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Quarta-feira,
27/1/2016
Cegueira
Marco Garcia
+ de 5900 Acessos
por Angela Veloso*
Recentemente o cenário musical perdeu mais um dos seus grandes ícones. A morte do cantor inglês, David Bowie, abalou os fãs e até mesmo aqueles que mal conheciam sua trajetória musical.
Confesso que não era sua fã e muitas vezes não associei sua música ao seu nome, mas conhecia e até cantarolava algumas delas, por total influência de uma amiga que é sua profunda admiradora.
Fato é que a morte de Bowie e as inúmeras notícias publicadas sobre o assunto, em todos os veículos de comunicação, me levaram a conhecer sua última canção, apresentada em um videoclipe semanas antes de sua morte, o que muitos apontaram como uma despedida em vida.
A canção que encerra sua carreira chama-se Lazarus, uma menção ao personagem bíblico Lázaro, segundo a Bíblia, um homem que estava morto e foi ressuscitado por Jesus depois de quatro dias de sua morte.
O clipe é angustiante, o músico está em um quarto sombrio, preso numa cama. Seus olhos estão vendados com uma faixa de curativos e demarcados por círculos negros. A cena é de um sofrimento que nos prende a respiração e me fez pensar durante dias a respeito da dor que cada um de nós esconde sob nossas frágeis ataduras e sobre a cegueira que nos abate e imobiliza.
Sentimento igual tive apenas em outras duas oportunidades. Há algum tempo li um livro de José Saramago “Ensaio sobre a cegueira”, que relata a história de uma cidade tomada por uma doença que contamina todos os moradores levando-os à cegueira total, porém, apenas um deles continua a enxergar.
Sofreram muito os que estavam cegos, porém sofria mais ainda aquele que continuou ver o que acontecia ao seu redor: a miséria humana que impregnou aquele lugar, levando as pessoas a um comportamento quase que animal. O ver quando ninguém mais o podia fazer era o tormento diário do personagem de Saramago.
Tão sombria e assustadora quanto a cegueira descrita por Saramago era também a da personagem do filme de Lars Von Trier “Dançando no Escuro”. Selma, interpretada por Bjork, sofria de uma doença hereditária que a fez perder a visão, mesmo destino que teria seu filho caso não fosse submetido à uma cirurgia.
A busca da personagem pela cura para o filho e os desdobramentos dessa história denunciaram uma cegueira, não a da personagem, mas uma cegueira social, daqueles que a julgaram e a condenaram levando-a à morte.
E é aí que Saramago, Bowie e Von Trier se entrelaçam e me faz pensar na cegueira de cada um de nós. Quando não estamos enxergando além das nossas próprias feridas, quando deixamos de enxergar pelos olhos do outro, quando perdemos a visão de nós mesmos.
Quando não agimos diante do que acreditamos tornamo-nos Bowie na cama de um hospital, provavelmente instalado na cidade descrita por Saramago e nos deixamos julgar pelo mesmo júri que sentenciou a morte de Selma.
Em dado momento de sua música David Bowie desabafa: “Tenho cicatrizes que não podem ser vistas” e José Saramago nos arrebata: “Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”, porém é e a personagem de Lars Von Trier que no auge de seu sofrimento nos comove de maneira esperançosa: "They say it's the last song; They don't know us, you see; It's only the last song; If we let it be" (em português, Eles dizem que essa é a última canção, eles não nos conhecem, sabe. É apenas a última canção, se deixarmos que seja”.
O desejo de hoje é que a cegueira não nos contamine e que tenhamos tempo para mais uma canção.
*Texto gentilmente cedido pela autora. Angela Veloso é jornalista, mora em São Paulo.
Postado por Marco Garcia
Em
27/1/2016 às 22h27
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