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Quarta-feira,
2/12/2015
Paris era uma festa
Anchieta Rocha
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Há quase uma hora sentado na varanda do hotel, tento em vão escrever alguma coisa, enquanto Zelda mais uma vez é levada para o sanatório por causa das crises e das bebedeiras.
Faz pouco me lembrei de Ernest Hemingway, quando da nossa ida a Lyon para trazer meu Renault, tudo por causa de mais uma das loucuras da minha mulher que havia danificado a capota dele.
Ela adorava os conversíveis. Certa vez, num fim de tarde de outono, não posso negar, foi bonito. Me obrigou a parar no Central Park e comprar, como disse, um buquê de balões. Sentada no para-lamas, rodamos vários quarteirões. Nunca vai apagar da minha memória o deslumbramento das pessoas com nossa loucura.
A primeira vez que estive com o Ernest foi no Dingo, nosso bar preferido. Fomos bebendo, a conversa rendeu. Falamos de tudo, principalmente de literatura. Ele era um jornalista estreante e vinha publicando contos em alguns jornais da Europa. Ficou lisonjeado com meu convite pra ir a Lyon. Num dado momento prometi que ia lhe passar o último exemplar do Great Gatsby que Miss Stein estava lendo.
Não sei se o convidei pela boa companhia, ou por aparentar determinação. Despachado, entendia de tudo, de armas a mulheres, cara pra qualquer parada. Dois anos mais velho, eu era tímido, inseguro, querendo morrer a toda hora, mesmo levando uma vida intensa.
Cheguei a Lyon depois dele. Rodei a cidade e acabei encontrando-o num hotel com cara de bangalô. Eu havia tomado umas doses no trem para quebrar a angústia por ter deixado Zelda em Paris. O aviador francês com quem ela tivera um caso não me saía da cabeça. A contrariedade tolhia minha inspiração. Nada de varar a noite como antes, febrilmente escrevendo páginas e páginas.
Lyon foi bom para desanuviar. Depois de duas garrafas de Mâcon branco, a nossa conversa ficou agradável. Eu o invejava pela serenidade com que falava de seus planos e de Hadly, sua esposa. Durão o cara. Engolia as doses com ferocidade, agitava-se, enquanto eu me encolhia como uma criança amedrontada.
Observando o céu pesado, o dono da oficina disse que não conseguiríamos chegar a Paris porque o Renault sem a capota podia virar uma canoa.
Enfiei o pé no acelerador.
Não andamos meia hora e tivemos que parar num hotel de beira de estrada. Aí começou tudo. Então pude perceber o quanto desamparado e fraco eu era - imbecil também.
As nuvens pesadas que via através da janela do quarto me asfixiavam. Cismei que estava com pneumonia. Três babás não teriam feito o que o Ernest fez por mim. Eu falava do medo de morrer e deixar Zelda e a menina. Mas o que me atormentava era imaginá-la ao lado do piloto francês dando rasantes sobre Paris.
Ridículo, isso mesmo, me senti ridículo depois de todo o aparato para me aliviarem da incurável doença.
O camareiro apareceu e sugeriu um médico. Um açougueiro do interior? Ninguém botava a mão em mim.
Decidi que logo que acabássemos de beber, eu ia descer e telefonar para minha mulher.
Tentei, a ligação ia demorar, talvez o tempo, disse a telefonista.
Mais tarde voltei, fiz outra ligação e ouvi minha filha dizer que a mamãe tinha saído.
Pus o telefone no gancho e pedi um interurbano para o meu editor em Londres. Não falei coisa com coisa. Para justificar, disse que a ligação estava ruim, que depois voltava a chamar.
O meu rosto pegava fogo. Realmente achei que estava com febre. Fui pra rua e fiquei debaixo do toldo, respirando fundo, esperando ar frio aplacar o que ia dentro de mim.
Subi e conversamos enquanto nossas roupas secavam.
Em Paris encontrei o Ernest outras vezes. Os bares variavam, mas ainda tínhamos preferência pelo Dingo. Nos víamos também na livraria da Sylvia Beach, aonde chegavam livros do mundo inteiro.
Os anos foram passando e ele começou a aparecer com mais frequência nas colunas literárias. Irrequieto como era, gostava de viver as mais variadas aventuras. Tinha notícias dele através de amigos e da imprensa. Passava uma temporada na África, voltava pra América. Viajava pra Europa, fazia cobertura da guerra civil espanhola e em seguida aparecia em outro lugar.
Companheirão o bastardo. Pena que não esteja aqui ao meu lado no hotel, me acompanhando no vinho, de novo um Mâcon branco. De vez em quando vem a angústia, a velha angústia que me persegue a vida toda. As pessoas acham que eu não tenho nada, que sou um cara alegre e espirituoso. Sinto que estou chegando ao fim. As mãos tremem, e os pensamentos se sobrepõem uns aos outros, buscando o passado que vai fugindo. Queria ser corajoso e decidido como o Ernest pra acabar com tudo de uma vez.
Postado por Anchieta Rocha
Em
2/12/2015 às 10h30
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