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Quarta-feira,
6/1/2016
Questões de Representatividade
Guilherme Carvalhal
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Jessica Jones foi abusada pelo vilão da série, confrontou-o ao longo dos episódios e finalmente o derrotou ao final. Em novelas da Globo o tema do beijo gay tem aparecido de maneira mais constante. O visual de personagens como princesa Leia e Lara Croft tem sido a tônica de discussões. Esses assuntos e diversos outros causam impacto sobre o público quando esse assiste temas de seu interesse em produtos midiáticos diversos. Em tempos em que a inclusão de grupos outrora excluídos, esse tipo de presença gera sensações de mudança maior, como se o mundo correspondesse a uma resposta do que aparecesse nos meios de comunicação.
Nessa sociedade fragmentada e midiatizada em que vivemos, é um movimento muito corriqueiro que as pessoas se vejam representadas e atingidas através da comunicação em massa. Militantes feministas enxergam a derrota de Kilgrave diante de Jessica Jones como uma bandeira do fortalecimento feminino e, de igual maneira, tirar da heroína seu aspecto sensual é um símbolo de desconstrução de uma conceituação da mulher enquanto mero elemento sexual. Semelhante a isso, os personagens negros se tornam mais corriqueiros, não apenas incluídos nos papéis que tipicamente caberiam apenas a negros em produções, mas em novas posições dentro da trama. A sugestão de homossexualidade em um filme de 007 foi algo que gerou amplas discussões.
A problemática está justamente nos aspectos da sociedade em que ela se vê fragmentada e muitas vezes em contato com a realidade apenas à distância, recebida pela TV ou pela internet. Para a classe média, pobreza e miséria são conteúdos midiatizados ou no máximo fruto de passeio antropológico. De igual maneira para pessoas brancas o racismo é algo distante. O conhecimento da desigualdade e da exclusão chega menos pelo contato direto do que pelos meios de comunicação. Além disso, falamos de públicos diferentes, que apesar de se crerem militantes ou engajados, o são pela ótica capitalista, meros consumidores contabilizados na audiência. Ou seja, acredita-se em uma representação midiática fomentada por um discurso autoral ou mobilizador quando na verdade o que se tem é o envolvimento de um cliente com um determinado produto feito com o intuito de gerar lucro.
Quando falamos da representação de um determinado grupo social, falamos de um grupo que dentro de si mesmo é multiplamente fragmentado. Se falarmos em mulheres, podemos dividir por faixa etária, renda, escolaridade, cor, etc. Com negros ou quaisquer outro tipo de grupo, o mesmo ocorre. No modelo atual do capitalismo, vivemos um modelo de marketing focado em uma sociedade cada vez mais fragmentada em nichos específicos. E é para esses nichos mais específicos que os produtos tendem a ser desenvolvidos. TV por assinatura tem um conteúdo mais focado em pessoas com renda mais alta, enquanto a TV aberta tem conteúdo mais popular. Questões de marketing.
Ao observarmos a produção de conteúdo televiso, aberta e por assinatura, nitidamente podemos perceber como ao longo dos anos temos conteúdo cada vez mais picotado, de reality show de surfe a programa de culinária indiana. De tal maneira, a abrangência de senso de representação tende a aumentar cada vez mais por parte dos diferentes públicos. Basta ver como a novela Babilônia conseguiu chamar a atenção de um determinado nicho de público (apesar de sofrer críticas de outra parte).
Esse senso de representação acaba criando distorções de percepção, fruto do entendimento de que a mensagem passada é o correspondente fiel da realidade. Isso é tema de discussões filosóficas na área de semiótica. O conteúdo midiático é um signo, uma mensagem repassada. É apenas uma comunicação que representa algo e atinge o receptor. Porém, em tempos de alta mediação, quando os valores transmitidos assim possuem valor maior que aqueles mais tradicionais (família, escola, igreja), quando alguém se vê mais inteirado com uma TV do que com o vizinho, essa mensagem atinge um significado maior.
Imagine uma produtora de filmes ou de programas de TV. Um grupo roteiriza, outro produz, outro atua, e isso tudo é embalado e entregue ao espectador. É fruto de uma indústria de produção, algo nem tanto artístico, focado no mero entretenimento. Sua capilaridade consegue atingir níveis muito altos de público, levando ideias, conceitos e valores que interagem com essa sociedade. Podemos dizer que algo realizado dessa forma constitui de fato uma mediação entre o indivíduo e a realidade? Quando um roteiro sobre criminalidade é filmado, nós temos um retrato da violência como ela é ou a maneira como o roteirista a enxerga, dentro de sua realidade e de sua visão de mundo? O mesmo pode valer para qualquer outro tipo de temática.
