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28/2/2016
Entrevista com o diretor de cinema Rafael Saar
Mauro Henrique Santos
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Campanha de financiamento coletivo tenta viabilizar o lançamento do documentário sobre Luli e Lucina
Em breve finalmente poderemos apreciar, em circuito comercial, a estreia de um dos documentários mais premiados do último ano, Yorimatã de Rafael Saar , que teve um currículo próspero em festivais - ganhador do prémio do júri e público do In-Edit Brasil - Festival de documentário musicais - e menção honrosa no Mix Brasil.
O filme aborda a história da dupla Luhli e Lucina gravada entre outros por Nara Leão, Nana Caymmi, Zélia Duncan e especialmente Ney Matogrosso intérprete de sucessos como O Vira, Bandoleiro e Fala.
A relação que era apenas de compositoras frutificou-se em dupla nas apresentações da carreira em que cantaram suas mais de 800 parcerias empunhando os violões e atabaques que aprenderam a manipular e construí-los no contato profundo e fecundo que mantiveram com o candomblé.
O que poderia ser tomado como incomum até agora toma ares ainda mais singulares quando a parceria profissional torna-se vital, no instante em que se transforma no casamento delas com o fotógrafo Luís Fernando Fonseca . Este, além do já dito, é o olho que capta as artistas no passado, quem registra o grande material que é apresentado ao longo do filme realizadas em Super 8, como também é responsável pela concepção visual dos shows da dupla. Neste ponto o talento de Rafael Saar como realizador do projeto se eleva, nos processos de pesquisa de imagens e na maneira de e dispô-las de modo equilibrado, sem que se apresentem repetitivas e cansativas para o público. Tarefa que alcança, apesar de alguns saltos um tanto mais bruscos no início no filme.
Aliás, Rafael foi pesquisador do filme Olho Nu de Joel Pizzini que de alguma maneira foi o precursor desse filme à medida que, a partir desse trabalho, conheceu as protagonistas deste longa-metragem.
Um dos grandes méritos do filme, presente também fortemente no roteiro, é mostrar que a luta travada por elas era apenas de ter o direito a ter uma carreira e um estilo de vida que estivesse de acordo com a música realizada por elas, em grande medida inclassificável. As imagens como não podiam deixar de ser em um bom filme, ressaltam essa música, que tinha total relação com o estilo mais alternativo que possuíam. Sem rótulos, assim como a ligação com a própria vivência estabelecida por elas e desfrutada claramente neste filme. Experiência entremeada de relatos da mistura da cultura e natureza - candomblé, orixás, matas, florestas, cachoeiras, palcos, filhos, perdas, conquistas - e, acima de tudo, vida.
Para que mais pessoas possam assistir esta produção e embarquem no sonho dessas personagens por liberdade e outros temas atuais até hoje como a diversidade, religião e constituição da família foi criada uma campanha de financiamento coletivo para facilitar a confecção de cópias, distribuição e criação de material gráfico para a divulgação do filme. A ação entrou na reta final e termina no dia 01 de março. Caso queira contribuir e ajudar essa equipe a atingir seu objetivo, clique aqui.
A seguir acompanhe a bate-papo bacana que o diretor teve com o blog.
Apesar de o filme apresentar vários elementos como a animação e vasto material de pesquisa, a direção me parece inequivocamente segura, mesmo se tratando do seu primeiro longa. Em que medida, realizar os seus curtas anteriores e ser assistente de direção de Olho Nu, do Joel Pizzini, por exemplo, colaborou neste processo?
Rafael Saar: Entendo que seja muito natural que um filme leve ao outro, embora bem distintos todos entre si, seja no processo, ou na ideia em si, todos tem um fio condutor em comum. Meus curtas-metragens foram feitos praticamente todos quando eu ainda estudava Cinema na UFF e são ficcionais ou experimentais, não tendo nenhum aspecto documental. O Joel Pizzini, cujos filmes foram objeto de estudo de meu projeto final, e com quem trabalhei por muitos anos no Olho Nu – entre 2008 e 2012 – foi quem me despertou para as possibilidades que eu poderia encontrar no documentário. E fazer este filme, com o Joel que é um realizador que me instiga demais, e o Ney Matogrosso, foi certamente uma experiência de muito aprendizado e influência em todos os meus trabalhos. O Yorimatã é um “derivado” do Olho Nu, no sentido em que eu mesmo conheci Luhli e Lucina através da pesquisa que fiz para o filme do Pizzini, e muitas das minhas opções estéticas tem relação direta com o que estávamos fazendo com o Ney. Dos curtas pude talvez reunir o que neles eram experiências e trazer para este primeiro filme, como no caso mais óbvio para mim do trabalho de voice over e poemas do Homem-ave que está também em Yorimatã.
