autorizaram ser filmadas. Não é necessário obter essa autorização
quando a filmagem for feita em local público, ou em evento aberto ao público.
- você
precisa obter autorização para usar o nome das pessoas. Isso pode
acontecer, por exemplo, se você quiser adaptar uma biografia. Digamos que você
queira filmar um trecho do livro de memórias Antes que me Esqueçam, de Daniel Filho. Depois de obter a
autorização do autor para a filmagem, você teria que buscar a autorização de
cada pessoa real citada por Daniel no livro que vá se tornar um personagem do
seu filme — é um caso semelhante ao do uso de obra alheia: as autorizações
referentes a pessoas já falecidas devem ser obtidas com seus herdeiros, com o
detalhe de que neste caso não existe o prazo de 70 anos que há em relação ao
direito autoral. O direito de imagem é um direito moral, e não prescreve, ou
seja, nunca tem fim.
- você
também irá precisar de autorização para filmar em imóveis de outras pessoas,
sejam casas, empresas, terrenos, fazendas etc. — enfim, todo e qualquer lugar
onde você não poderia entrar livremente. Filmar na rua, praia, praças, parques,
estradas, rios, lagos etc. independe de autorização.