Não me considero melhor nem pior do que ninguém: sou um homem da planície. Tive catapora, sarampo, coqueluche, caxumba, e tenho pensamentos sinistros. Um superego tirânico me mantém sob seu tacão até hoje - o que faz de mim um perfeccionista obsessivo e doentio.
Se acaso tiver algum crédito em minha deficitária contabilidade emocional (coisa de que até duvido), só posso atribuí-lo à circunstância fortuita de haver nascido na terceira década do século XX, quando a Alemanha, debaixo do nariz das nações executoras do Tratado de Versailles, ostensivamente gestava a formidável máquina de guerra que aterrorizou o mundo. Época de extremas contradições, o século XX espelha com precisão e fidelidade o que todos somos, animais divididos entre instinto e razão.
Mas, como dizia, ter nascido no século passado ensejou-me a oportunidade de uma visada em perspectiva que o distanciamento no tempo proporciona. Não sei se essa espécie de cosmovisão representa algo de vantajoso. Tenho sérias dúvidas.
Assim, cheguei ao mundo ainda num tempo em que predominava a cultura europeia, a língua francesa era o idioma universal com todo o seu acervo intelectual e artístico, representado por personalidades de magnitude estelar nos múltiplos campos do fazer humano. Época do cultivo do espírito, anterior à civilização pela imagem, era da cultura humanística, herdada da Grécia Antiga, a Magna Hélade, rejuvenescida pelas conquistas do Renascimento e da Democracia Moderna.
Nada mais natural que minha formação fosse forjada nos moldes da educação formal então em voga: o estudo do idioma merecia especial ênfase, pela óbvia razão de que vivemos num mundo de relação e o conhecimento do vernáculo constituía o primeiro passo no domínio da linguagem que, além de ser a ferramenta de comunicação por excelência, representa sobretudo o cimento que consolida a unidade de um povo como nação.
Sob a orientação de meu pai, que me abriu as portas do universo mágico da literatura, iniciei-me na leitura de entretenimento devorando os números do Tico-Tico, revista em quadrinhos precursora das modernas HQs, tornando-me cúmplice das trapalhadas do trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona, personagens genuinamente brasileiros concebidos pelo traço burlesco de Luiz Sá. Daí para o acesso aos gibis com seus heróis tipo Flash Gordon, Fantasma, Príncipe Submarino, Tocha Humana, Capitão América, Batman e tantos outros foi um pulo. Viajei, ainda na infância, pelos livros do genial Monteiro Lobato - e vieram então O Saci, As caçadas de Pedrinho, Reinações de Narizinho, O Picapau Amarelo, até as versões infantojuvenis dos temas mitológicos como O Minotauro, Os doze trabalhos de Hércules e O D. Quixote das crianças. Seguiram-se as leituras de escritores estrangeiros, sobretudo franceses, como Victor Hugo, Jules Verne, os Dumas, pai e filho, com breves digressões pelos os autores de dicção inglesa e italiana, devidamente traduzidos, como Sir Walter Scott, Rudyard Kipling, Mark Twain, Emilio Salgari, entre outros. Ah, claro, e o indefectível Sherlock Holmes, de Conan Doyle...
Aprendi com meu pai a amar os livros, que, mais do que simples objetos, se afiguravam aos meus olhos como uma espécie de seres reveladores das rotas da imaginação nas tramas que armazenavam. E foi então que ao prazer físico do folheá-los, agregou-se o misto de respeito e cumplicidade que me tornava também um personagem de carona nas estórias que narravam. Hoje, os linguistas aludem à denominada teoria da recepção segundo a qual o leitor, ao aderir ao texto pela leitura, torna-se, por assim dizer, seu coautor, emprestando vida à letra morta.
Meu rito de passagem para a idade adulta coincidiu com o batismo de fogo na literatura portuguesa, arrostando a "selva selvaggia" da tríade romântica llusitana, formada por Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Antonio Feliciano de Castilho, somente capaz de ser desbravada com o Caldas Aulete a tiracolo. Tornei-me, à custa de tentar decodificar aqueles textos, um quase especialista em sinonímia, atributo que se esmaeceu com o passar dos anos de desuso.
De lá para cá, o mundo sofreu uma revolução, caracterizada, sobretudo, pelo sequestro do idioma, avassalado pela invasão de barbarismos. Aos que não sabem que palavra é essa, recomendo que consultem um dicionário; perdão, senhores, pelo ato falho, que recorram ao doutor Google...
A passos largos, vamos perdendo o domínio do vernáculo e junto com ele nossa identidade nacional.
Vivemos a era da extinção dos livros impressos, substituídos pelos e-books e outros veículos de comunicação virtual. Pois é, essa a nossa realidade.
Metaforicamente, poderíamos figurar essa transição como a passagem da borboleta para a crisálida, ou seja, uma metamorfose às avessas?
Mas você está, propositalmente, ignorando o notável progresso técnico-cientifico que atingimos, a ponto de se cogitar, através das células-tronco e da decodificação do genoma, na possibilidade até de alcançarmos a juventude eterna, isso sem falar no inimaginável progresso da eletrônica que não conhece limites. Vive-se agora uma era em que a mais ousada das fantasias vai se tornando realidade.
Não sei se devo responder à provocação de um demiurgo que cavilosamente se disfarça em otimista de plantão, descortinando um mundo de sonhos hedonísticos, em que tanto a ciência quanto a tecnologia detêm o condão de transformar a vida numa fruição sem fim. Não sei se devo mandá-lo ler o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, mas, diante do risco concreto e imediato de vê-lo navegando num texto virtual, engulo o que ia dizer.
Não sei se devo teorizar sobre o tema mais que batido do eterno descompasso entre o progresso material e o retrocesso moral que pontua nossa trajetória existencial. Penso que não, pois, na verdade, esse demiurgo não passa de uma invenção minha ou do meu próprio alter ego.
E assim caminha a humanidade, oscilando perigosamente entre dois extremos, num movimento pendular. Não sei o que mais - além da ameaça do apocalipse nuclear, dos homens-bomba, da espionagem virtual, da degeneração dos costumes, da abolição da ética e da impunidade - ainda nos aguarda neste planeta estuprado a cada minuto pelo bicho-homem cuja criminosa irresponsabilidade não tem mais fronteiras.
Não sei o que será de um mundo em que seus habitantes se tornaram imunes ao horror das tragédias a que assistem comodamente instalados em suas casas, como se as reportagens transmitidas pela televisão em tempo real fossem apenas cenas de um filme. Francamente, não sei como pessoas adoram ver sangue jorrando nos octógonos dos UFCs e MMAs da vida podem ter algum futuro como civilização.
É por isso que, apesar de todos os contrastes e confrontos, dos altos e baixos, prós e contras, me considero afortunado por ter nascido no século passado e, por falta exclusiva de tempo vital, não ter muito mais a testemunhar.
Mas tudo isso que foi dito aí em cima, cai fragorosamente por terra, diante de meu olhar perplexo, quando o próprio autor destas linhas se socorre do milagre da virtualidade para transmiti-las a hipotéticos leitores por meio de um post.
Essa, a meu ver, a grande magia da vida, essa roda-gigante que nos põe a girar...girar...girar... passando do êxtase ao assombro, da alegria à tristeza, da grandeza à pequenez, porque para isso nascemos e assim prosseguiremos até as cortinas se fecharem.
Ayrton Pereira da Silva