Conte como foi a origem deste filme? Como surgiu a idéia? Ele está sendo realizado desde 2009?
Rafael Saar: Durante essa fase de pesquisa para o Olho Nu, onde eu estive como assistente de direção e pesquisador, conheci as músicas de Luhli e Lucina. Eu era o único pesquisador e decupei todo o material de arquivo do Ney, centenas de horas de entrevistas, conheci todas as suas gravações em discos, filmes, TVs, etc.. Elas estavam presentes com força na discografia do Ney Matogrosso e eu me questionava por que eu nunca tinha ouvido falar, assim como as pessoas em geral não conhecem. Até que procuramos Luhli em busca de mais materiais, além de entrevista-la e gravar um show, onde também estava Lucina. Ali comecei a conhecer um pouco da história delas. Em seguida gravei um show de Lucina e ela surgiu com 10 rolos super 8mm filmados pelo Luiz Fernando Borges da Fonseca (companheiro delas), que elas ainda nem tinham assistido e assistimos projetados em minha casa. Eram imagens muito emocionantes e feitas por um fotógrafo incrível que é o Luiz Fernando e decidimos ali, em 2009, começar essa ideia de um filme que surgiria naquelas imagens e na história que eu ainda iria conhecer.
Como foi todo o processo de realização? E esse processo para você?>
Rafael Saar:Entre 2009 e 2012, sem uma equipe fixa, eu fui colhendo materiais de arquivo com Luhli e Lucina, e fazendo filmagens pontuais, de apresentações, entrevistas, e em paralelo tentando a captação da verba para viabiliza-lo. Em 2012 tivemos o projeto contemplado no edital Riofilme/Canal Brasil e então pude ter uma equipe e concentrar o trabalho de pesquisa, filmagens, etc. Fiz este roteiro com a colaboração de Luhli e Lucina, e foi um processo intenso, de mergulho e pesquisa. Existe uma obsessão pessoal de ter que ver e conhecer tudo, e isso certamente se reflete no resultado do filme, na duração, na quantidade de informações e propriedade que posso falar sobre os temas.
Como foi a recepção de Luli e Lucina quando propôs o documentário?
Rafael Saar: Foi um processo que surgiu em conjunto entre nós. Apesar de elas estarem a princípio reticentes em relação à abordagem da vida pessoal, aos poucos foram entendendo a proposta e tive total liberdade para colocar no filme minhas escolhas. Eu queria fazer um filme com Luhli, com Lucina e não sobre elas, como em todos estes meus filmes com aspectos biográficos. Me interessava que elas estivessem participando de todo o processo.
E a recepção das outras pessoas que aparecem no filme?
Rafael Saar: Luhli e Lucina vivas, altamente produtivas e podendo contar seu ponto de vista sobre sua própria história me fez optar por um filme sem depoimentos. A trajetória delas como artistas independentes faz com que elas tenham uma rede enorme de parceiros, por isso o Antônio Adolfo diz isso, que é autoprodução o que fazem, porque estas opções deixam os artistas mais dependentes ainda de colaboradores. Desta forma pensamos nestes encontros com artistas que de alguma forma dialogavam com elas.
Queria algum depoimento, pessoa, imagem ou vídeo que se perdeu ou não encontrou?
Rafael Saar: As escolhas por caminhos artísticos alternativos fez com que a pesquisa de registros fosse bem mais difícil. Não havia praticamente imagens delas em acervos institucionais de TVs como a Rede Globo, Record, Band, a maioria estava disponível nas emissoras públicas (TV Brasil e TV Cultura) e muitas vezes com registros errados (Lully e Luciana, Lucinda...) A maior parte das imagens de arquivo do filme vem de registros independentes que conseguimos através delas ou da campanha online que fizemos, em que algumas pessoas enviaram fitas k7, VHS, fotos.