Edward Said em seu livro Orientalismo fala sobre como a população do Oriente Médio nunca se representou, mas sempre foi representada por outros povos. Então a construção de sua imagem passa pelo crivo das pessoas que se envolvem na elaboração da mensagem. Quando um filme sobre romance que tem por base atingir o público feminino é exibido, a figura masculina é mostrada como doce, atenciosa, um modelo de príncipe de contos de fadas. Quando se fala em um filme focado para público masculino, a figura feminina é desprotegida e busca o homem para defendê-la. Meras adaptações conforme o interesse de um público em encontrar histórias que agradem ao seu estereótipo de realidade.
Portanto, é complexo afirmar que alguma produção massiva possa ser taxada como a realidade em si. Seu enfoque sempre estará na mera representatividade de alguma ideia ou valor, levando em consideração aspectos múltiplos como os perfis de públicos a serem atingidos em sua transmissão e a própria relação dos produtores com aquilo que se propõem a abordar. O efeito pode se notar mais enquanto representatividade do que como uma apresentação de realidade.
Quando falamos em protagonista negro ou lésbica, o efeito sobre o público será no âmbito de como se vê a representação desses grupos de pessoas na sociedade. No caso do negro, historicamente sua representação sempre foi limitada a conceitos determinados de seu papel na sociedade. É a figura do escravo em filmes de época, a do favelado, do jogador de futebol, do malandro, do sambista. Nas produções estrangeiras, é a figura do morador de periferia, de alguém inserido na cultura do hip hop. O negro enquanto protagonista heroico é algo pouco explorado, fruto das relações capitalistas, pois sempre será preferível o branco aos olhos do público. Olhando os negros que ganharam Oscar, temos uma percepção bem abrangente disso. Forest Whitaker ganhou por representar Idi Amin Dada, ditador de Uganda. Octavia Spencer ganhou em Histórias Cruzadas representando uma empregada negra nos Estados Unidos em uma época de forte preconceito racial. Ou seja, é uma representação categoricamente estereotipada. Tanto que produções como Shaft e a figura de Sidney Poitier foram emblemáticas na indústria do entretenimento, ao aparecer o negro heroico, ativo e defensor dos bons valores - fruto muito forte do movimento negro nesse país, que primou em colocar o negro como figura ativa e preponderante da sociedade.
Quando falamos de heroísmo, falamos de algo fruto da fantasia. Mas podemos colocar um paralelo disso dentro da sociedade. Como é nos múltiplos nichos da sociedade deparar-se com um policial negro que enfrenta os bandidos? Será que há um reconhecimento disso enquanto algo palpável? Ou temos uma representação, como por exemplo, pessoas que passam a se orgulhar de sua raça ao vê-la exposta dessa maneira em um veículo de comunicação? Mais ainda, podemos dizer que o efeito dessas produções podem ser positivos dentro da sociedade, funcionando como um fomento do orgulho para grupos que sempre se viram excluídos? Outro ponto é pensar que junto à representação vem juntamente o nicho de mercado. A inclusão do negro nas produções carrega também a formação de novos públicos consumidores, tanto é que junto a esse movimento veio junto um mercado de produtos para público negro.
McLuhan cunhou o termo aldeia global, referindo-se ao senso de proximidade que os tempos modernos propiciaram. A menina correndo após bombardeios no Vietnã ou o rapaz que parou uma fila de tanques na China são memórias emblemáticas pelo furor causado. É basicamente sobre isso que a representação midiática tange. Temos um sofrimento ou um ato heroico que simbolicamente comove o mundo inteiro. Ao mesmo tempo há muitos outros fatos semelhantes que não recebem o mesmo destaque. O 11 de setembro e a imagem das torres caindo geram um impacto muito forte, apesar de que mundo afora tragédias humanitárias de maior gravidade não atinjam com tal impacto o imaginário coletivo, efeito semelhante ao dos recentes ataques em Paris. Ou seja, a figura expressa em uma produção talvez não seja um correspondente social, mas gera essa sensação de que sim. Uma figura feminina forte à frente de uma produção pode dar a mulheres de classe média (essas menos atingidas pela exclusão do que mulheres de renda mais baixa) um senso de autoconhecimento, de se refletir nela, apesar de não ser esse o panorama geral, em que mulheres estarão em um patamar de emprego e renda abaixo dos homens.
É difícil traçar um panorama de como produções em massa podem promover mudanças na sociedade. O que se pode com maior facilidade notar - fenômeno impulsionado em tempos de web 2.0 - é o reverberar dessas produções através do reconhecimento do público por elas. Essa relação não é necessariamente de realidade, mas encarada enquanto tal.
Postado por Guilherme Carvalhal
Em
6/1/2016 às 23h23
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