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Quarta-feira,
27/1/2016
Temperamental e Encantadora
Ezequiel Sena
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Por Esechias Araújo Lima
Hoje, nossa casa amanheceu mais vazia. A sapeca Kyra achou de ir embora, voar. Confesso que não foi um animalzinho comum: temperamental, imprevisível, brigona, porte de Alteza.... Mas tamanha lhe era a ternura no olhar, que despertava incontrolável vontade de afagá-la.
Kyra tinha muito mais dos felinos que dos cães. Ficava à espreita e saltava sobre pássaros, roedores e o mais que fosse que lhe estivesse ao alcance. Sorrateiramente, como convém a gatos fazê-lo. Também não era de ladrar. Corria como uma seta em direção ao alvo. Mais parecia uma loba.
Tinha olhos orientais, puxados. Isso lhe conferia uma beleza singular. De verdes, foram-se acastanhando, ao decorrer do tempo, sem, contudo, perder o encanto.
Não era muito de festa. Não se pode dizer que era um cãozinho dócil, amoroso com quem quer que fosse, a não ser com Thayane, noiva de Pedro, meu filho do meio.
Um dia, em pleno cio, Kyra avançou contra mim - sabe-se lá por quê - e me feriu. Talvez um gesto brusco, ou a própria tensão do mênstruo, fê-la cravar-me os dentes em várias partes da mão e do antebraço direitos. O mais irracional de tudo é que continuei a amá-la na mesma intensidade. Explicável? Talvez. O amor é um sentimento incondicional, verdadeiramente divino.
Um dia, ela amanheceu demudada. A cauda baixa sinalizava tristeza, ou doença. Levei-lhe a uma clínica veterinária. Diagnosticado “piometra”, foi submetida a uma histerectomia.
Na última visita que lhe fiz, fui acompanhado por Pedro e Thayane. Como disse, Kyra nutria uma paixão inexplicável por Thay. Digo inexplicável, porque se viam muito esporadicamente, mas, ao vê-la, Kyra era tomada de uma euforia tal, que lhe cegava para quem estivesse por perto. Naquele território do encontro, só existiam Thayane e ela. Minha esperança era que a presença da pessoa a quem devotava tanto amor a fizesse demonstrar um laivo que fosse de reação, ao menos um pouco de alegria. Qual o quê! Prostrada e impassível estava, assim ficou, não obstante dose redobrada de carinho. Ali, foram-se as esperanças de que a traria de volta para casa.
Quando me ligaram comunicando a morte de Kyra, chorei um copioso choro de compaixão. E continuei a fazê-lo por perto de duas semanas. Até hoje, na verdade. Falta? Não creio que sinta muito a sua falta. As cenas mais consternadoras são as das visitas a ela na clínica.
Como disse, seu olhar miúdo era como uma seta de fogo dentro dos meus olhos, dizendo mais que palavras. Eu te entendia, “minha branca”. Ah, sim! Kyra era uma chow chow champanhe, com a juba bem alva e de um pelo sedoso, muito macio, daí tratá-la, carinhosamente, por “minha branca”. É que tenho outra - Nala é seu nome - também chow chow, caramelo, mais dócil, mas sem o algo a mais que distinguia Kyra de todos os demais animaizinhos que já conheci.
Retomando: as cenas que me doem são aquelas em que, durante as visitas, ela, meio que emburrada - já o era por natureza e isso recrudesceu com o desconforto da doença -, me dirigia um olhar de rogo para tirá-la dali. Na penúltima, ela estava ao soro. Mesmo assim, ao acarinhá-la, olhava-me com incisivo pedido que a levasse para casa.
Kyra não era de temer. Sempre foi uma guerreira. Quando ainda bem novinha, por recomendação da veterinária, ficou num espaço meio escuro, separado, para evitar o contato com a outra já imunizada por todas as doses de vacinas. Kyra saía dali por uma porta lateral apenas para os passeios matinal e vespertino, ou para suas brincadeiras com meus filhos e comigo. Aguentou essa quarentena sem qualquer demonstração de impaciência.
E agora? Bem... quase sempre, ao abrir o portão da garagem, tenho a sensação de que ela vem ao meu encontro, saltando sobre mim, como a demonstrar a sua alegria, meio contida, sim, mas que me fazia abraçá-la tomado de muito afeto, afagar-lhe as orelhas curtas e arredondadas e derramar-lhe a porção incontida de carinho que lhe trazia guardado nas mãos, nos olhos e - por que não? - na alma.
Dos quase seis anos de vida (foi o quanto durou), há muitas fotos de Kyra. Mas ela vai ser sempre muito mais que “apenas uma foto na parede” como a Itabira de Drummond. Por certo, ocupará seu lugar em minhas lembranças, carregando de mim um punhado generoso de saudade e uma irracional esperança de ainda tê-la por perto.
André, meu filho mais novo, ao ler esta crônica, me disse o que não tive coragem de dizer: “ela deve estar no céu caçando borboletas e passarinhos”. Pedro afirmou que ela vai nos fazer festa quando nos encontrarmos. Não é um mero sofisma. Creio nisso.
Assim sendo, o mistério da vida me permite arriscar: “- Quem sabe um dia - não é, ‘minha branca’? - a gente se vê “num outro nível de vínculo” e eu ainda te afague as orelhas, desta vez sem as cicatrizes suas e minhas, nem esta lágrima teimosa que me desce pela face numa madrugada de 20 de janeiro, às cinco e meia desta manhã chuvosa.
Postado por Ezequiel Sena
Em
27/1/2016 às 16h29
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