Alguns momentos como o lançamento delas como dupla com o “Flor Lilás” no Festival da Canção de 1972, a Globo não tem, assim como um videoclipe que fizeram com elas. Os registros de Lucina como cantora solo nos Festivais da Canção, suas apresentações nesta época no programa da Jovem Guarda também se perderam na Record, não conseguimos.
Como chegou ao roteiro ou argumento do filme?
Rafael Saar: Costumo trabalhar com roteiros muito abertos à criação nas filmagens. O roteiro de “Yorimatã” foi baseado num argumento que escrevi nesta colaboração com Luhli e Lucina, onde pensamos nas participações, músicas essenciais, temas que seriam abordados, locações, imagens de arquivo, e desta forma fomos adaptando no processo de filmagens até que na montagem o filme foi se mostrando. É um filme em que a montagem foi decisiva também para o roteiro.
Apesar da quantidade de imagens referentes a um passado distante, algumas apresentações recentes, feitas para o filme – presumo – são essenciais, como por exemplo, a bela imagem em que elas cantam acompanhadas do som de cristais. Como foi a concepção, produção e realização das imagens?
Rafael Saar: Eu conheci Luhli e Lucina de hoje, fazendo a música de hoje, cada uma com sua carreira, e foi a partir delas que fui conhecer o passado. O filme foi feito nesse caminho, das personagens hoje como referência, e isso foi um processo fundamental não só de valorização da arte que elas fazem, mas de entendimento do passado a que referimos. Esta cena, por exemplo, delas cantando “Ponto de Oxum”, com Décio Gioielli nas taças de cristal, atravessa os vários eixos do filme. É uma saudação a Oxum, a imagem é feita em cima de um cenário e fotos concebidos pelo Luiz Fernando, e que reproduzimos; o som foi pensado e mixado como na gravação original desta música no LP Yorimatã/Amor de Mulher, e trouxemos um parceiro de uma fase inteira da carreira da dupla que é o Décio.
Como foi assistir as gravações do Luiz Fernando? Assistiu com Luli e Lucina? Como foi esse processo para elas?
Rafael Saar : A primeira vez que assisti foi com Lucina em minha casa, projetamos na parede os super 8mm. Foi muito emocionante e logo ela deu de presente para a Luhli um DVD com a digitalização que fizemos. Uma das vezes Lucina disse que assisti-la a fazia lembrar de uma pessoa diferente que ela tinha sido, e como isso era forte.
Mesmo Luiz Fernando estando morto qual é o papel ou participação dele no seu filme? Em relação aos registros realizados por ele...
Rafael Saar: O filme surge das imagens, do olhar do Luiz. Perseguimos esse olhar, nas fotos, super 8mm, 16mm, nos sons que ele gravava nos rolos magnéticos. Quando eu pensava nas cenas, eu pensava naquele olhar do Luiz, em como ele faria aquilo, e refilmamos muitas coisas reproduzindo exatamente os enquadramentos, texturas e cores que ele trazia. Por isso acho que as pessoas que o conheciam o sentem tão forte no filme, mesmo ele aparecendo pontualmente numa cena, que foi a única que encontramos.
Deixou alguma dessas imagens fora do filme? Algo que para você tinha qualidade, mas não tinha muita relação com o filme?
Rafael Saar: Nos caminhos da pesquisa encontramos muito material incrível, seja nas mais de 800 composições de Luhli e Lucina – no filme temos 75 músicas - ou nas dezenas de horas de vídeos e filmes. Shows inteiros que espero que estejam disponíveis de alguma forma. Fizemos um site para a dupla onde é possível escutar toda a discografia e com muitas músicas raras, e um canal no Youtube onde postamos vídeos do acervo. Também ficou de fora a maior parte dos encontros musicais que filmamos, com Ney Matogrosso, Joyce, Gilberto Gil, Tetê e Alzira, Décio Gioielli, Luiz Carlos Sá, isso esperamos disponibilizar em DVD.
Sobre as animações... Elas sempre fizeram parte do processo ou estavam na sua mente desde o início?
Rafael Saar: As animações vieram a princípio quando não tínhamos nenhuma imagem física do Luiz Fernando, e tendo um acervo enorme e maravilhoso, como forma de trazê-lo mais presente no filme. Assim pensamos nas sequências fotográficas que fizemos a partir de seus materiais, negativos, contatos e ampliações. O Daniel Sake fez esse trabalho lindo com diferentes técnicas, e uma das imagens mais fortes do filme, na minha opinião, é a animação que fizemos da primeira capa de disco da dupla a partir das fotos do Luiz Fernando com elas em silhueta nas dunas de Arraial do Cabo.
Qual a importância deste prêmio e do Festival In Edit Brasil para você?
Rafael Saar : Recebemos os prêmios de Melhor Filme pelo público e pelo júri. São muito especiais por serem os primeiros prêmios do filme e virem de um festival tão importante como o In-Edit, estando concorrendo com filmes tão incríveis. Claro que é um impulso importante para que o filme circule mais e para que eu continue fazendo cinema.
Tem alguma proposta para o filme sair em circuito comercial ou DVD?
Rafael Saar: Eu gostaria muito que o filme circulasse em circuito comercial. Infelizmente ainda não conseguimos nenhuma distribuidora que se interessasse pelo filme. Conseguir o financiamento para produção de um filme como este é uma guerra, a distribuição/exibição de filmes documentários não faz parte de das políticas públicas nacionais que curiosamente protegem e financiam o cinema de mercado. Em DVD temos expectativa de fazê-lo em parceria com nosso coprodutor, Canal Brasil.
Assisti duas exibições do seu filme no In Edit Brasil. Em ambas foi muito bem recebido por parte do público, inclusive com aplausos demorados. Causou uma espécie de comoção no público, assim como em parte do júri que estava presente na primeira sessão que acompanhei. Como sente essa reação do público – e crítica - ao seu filme?
Rafael Saar: A sessão que pude acompanhar no In-Edit, na Cinemateca, foi surpreendente, pois foi uma das poucas em que parecia que o som estava perfeito, como foi pensado, e isso é fundamental para entrar no filme. As reações são muito lindas e emocionantes, a fala principal é “Como eu não as conhecia?” Pessoas que nunca ouviram falar e saem completamente envolvidas com a emoção, e isso é a maior resposta que eu poderia ter. Acredito também que o momento político em que estamos vivendo, de retrocessos gravíssimos e das pessoas em geral estarem muito mais caretas, um filme que mostra estas mulheres fazendo o que querem, livres... A instigação final de Lucina “Quero ver quem tem coragem...” Isso é forte.
Finalizando, fale-me sobre os seus projetos futuros. Sei que está fazendo um documentário sobre a Baby do Brasil. Pode nos falar sobre?
Rafael Saar: Atualmente estou me dedicando a alguns projetos também ligados a músicos e cinema. Acabei de filmar o Peixe, um filme híbrido documentário e ficção a partir da obra do Luís Capucho, um artista maravilhoso que vive Niterói. Este filme está bem diferente do que tenho feito, pois parece que neste momento espera-se um filme musical, e o Peixe apesar de também ser musical, é um filme que dialoga profundamente com o trabalho de autobiografia ficcional do Capucho. Continuo com o Apopcalipse segundo Baby, filme que comecei há tanto tempo, em 2008, mas que estou fazendo com a Baby do Brasil sem pressa e por enquanto sem nenhum financiamento, o que acabou travando um pouco o processo. Sendo a Baby uma grande popstar (e popstora) o projeto torna-se muito caro se tomarmos como princípio somente os direitos para uso das músicas e imagens de arquivo. Acredito que o fato de Baby ser evangélica dificulte um pouco o processo de conseguir o financiamento, pois existe uma questão de preconceito muito forte que envolve talvez o medo de ser um filme panfletário sobre alguma religião, o que obviamente não será. Continuarei tentando. E também começando um projeto novo sobre a cantora Maria Alcina, mas ainda estamos muito no princípio...
Acompanhem o primeiro teaser do filme:
Aqui o outro teaser:
Mauro Henrique Santos.
Postado por Mauro Henrique Santos
Em
28/2/2016 às 19h39
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